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Publicado em março-abril de 2010 - ano 51 - número 271 - (pp. 3-10)

Economia e vida na casa da Bíblia

Por Frei Jacir de Freitas Faria, ofm

INTRODUÇÃO

Falar de economia é falar da casa. Diz o ditado popular: “Quem casa quer casa!” O substantivo casa vem do grego oikos e significa a casa do mundo e de cada ser humano no seu próprio corpo e no lugar onde ele habita. Oikos é a casa natal. Casa é invólucro de cada um de nós, a construção material onde ocorrem relações sociais e econômicas em função de uma família. Quanto melhor estiverem organizadas essas relações, melhor será a vida familiar. Os gregos, ao mencionar a casa, falam das relações econômicas domésticas, caseiras, que a gerenciam. E é daí que vem outro termo grego, oikonomia, que significa a lei (nomos) que rege a casa (oikos), isto é, economia.

A Bíblia, ao falar da “Casa de Israel”, apresenta relações econômicas dentro e fora dela. A sua lógica é que Deus pede ao ser humano que administre a casa, o mundo, que Ele lhe ofereceu para dele ser o regente. “Crescei, multiplicai e regei o mundo” (Gn 1,28). Ademais, Deus viu que tudo o que ele fez era bom (Gn 1,10), isto é, um bem, um valor que deve ser querido por todos, no cuidado, no uso e na sua aquisição. A questão não é considerar os bens negativamente, mas relacionar-se com eles de modo a gerar vida para todos. Falar da vida é falar de economia. Economia e vida na casa da Bíblia de ontem e de hoje, eis o desafio da reflexão que segue.

 

1. A casa da Bíblia acolhe a vida do início ao fim

A Bíblia como literatura é uma grande casa que acolhe judeus e cristãos. O seu organizador final, sem a preocupação com a datação dos livros, os dispôs de maneira que apresentasse a vida de modo inclusivo, a mesma ideia no início e no fim. Assim, a primeira casa do ser humano, segundo o primeiro livro da Bíblia, é o Paraíso Terrestre, com a sua árvore da vida e a do conhecimento do bem e do mal (Gn 2,9).[1] O último livro da Bíblia, o Apocalipse, a fecha com a narrativa da Jerusalém Celeste, no contexto de um novo céu e de uma nova terra. Assim como no Gênesis, o Apocalipse tem uma árvore da vida no seu centro. Jerusalém, no fim da Bíblia, torna-se o símbolo da esperança perdida com a decisão do ser humano — simbolicamente representado por Adão e Eva — de aceitar a proposta da serpente de comer do fruto da árvore do bem e do mal. Seduzidos pela serpente, eles deixam de lado a orientação do Deus da vida. Sair do paraíso foi o mesmo que optar pelo caminho da morte, o qual a teologia chamou de pecado, a queda do paraíso. Deus criou o ser humano em liberdade e respeita sua decisão. Adão e Eva, protótipos simbólicos de seres humanos, acabaram criando problema para Deus e para si mesmos. Viver fora do paraíso tornou-se difícil. Com o suor do rosto, o ser humano passou a lutar pela sobrevivência. A terra fora do paraíso tem espinhos, precisa ser arada. Como releitura desse episódio da saída do paraíso, o Segundo Testamento (ST)[2], em Lc 22,44, mostra que Jesus, antes de morrer, antes de voltar para o paraíso celeste, suou lágrimas de sangue sobre a terra de Jerusalém, no Getsêmani, em profunda agonia. O sangue de Jesus devolveu a vida, a bênção, à terra, outrora maldita.[3]

No centro da Bíblia estão os livros de Malaquias e Mateus, encerrando o Primeiro Testamento (PT) e iniciando o Segundo. Malaquias termina falando do profeta Elias e de seu retorno eminente: “Eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o Dia de Javé, grande e terrível (Ml 3,23-24). Elias, o profeta que foi para Deus em um carro de fogo, voltará para o grande julgamento. O Evangelho de Mateus inicia falando de Jesus, chamando-o de Filho de Davi, Abraão, e Messias enviado por Deus. Assim, Elias e Jesus, dois personagens ímpares do judaísmo e do cristianismo, estão no centro da Bíblia. Os judeus sempre acreditaram que Elias voltará. Os judeus conterrâneos de Jesus chegaram a dizer que ele seria a encarnação de Elias. Para os cristãos, Jesus ressuscitado é o centro da fé. Já dizia são Paulo: “Em vão seria a nossa fé se Cristo não tivesse ressuscitado”. E foi Jesus mesmo que disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida!” (Jo 14,6). Elias e Jesus são símbolos de vida.

 

2. Gn 1-11: o mundo é a casa que Deus deu a Israel para cuidar

Um dos trechos mais famosos da Bíblia, Gn 1-11, é o relato mítico da experiência de vida do ser humano em sua primeira casa, o Éden. Nele estamos todos nós. As más relações econômicas levaram o ser humano a viver a sina da saudade do paraíso perdido.

Quem lê as histórias de Adão e Eva se vê qual outro Adão e Eva. A frase: “Com sofrimento te nutrirás do solo todos os dias de tua vida” (Gn 3,17c) é a explicação dada ao trabalho sofrido de homens e mulheres nos dias em que esse texto foi escrito e para as gerações futuras. É Deus mesmo que interfere no proceder humano, dando uma sentença condenatória. O paraíso, o Éden, sinal de vida integrada do ser humano com a natureza, torna-se distante do ser humano quando ele mesmo rompe as regras estabelecidas com o criador.

 

3. Na casa da Babilônia, o contramito

Quando a maioria dos mitos de Gn 1-11 foi escrita, o povo de Israel se encontrava na Babilônia, fora de sua casa, sofrendo com as políticas econômicas do opressor. Chamemos esses mitos de contramitos, pois foram escritos para contrapor-se, resistir aos mitos oficiais da Babilônia que justificavam a opressão.

O primeiro contramito, Gn 1,1-2,4, é a manifestação do poder de Deus por meio de sua palavra e de seu gesto gratuito de criar o ser humano. Ele começa narrando o ato criador de Deus, e não a luta fratricida dos deuses babilônios no mito babilônico Enuma Elish. A expressão: “E Deus disse” é carro-chefe da narração bíblica. Ela aparece dez vezes e relembra o Decálogo. A palavra é usada para criar e expressa o poder não violento do Deus de Israel, diferente dos deuses babilônicos, que exigiam a ordem celeste na terrestre. Gênesis afirma que Deus dá aos animais, aves e répteis as ervas como alimento (Gn 1,30). E ao ser humano ele dá as ervas, árvores e frutas que produzem semente, isto é, dá-lhe também o encargo de produzir alimentos para o seu sustento (Gn 1,29). Essa afirmação é profundamente revolucionária: Deus cria o universo para a vida dos seres humanos e não para o bel-prazer dos deuses, como em Enuma Elish. O alimento é para o sustento da vida humana e não para dar lucro aos poderosos. Deus não espera em troca o tributo do ser humano, como no mito babilônico. Com isso, fica descartada a opressão do ser humano sobre o seu semelhante. Em nossos dias, a produção de alimentos está monopolizada por grupos detentores do mercado internacional, o que produz a fome mundial. Sabemos que o Brasil é considerado celeiro mundial, mas o nosso povo passa fome. Onde está o erro? Assim como nos tempos do império babilônico, a globalização atual quer ter o controle sobre quem produz e consome. Deus tem outros planos. É o que nos mostra o contramito de Gn 1,1-2,4.

O contramito de Gn afirma categoricamente: “E Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, que ele reja os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra’”. Rashi, um grande sábio judeu da Idade Média, ligou o verbo reger à imagem e semelhança e assim os interpretou: “imagem” significa “segundo o nosso (de Deus) modelo”. Já “semelhança” é o que devo adquirir. Imagem (modelo) de Deus todos nascemos, mas a semelhança deve ser conquistada. Alguém pode morrer sem nunca ter chegado a ser semelhante a Deus, isto é, não buscou ser cocriador com ele. Nesse sentido, entende-se também “que ele domine”. O verbo dominar em hebraico (yrd) significa dominar e descer. Se o ser humano tem consciência de que é imagem de Deus, ele luta para viver em harmonia com as criaturas, do contrário estas o dominarão e ele descerá, tornar-se-á como animal e será destruído pela natureza. O ser humano recebe a bênção divina para cuidar da criação. Deus não lhe concede o direito de dominar outros seres humanos e por isso não lhe dá os animais como sustento.

Em nossos dias, estamos vivendo um processo rápido de destruição da terra e do ser humano. Recente pesquisa descobriu que o ser humano começa a ficar impotente. A cada ano o homem deixa de produzir 2% a menos de espermatozoides. Um homem nascido na década de 1950 produz 150 milhões de espermatozoides por mililitro, o da década de 1970, 75 milhões por mililitro e o da década de 1990, somente 50 milhões. Quando esse número chegar a 20 milhões, a fertilidade humana estará comprometida e aí será tarde demais. Pesquisadores chegaram à conclusão de que a causa dessa infertilidade, bem como a de cânceres de mama e de próstata, é a poluição da natureza. As substâncias químicas despejadas nos rios são consumidas pelos peixes, transformando-os em hermafroditas. O ser humano está sendo contaminado por produtos químicos armazenados nos plásticos, que envolvem os alimentos consumidos por ele, causando-lhe infertilidade.

 

4. Guardar o sábado é ficar na casa da família ou de Deus

Gn 2,3 afirma que Deus abençoou o sétimo dia da criação, santificou-o e nele descansou. O ápice da criação não é o ser humano, mas o dia de descanso. Este, sim, recebe uma bênção especial. O sábado, em hebraico shabat, é da mesma raiz do verbo shûba (sentar-se). O povo, na Babilônia, lembrava-se daquilo que o Decálogo havia escrito como lei perpétua: “Guardarás o dia de sábado para santificá-lo, conforme ordenou Javé teu Deus” (Dt 5,12). No Decálogo, o mandamento do sábado se divide em dois blocos simétricos, delineados por dois imperativos, um positivo e outro negativo: trabalharás e não farás. Positivo: trabalhar seis dias; fazer todo tipo de obra para recordar a escravidão. Negativo: não fazer nada no dia de sábado para recordar a libertação do Egito. A divisão da semana em seis dias mais um é recurso usado para conferir sacralidade ao sétimo. Seguindo o esquema do fazer e não fazer, a ordem é trabalhar seis dias e descansar um. Um ato está relacionado com o outro. O descanso não teria sentido sem o trabalho. Fazer o sábado é o mesmo que celebrar o tempo, recordar o evento fundador de Israel, a libertação do Egito. É Deus que faz desde sempre e para sempre. O pai de família é o responsável pelo cumprimento do sábado. Ele deve tirar o jugo e não impô-lo. Sábado é dia de alegria e festa. A observância do sábado é um ato simbólico. Ela expressa um valor absoluto. Repouso para filhos e servos, estrangeiros e animais, o que significa igualdade econômica.

No imaginário mitológico da comunidade que produziu Gn 1,1-2,4, essa ideia tão revolucionária do sábado não podia ficar de fora. A humanidade, feita à imagem de Deus, é sagrada. Assim como o criador, ela precisa descansar, ficar em casa ou ir para a casa de Deus, a sinagoga, para rezar. Para os dirigentes babilônicos, não era necessário descansar. O povo precisava trabalhar muito para pagar os tributos a Marduk no seu santuário, de modo que a estabilidade política e social fosse mantida. O ser humano, no mito babilônico, foi criado para servir os deuses com o seu trabalho, de modo que os deuses se tornassem livres da árdua tarefa de trabalhar. A comunidade de Gn 1,1-2,4 sabia disso e não foi por menos que resistiu diante do opressor: “Temos direito ao sagrado descanso semanal!”

 

5. Dilúvio para reconstruir a casa do mundo

O mito do dilúvio de Gn 6,5-9,17, situado no centro de Gn 1-11, é a sua mensagem principal. Deus intervém para recriar o mundo e os seres humanos. O personagem principal do dilúvio é Noé, nome que significa protelar-se ou aquele que prolongou sua existência. Nóe, miticamente, contrapõe-se ao comportamento da maioria de seus contemporâneos, supostamente injustos e falsos. Deus prometeu que o dilúvio não mais iria acontecer, pendurando no céu seu arco de guerra, o arco-íris, sinal visível da promessa divina de não destruição vindoura de seu povo, desde que o ser humano se reumanize e reabite a terra de forma harmônica. A terra maldita (Gn 3,17b-19) pela violência humana volta a ser fecunda (Gn 8,21; 9,20-21). Gn 6,5-9,17 é a espiritualidade da reconstrução da casa, do paraíso terrestre. Enquanto isso não se realiza, dilúvios, como o tsunami na Indonésia, continuarão acontecendo.

 

6. Babel é a “Casa dos grandes deuses” da Babilônia

O contramito “torre de Babel” (Gn 11,1-9) encerra Gn 1-11. A interpretação clássica desse texto fala do surgimento das línguas no mundo. Antes todos se entendiam, mas, quando o ser humano quis chegar ao céu com a sua torre enorme, isto é, quis dar um “golpe de Estado” e assumir o poder divino, Deus interveio e confundiu as línguas. A questão principal não é a língua, mas a resistência ao mito da “Casa dos grandes deuses da Babilônia”. O deus Marduk havia construído a sua casa no céu para manter a opressão da casa babilônica na terra. Gn 11,1-9 é o contramito da fundação da Casa de Babilônia. Ele tem como objetivo mostrar como os grandiosos e injustos projetos humanos, presentes e futuros, serão sempre impedidos por Deus. Esse texto está no fim do bloco de Gn 1-11 para nos ensinar que a Babilônia, a poderosa construtora da torre, que exilou o povo de Judá e o dispersou pelo seu império, seria também dispersada por Deus.[4] Ela pagou (miticamente pagará) pelos males feitos contra o povo escolhido. Não foram as línguas dispersas (multiplicadas) em Gn 11,1-9, mas os opressores babilônicos. Contrapondo-se a Gn 10, que conta a dispersão organizada, segundo línguas e descendência, dos filhos de Noé, Gn 11,1-9 é o contramito da dispersão confusa e negativa dos construtores da grande torre. E era Deus mesmo querendo dizer: o mundo precisa se reorganizar segundo a justiça, sem opressão… Mas não estamos falando da queda das “torres” de Nova York. Ou estamos falando? Curiosidade: a citação bíblica coincide com o dia, mês e ano desse ataque — 11 de setembro de 2001, Gn 11,1-9.

 

7. Patriarcas e matriarcas: a casa dos pais e mães da fé

Gn 1-11 termina com os mesmos problemas gerados com a perda da casa do paraíso: mal, sofrimento, morte, falta de harmonia entre ser humano e universo. Deus, então, de forma amorosa, envia os patriarcas e matriarcas: Abraão, Sara, Agar, Rebeca, Isaac, Jacó, Lia, Raquel etc., para iniciar nova etapa na história da humanidade. Deus promete uma terra, uma família (casa) e uma bênção para Abraão (Gn 21,1-13).

A economia dos patriarcas e matriarcas se baseava na criação de ovelhas e cabras, carneiros e asnos. Esses animais forneciam os bens substanciais para a vida nômade: alimentos à base de leite; vestes de lã; tendas tecidas com o pelo típico das cabras negras do Oriente. Utensílios domésticos como odres, talhas, macas etc. A terra era vista como propriedade coletiva do clã familiar. Os homens eram pastores, e as mulheres, domésticas. Os clãs chegaram a dominar algumas técnicas, como separar machos e fêmeas no rebanho, perfuração de poços, fabricação de tendas, uso do couro e da cerâmica. O comércio era baseado na troca de mercadorias com outros clãs ou aldeias. Não pagavam impostos. Foi para evitar pagar o tributo aos reis e não se sujeitar às corveias (trabalho compulsório) nas cidades que eles escolhiam viver nas estepes. Como consequência, tinham de abandonar em parte a agricultura que praticavam ao redor das cidades, buscando pastagens para seus rebanhos. Os patriarcas conseguiram estabelecer uma economia que mantinha o povo unido na fé no Deus dos pais, chamado de El. Assim, a história de Israel caminhou por muitos séculos, até chegar ao inevitável caminho do Egito, pois a fome assolava a região.

 

8. Egito: a casa do sofrimento

Quando o povo de Deus foi para o Egito, tudo parecia muito bom. Jacó e sua família receberam as melhores terras do país. José, o filho ilustre, o patriarca, salvou o povo de Deus. Sua política econômica fez os egípcios suportarem a fome que se abatera sobre o país. Mas não durou muito. José morreu e se instaurou a perseguição sobre os israelitas. Fome, trabalhos forçados e sofrimentos sem fim. Um salvador, um homem “tirado das águas” — como atesta o seu nome, Moisés —, tornou-se o novo salvador. Criado no palácio do faraó, Moisés, por inspiração divina, não aceitou o sofrimento do seu povo. Foragido por causa da morte de um soldado atribuída a si mesmo, foi chamado por Deus, simbolicamente, em uma sarça que ardia, mas não se consumia (Ex 3,7-10; 6,2-8). Moisés organizou o seu povo rumo à libertação do Egito. Pragas enviadas por Deus e a resistência do faraó, que não queria perder a mão de obra, assinalaram o início de um novo tempo para Israel. A passagem simbólica no mar Vermelho, o mar que se abriu, deixando para trás 430 anos de opressão (Ex 12,40) na mais poderosa economia de então, marcou um novo tempo: “Egito nunca mais!” A lembrança dessa época marcou a história do povo de Deus. Nos 40 anos vagueando pelo deserto, o povo se reorganizou para retomar a terra da promessa. A saudade do Egito, a fome e a sede levaram-no a se revoltar, a blasfemar contra Deus, que respondeu distribuindo pão para todos, chamado de maná (Ex 16,4-21), o qual se transformou em símbolo da partilha dos bens. O dom do maná era para todos. Ele não podia ser recolhido além do necessário. Ninguém podia acumular, mas comer, partilhar e seguir a caminhada. O maná tornou-se um símbolo da economia que concede direitos iguais a todos. Em nossos dias, assistimos à desenfreada situação de consumo exagerado. O meu celular ainda serve, mas já foi ultrapassado por outro modelo, com novos recursos que nem vou usar. As empresas se encarregam de propor a troca urgente, pois senão o seu cliente estará “fora da linha”, isto é, fora do padrão de consumo.

Outro fator importante no deserto é a parada no monte Sinai, marco do início de uma aliança com Deus, expressa no Decálogo.

 

9. Decálogo: para lembrar que “eu te fiz sair da casa da escravidão”

A relação entre economia e vida aparece fortemente nos textos legislativos da Bíblia, a começar pelo Decálogo (Dt 5,6-21), com desdobramentos no código da Aliança, Deuteronômico e Levítico.

A introdução do Decálogo fala da relação de justiça entre Israel e Deus: “Eu sou o Senhor teu Deus, aquele que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Dt 5,6). O Decálogo se rege por esta máxima: o Deus que tirou o povo da casa da escravidão quer novas relações sociais e econômicas, baseadas na justiça e no reconhecimento desse seu ato libertador.

A primeira parte do Decálogo (Dt 5,7-11), realizada na “casa de Deus”, o templo, mostra a relação entre Deus e o ser humano. Deus pede que seja invocado como Deus de Israel.

A parte central (vv. 12-16), realizada na “casa da família”, é o centro, a parte mais importante e o resumo de todo o Decálogo; nela estão estabelecidas as leis de “guardar o sábado e honrar pai e mãe”. O pai tem a função de fazer valer o sábado, dando possibilidade de descanso a todos. Igualdade econômica em um dia para lembrar a libertação da escravidão no Egito. Honrar pai e mãe, além de prescrever a obediência, estabelece a obrigação do filho de sustentar financeiramente os pais idosos, que voltam a ser filhos indefesos e pobres. Prover o sustento dos pais na velhice significa agir como Deus, que sempre cuida dos pobres e necessitados. Por meio desses gestos, o ser humano reconhece-se como objeto de dom — ele recebeu a vida, a liberdade e a palavra — e, por outro lado, afirma-se como sujeito de dom: ele dá ao outro — pais — aquilo que recebeu. A justiça aparece como afirmação e promoção do outro. Esses mandamentos — guardar o sábado e honrar pai e mãe — são centrais, pois neles a vida é possível somente se é doada e reconhecida como dom. O simbolismo maior é dar a vida.

Os mandamentos da terceira parte realizam-se na “porta da cidade”, a entrada da casa-cidade, e estão relacionados com o próximo. Literariamente, estão demarcados pelo “e não”. Fica proibido matar, cometer adultério, roubar, dar falso testemunho, desejar a mulher, casa e pertences do próximo. Ninguém pode nem mesmo desejar os bens do próximo. A questão não é ter um boi e desejar outro, mas ter a consciência de que o segundo boi é a vida do próximo.

 

10. As leis dos códigos garantem a vida

A defesa da vida expressa no Decálogo ganhou corpo em vários códigos, com a ampliação dessas dez leis em centenas de outras. O Código da Aliança (Ex 21,22-23,19) tem um caráter social. Ele foi renovado e transformou-se no núcleo central do atual Código Deuteronômico (Dt 12-26). Várias passagens dos livros de Êxodo e Deuteronômio exigem a defesa dos mais fracos: órfãos, viúvas, escravos, emigrantes e levitas (Dt 23,25-26; Ex 22,21; Ex 21,1-10.26-27; Ex 23,12; Dt 15,13-15; Dt 23,16-17; Ex 22,20; Dt 24,19-21). Da mesma forma, há textos que insistem no exercício da justiça nos tribunais (Ex 23,1-9; Dt 16,18-20), na não cobrança de juros dos pobres (Ex 22,24; Dt 23,20-21), no devolver o manto ao pobre, tomado como penhor, antes do pôr do sol (Ex 22,25), no não tomar a roupa da viúva como penhor (Dt 24,17), na remissão de dívidas a cada sete anos (Dt 15,1-11). O salário do pobre deverá ser justo (Dt 24,14). O comerciante deverá agir com justeza. Nada de dois pesos e duas medidas (Dt 25,13-15). Assim, a lei quer garantir a vida.

 

11. O tempo dos juízes: bonança e partilha dos bens na casa das tribos

A passagem pelo deserto serviu para o povo repensar o seu projeto de vida. Liderados por Josué — pois Moisés havia morrido antes mesmo de chegar —, eles tomam Canaã e põem em prática relações sociais e econômicas para garantir a vida e inibir o acúmulo de riquezas. Mediante vários critérios, a terra foi dividida para as tribos — os descendentes de Jacó e seus agregados, os outros povos oprimidos que se uniram ao grupo. Foram escolhidos, entre o povo, juízes para questões internas e externas. Os bens produzidos eram distribuídos para todos, de modo que ninguém passasse necessidades. Faziam até festas para partilhar o excedente. A economia era, de fato, solidária. Não havia propriedade privada nem comércio, mas trocas internas de produtos. As tribos israelitas produziam cereais e frutas. Criavam animais, como ovelhas, cabras e jumentos. Além disso, praticavam o artesanato, confeccionando utensílios de madeira, vasilhas de barro e tecidos. O livro de Juízes, que trata do período tribal, não nos fornece muitos detalhes sobre essa organização econômica, mas podemos encontrá-la em Js 13-21, Lv 25, Ex 16,17-20 e Js 7.

O período tribal foi, na verdade, uma fase de buscas e principalmente de construção da identidade do povo de Deus, que acabara de sair da exploração do Egito. Cansados de sofrer e de ser explorados, grupos excluídos se uniram para fundar nova sociedade, diferente dos modelos que eles conheciam — baseados na hierarquia de classes, no culto a ídolos distantes e na legitimação da economia injusta. Para garantir a vida e o não retorno ao Egito, lugar da morte, Israel viveu, por cerca de 200 anos, uma vida igualitária. Infelizmente, eles mesmos não conseguiram manter o sonho. Findo esse período, nasce a monarquia. O poder passa a ser centralizado e o povo, explorado. O sonho parece ter acabado. Os profetas e profetisas surgem na história de Israel para alimentar a esperança de novos tempos.

 

12. Profetismo: “o que roubastes do pobre está em vossas casas”

As relações econômicas na Bíblia aparecem nos tributos cobrados (1Sm 8), que poderiam ser substituídos pela corveia (trabalhos forçados) ou por serviços prestados ao Estado. O rei Salomão cobrava impostos religiosos, chamados de dízimo. Nessa relação econômica, os profetas e profetisas bíblicos[5] são os porta-vozes dos pobres na denúncia contra a economia mal dividida. Os tributos religiosos serão duramente criticados (Am 4,4). “Ai do que constrói sua casa sem justiça e seus aposentos sem direito; que faz trabalhar seu próximo de graça e não lhe paga o salário!”, denunciou Jeremias.

Em ordem decrescente, o que os profetas mais denunciam são: injustiça nos tribunais, comércio, escravidão, latifúndio, salário, tributos e impostos, roubo, assassinatos, garantias e empréstimos, luxo.[6] Por mais estranho que pareça, é o poder legislativo que recebe mais denúncias por parte dos profetas. Os acusados alternam-se entre juízes, legisladores, reis e seus funcionários. Os que sofrem a má administração da justiça fazem parte do tripé, tão caro na defesa profética: pobres, viúvas e órfãos. Os pobres da Casa de Israel não eram respeitados. Isaías dirá: “Fostes vós que devorastes a vinha, o que roubastes do pobre está em vossas casas. Com que direito esmagais o meu povo e calcais aos pés o rosto dos pobres?” (Is 3,14-15). Aos pobres é negado até mesmo o direito de reivindicar a justiça. A lei passa a defender a classe dirigente, a qual garante, com isso, os direitos e bens adquiridos à custa do sofrimento dos pobres. Qualquer semelhança com os nossos dias não é mera coincidência. A questão da apropriação indevida das terras, com consequente criação de latifúndios, é denunciada por Isaías e Miqueias, a ponto de este último chegar a propor uma reforma agrária. Na cabeça do profeta está a seguinte noção: Deus é justo e o povo se afastou dele. O povo rompeu a aliança com Deus. Desse modo, a estrutura da sociedade ficou fraca, tornando-se presa fácil para os dominadores. Por isso, o povo de Deus viveu o drama de vários exílios, sendo o maior e mais conhecido o da Babilônia (587 a 538 a.C.). Os reis da monarquia de Israel e de Judá, que deviam zelar pelo povo, não o faziam. Faltou coerência entre a vida e o culto. O culto deixou de ser expressão de honestidade para se tornar um covil de ladrões (Jr 7,1-15; Mt 21,12-13). Nesse sentido, veja a beleza literária da denúncia feita por Amós 2,6-16. Uma peregrinação ao santuário é totalmente desvirtuada pelos ricos que vendem o pobre por um par de sandálias… Nesse quadro, o profeta apela para o “dia de Javé”. A pedagogia era fazer o povo se endireitar por meio do medo. Não é por menos que outros textos, como Is 33,14-16, Sl 15 e 16, descrevendo verdadeira liturgia de acesso ao templo, afirmam que quem poderá aproximar-se de Deus é somente o justo, aquele que fala o que é reto, despreza o ganho explorador, recusa aceitar o suborno. A denúncia profética parte da convicção de que o Deus-Javé, que libertou Israel do Egito, que fez uma aliança no Sinai, que acompanhou o povo pelo deserto, que o fez entrar na terra prometida, é um Deus justo, que quer uma economia defensora do pobre, do órfão e da viúva: “Ai daqueles que promulgam leis injustas, que redigem medidas maliciosas, para tapear o fraco na justiça, roubar o direito de meu povo explorado, para fazer viúvas suas vítimas e roubar dos órfãos” (Is 10,1-2). Quem age assim nem deve dirigir-se a Deus com as suas orações, pois ele não lhe fará caso (Is 1,15-18).

 

Conclusão: Jesus é o profeta que leva a salvação para a casa de Zaqueu

Embora só de forma indireta tenha reivindicado para si o título de profeta (Lc 13,13), Jesus foi o profeta por excelência, a síntese de toda ação profética. A sua denúncia à situação de injustiça econômica, buscando nova ordem nas relações com os bens, apareceu em várias de suas declarações públicas, como: “Não ajunteis tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem e os ladrões assaltam e roubam. Ao contrário, juntai para vós tesouros no céu… (Mt 6,19); “Onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Mt 6,21); e ainda: “Ninguém pode servir a dois senhores: ou vai odiar o primeiro e amar o outro ou vai aderir ao primeiro e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro!” (Mt 6,24). Jesus nos chama a pôr o nosso coração, tesouro, os bens, em Deus, que nos ensina a viver a partilha, a solidariedade com os pobres em outro mundo possível. Foi esse o ensinamento que ele deixou para Zaqueu, o rico cobrador de impostos de Jericó, que primeiro vê Jesus do alto de uma árvore e depois o convida para ir à sua casa. Zaqueu se converteu e prometeu a Jesus que repartiria metade de seus bens com os pobres e, se tivesse prejudicado alguém, iria lhe restituir em dobro. Os primeiros cristãos, bem cedo, compreenderam essa proposta de economia solidária que gera a vida. Eles procuram demonstrar isso na distribuição dos bens (At 2,44-45). Quando o império romano perseguiu os cristãos, foi essa visão de economia que os sustentou e os manteve unidos na fé em Jesus ressuscitado. Diante das graves epidemias de varíola, no ano 165, e de sarampo, em 250, que assolaram o império, causando mortandade entre crianças e adultos romanos, o número dos cristãos permaneceu crescente devido à solidariedade e à assistência fraternal entre eles. Assim, o cristianismo cresceu.

Jesus não teve dúvida de que Zaqueu havia compreendido a sua proposta de vida; por isso disse categoricamente: “hoje a salvação entrou nessa casa” (Lc 19,1-10). Hoje, salvação e casa: um advérbio e dois substantivos que revelam o sonho acalentado por cristãos, mas também por todos os que acreditam no Deus da vida, numa sociedade igualitária de paz, justiça e fraternidade universal, assim como nos propõe a Campanha da Fraternidade deste ano. Continuemos a acalentar e procurar, com nossas atitudes, a realização dessas eternas promessas do mestre Jesus, da casa de Nazaré.



[1] Cf. Jacir de Freitas Faria. Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos: poder e heresias! Introdução crítica e histórica aos apócrifos do Segundo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2009, pp. 12-14.

[2] Usamos as terminologias Primeiro e Segundo Testamentos por razões ecumênicas relativas aos judeus.

[3] Cf. Jacir de Freitas Faria. “A releitura da Torá em Jesus”. Ribla, Petrópolis: Vozes, nº 40, 2001, p. 18.

[4] Cf. José Severino Croatto. Exlio y sobrevivencia: tradiciones contraculturales en el Pentateuco. Lumen: Buenos Aires, 1997, pp. 353-393.

[5] Para um estudo dos profetas e profetisas na história de Israel, veja o nosso livro: Profetas e profetisas na Bíblia: história e teologia profética na denúncia, solução, esperança, perdão e nova aliança. São Paulo: Paulinas, 2006.

[6] Cf. J. L. Sicre. Profetismo em Israel: o profeta; os profetas; a mensagem, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 367.

Frei Jacir de Freitas Faria, ofm