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Publicado em número 231 - (pp. 22-25)

Esperamos novos céus e nova Terra (2 Pedro 3,1-13)

Por Centro Bíblico Verbo

Os jornais, a televisão, o rádio, a internet, as revistas, muitos boletins paroquiais e outros meios de comunicação há tempos — há mais de 30 anos — denunciam que a vida na Terra está ameaçada. A Terra está sendo devastada pela cobiça e pela ganância de alguns grupos dominantes. Muitas espécies de seres vivos estão ameaçadas de extinção, em uma situação de total desrespeito por eles. Se a destruição da natureza continuar, as futuras gerações receberão um planeta degradado, com péssimas condições de vida.

Como continuar acreditando na chegada de novos céus e nova terra diante de tantos sinais de destruição e morte? Como alimentar a esperança na construção de uma nova sociedade, baseada na justiça e na solidariedade? No horizonte som­brio e caótico de nossa realidade social, o resultado das eleições realizadas no final do ano passado veio reacender a chama da esperança do povo brasileiro. Houve um reacender do clima de confiança, na expectativa de algo novo.

Mas voltemos para a realidade das comunidades que receberam a segunda carta de Pedro. Algumas comunidades cristãs estavam divididas e confusas perante a pregação de outras doutrinas (2Pd 2,1-3.12.17; 3,3). Para algumas pessoas e grupos, a parusia de Cristo era uma invenção. Afinal, até agora essa promessa não deu em nada. “De fato, desde que os pais morreram, tudo continua como desde o princípio da criação” (2Pd 3,4).

 

1. Vem, Senhor, e não tardes mais

O termo parusia significa presença, chegada, vinda de alguém. Pode ainda assumir o sentido de bens, fortuna, força militar. Era termo específico para anunciar a visita oficial de um imperador ou chefe militar a uma cidade ou país. Também era usado para falar da manifestação de uma divindade. Em geral, essa visita era portadora de riquezas e bênçãos.

A espera da vinda do messias era uma realidade viva nas comunidades judaicas. Elas sonhavam com a chegada de um rei poderoso para restaurar a realeza de Israel. Por volta do ano 50 d.C., as comunidades cristãs de Tessalônica também esperavam a segunda vinda iminente de Cristo, o messias poderoso. Muitas pessoas achavam que isso aconteceria dentro de poucos meses. Porém, Paulo afirma que a segunda vinda do Senhor não pode ser prevista: “Vocês já sabem que o dia do Senhor virá como ladrão à noite. Quando as pessoas disserem: ‘estamos em paz e segurança’, então de repente a ruína cairá sobre elas, como as dores do parto para a mulher grávida, e não conseguirão escapar” (1Ts 5,2-3).

Conforme as exortações de Paulo, é preciso estar vigilantes: “Sejamos sóbrios, revestidos com a couraça da fé e do amor e com o capacete da esperança da salvação” (1Ts 5,8). As comunidades cristãs estavam se preparando para enfrentar tribulações. Na cultura greco-romana, o fim de uma era e o início de outra etapa histórica eram marcados por momentos de sofrimento, guerras e destruição.

Na guerra judaica (66-73 d.C.), o Templo de Jerusalém foi destruído e a cidade saqueada — um verdadeiro massacre contra os judeus. Para muitos judeus, essa guerra era um aviso da chegada do dia do Senhor, que seria em breve (Mc 13,30-31; Lc 21,32). Mas nada aconteceu. O tão esperado fim do mundo e a instauração do reino de Deus não chegavam. As comunidades cristãs, que havia muito tempo estavam sofrendo e sem perspectivas futuras, começaram a ficar desanimadas. Nada de a realeza do Cristo ser estabelecida… Ao contrário, após os anos 70 d.C., a situação ao redor era de destruição e desestruturação. Os grupos de cristãs e de cristãos estavam sem perspectivas. Nesse contexto, nos evangelhos sinóticos, a parusia foi retomada como a vinda do Filho do Homem (Mt 16,27; Mc 13,26; Lc 21,25-27). Essa tradição tinha sua inspiração no livro de Daniel (Dn 7,13-14), que profetizou a chegada de um filho do homem como sinal da instauração do reino de Deus e do fim dos impérios opressores.

Mas a demora da parusia propiciou o crescimento de algumas correntes filosóficas e religiosas que negavam Jesus como messias. Esse foi um problema comum em muitas comunidades. Nesse contexto, as epístolas pastorais e as cartas católicas reforçaram o ensinamento sobre a espera da segunda vinda do Senhor, como manifesta­ção de sua glória (1Tm 6,14; Tt 2,13) e a realização do seu julgamento (2Tm 4,1.8). Reafirmaram a necessidade de esperar: “Olhem o agricultor: ele espera pacientemente o fruto precioso da terra, até receber a chuva do outono e da primavera. Sejam pacientes vocês também, fortaleçam os corações, pois a vinda do Senhor está próxima” (Tg 5,7b).

Na segunda carta de Pedro 3,1-13 há uma reflexão aprofundada sobre a parusia do Senhor. Vamos conjuntamente estudar esse texto, descobrir qual é sua mensagem para as comunidades cristãs do século I e quais luzes ele poderá lançar para as nossas comunidades de hoje.

 

2. Reavivar a fé na parusia

De maneira humilde, o escritor relembra: “Nas duas (cartas) procurei despertar com alguns conselhos o pensamento de vocês” (2Pd 3,1b). Não é um ensinamento novo, mas uma forma de recordar o que eles já sabem: a tradição apostólica (2Pd 1,3-4.10-12.15; 2,1). As comunidades cristãs são chamadas a relembrar o que os profetas anunciaram e as palavras de Jesus transmitidas por meio dos apóstolos.

Na tentativa de desmascarar os falsos mestres, o autor argumenta que a demora da parusia não é novidade. Já estava prevista pelos profetas (Am 9,10; Ml 2,17). As primeiras comunidades cristãs também já tinham sido alertadas sobre isso: “Por que vão aparecer falsos messias e falsos profetas, que farão sinais e prodígios para enganar até mesmo os eleitos se fosse possível. Prestem atenção! Eu estou falando tudo isso para vocês, antes que aconteça” (Mc 13,22-23; cf. Mt 7,15; 24,11; At 20,29-30).

Assim, não é necessário que as cristãs e os cristãos fiquem alarmadas(os) ou até mesmo percam a fé por causa do atraso da parusia. O texto de 2Pd 2,3 apresenta quem são os falsos mestres: zombeteiros e pessoas que se comportam de acordo com os próprios interesses. Em seguida, o autor apresenta o ataque que os falsos mestres fazem contra as comunidades: os profetas e Jesus anunciaram a vinda do reino; a primeira geração de cristãs e de cristãos acreditou, morreu e nada aconteceu (Mt 16,28; Mc 9,1; Lc 21,32; Jo 21,22-­23). Conforme o ensinamento dos falsos mestres, Deus não interfere no universo e nada tem a ver com a natureza.

Os falsos mestres caçoam da parusia e a negam, mostrando que nunca houve um julgamento nem destruição de todo o universo, como as comunidades cristãs estavam esperando (2Pd 3,10.12). A recusa dos falsos mestres em acreditar na segunda vinda de Cristo tem como base filosó­fica o ensinamento dos epicuristas, que não aceitam a intervenção de Deus no mundo, tanto na criação como no julgamento. Para eles, a ideia da providência divina é um absurdo. Essa filosofia tem seus adeptos.

Diante desse ataque, a segunda carta de Pedro defende a fé cristã com os seguintes argumentos:

a)  Deus julga o universo (2Pd 3,5-7). Os falsos mestres são chamados, por ironia, de ignorantes acerca da criação: os céus e a terra foram criados pela Palavra de Deus (v. 5). Por essa Palavra o mundo foi julgado e condenado uma primeira vez (v. 6; cf. 2Pd 2,5-6). É por essa mesma Palavra que, na parusia, o mundo será julgado e os injustos serão castigados pelo fogo (v. 7; cf. 2Pd 2,6). Esse texto é muito forte. Mas onde o autor se baseou para dizer isso? Pode ter sido na tradição judaica apocalíptica do seu tempo ou em textos do Antigo Testamento, como Deuteronômio 32,22, Isaías 66,15-16 e Sofonias 1,18.

 

b) A lógica de Deus é diferente da lógica humana (2Pd 3,8-9). O autor convida as comunidades cristãs a não esquecer que Deus é paciente: “Para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos são como um dia” (Sl 90,4). O tempo, para Deus, segue outra lógica. Aqui, chegamos ao coração do texto, onde o autor tira a dúvida sobre a demora da parusia: o Senhor não demora em cumprir sua promessa. “Deus tem paciência com vocês, porque não quer que ninguém se perca, mas que todos cheguem a se converter” (2Pd 3,9; cf. Jl 2,12-14; Jn 4,2; Eclo 18,10-11; Rm, 2,4).

 

c) A demora da parusia é um tempo de graça. A paciência de Deus pode até atrasar a parusia, mas ela chegará. A demora da parusia é um tempo de graça. Nesse dia, os céus se dissolverão, os elementos da terra se derreterão com o fogo e a terra desaparecerá (2Pd 3,10; cf. Is 34,4). Esse texto é ameaçador. Parece ser esse o recurso de que o autor lançou mão para defender a fé cristã contra o ataque dos falsos mestres. O mundo atual será destruído pelo fogo. Isso não é uma ameaça, mas tem o objetivo de animar as comunidades na vivência concreta da fé cristã.

 

d) Agir de maneira coerente com a fé cristã. Ter o nome de cristão ou de cristã não é suficiente para se salvar, mas é necessário viver de maneira coerente as exigências da vida cristã. Após ter falado contra os falsos mestres, o autor, como era costume numa carta ou testamento, passa a exortar as comunidades cristãs a ter um comportamento adequado, na certeza da parusia e do julgamento (2Pd 3,11-13).

 

O capítulo 3,1-13 da segunda carta de Pedro pode ser esquematizado da seguinte forma:

vv. 1-2: memória dos ensinamentos da tradição apostólica;

vv. 3-4: a crítica dos falsos mestres às comunidades cristãs;

vv. 5-7: a destruição do antigo mundo e do atual;

v. 8: primeiro argumento contra os falsos mestres;

v. 9: segundo argumento contra os falsos mestres;

v. 10: o dia do Senhor e o seu julgamento;

vv. 11-12: a espera ativa na vinda do Senhor;

v. 13: a espera por novos céus e nova terra.

 

A espera pelo dia de Deus não pode ser passiva; cada pessoa é chamada a viver seu compromisso cristão. Dessa forma, a esperança de “novos céus e nova terra, onde habitará a justiça” se realizará. Essa continua sendo a esperança de nossas comunidades, ao lembrarem: “Irá chegar um novo dia, um novo céu, uma nova terra, um novo mar. E neste dia, os oprimidos, numa só voz, a liberdade irão cantar”. Acreditar nesse sonho nos faz trabalhar para que ele se realize. As pequenas vitórias e as pequenas conquistas nos confirmam que é possível um mundo melhor.

Vamos buscar “novos céus e nova terra”. Que tal a gente procurar entender melhor de onde vem essa esperança?

 

3. Deus quer um mundo justo e solidário

Na Bíblia, encontramos alguns relatos que falam da destruição do mundo. Esse fato, normalmente, é entendido como castigo de Deus. Mas vamos retomar os argumentos da carta que estamos estudando para entender melhor essa questão. No texto de 2Pd 3,6 lemos: “Pela Palavra de Deus este mundo pereceu inundado pela água”. Aqui, o autor faz uma referência ao dilúvio como “fim do mundo”.

Vamos voltar ao relato do Gênesis (Gn 8-9). A nova criação começa com o ser humano e todos os seres vivos, bem como com a natureza. A bênção de Deus marca um novo começo: “Sejam fecundos, multipliquem e encham a terra” (Gn 9,1). Essa nova criação, como a primeira, é chamada a viver em harmonia com seus semelhantes, pois o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26). A segunda carta de Pedro, ao fazer referência ao dilúvio, quer enfatizar a nova criação de Deus.

A segunda carta de Pedro é o único texto do Novo Testamento que diz que o mundo será destruído pelo fogo (2Pd 3,10.12). O fogo é um elemento tradicional na tradição judaica para falar da revelação e do julgamento de Deus (Gn 15,17; Ex 3,2; Ez 1,4.27; Gn 19,24; Is 30,32-33; Os 8,14; Zc 9,4). No Salmo 74,1 a ira de Deus é vista como fogo: “Por que, ó Deus, esta rejeição sem fim, esta ira que fumega contra o rebanho do teu pasto?” A ira de Deus parece atingir as pessoas que lhe foram infiéis. É “com fogo que Javé fará justiça a toda a terra” (Is 66,16).

A destruição deste mundo, conforme o Terceiro Isaías, é para fazer ressurgir outro melhor: “Eu vou criar um novo céu e uma nova terra” (Is 65,17; 66,22). O autor da segunda carta de Pedro retoma essa mesma compreensão; ao afirmar que “nós esperamos, conforme a promessa de Deus, novos céus e nova terra” (2Pd 3,13). Esse é o sonho de uma nova sociedade; no entanto, o que está por trás desse livro é o cotidiano das comunidades cristãs, marcado pela situação de pobreza, opressão, dor e sofrimento.

O sonho de uma nova sociedade nasce com os pobres. São eles que esperam novos céus e nova terra. E qual é a característica dessa nova sociedade? Eis aqui, segundo a comunidade do Terceiro Isaías, dois passos concretos:

a) Novas relações sociais: os poderosos são convidados a sentar-se à mesa e partilhar com os pobres (Is 65,25). É preciso estabelecer a harmonia e a igualdade entre todas as pessoas (Is 66,18-22).

b) Acabar com o sistema de corrupção e de opressão vigente no templo (Is 66,1-2a).

 

A exigência para participar da nova sociedade é ouvir a palavra e praticar a justiça (Is 66,4). Veja só como as coincidências com 2Pd 3,11-13 são fortes. Na nova criação haverá justiça e só as pessoas que vivem a prática da justiça experimentarão essa nova realidade. Nosso compromisso de cristãs e de cristãos de viver essa mesma prática é permanente.

Convivemos com uma realidade que brada aos céus. A injustiça e a violência atingem os seres humanos e a natureza (Os 4,1-3). Eis alguns desses sinais que estão afetando a vida do nosso planeta: a falta de água potável atinge 2 bilhões de pessoas; 3 milhões de mortes são causadas anual­mente pela poluição do ar; 30 bilhões de toneladas de lixo são despejadas no meio ambiente; anualmente são produzidos 80 milhões de toneladas de plástico, material que não se decompõe na natureza; 90 milhões de hectares de florestas foram destruídos nos anos 90 em todo o mundo; 10% das espécies de árvores conhecidas correm risco de extinção. A lista continua… A nossa casa está sendo destruída.

O que fazer? Sentimo-nos impotentes diante dessa realidade. Mas não podemos cruzar os braços. É preciso somar forças, unir nosso grito com o grito das comunidades e grupos que estão lutando em favor da vida. A decisão de salvar a vida cabe a cada uma, a cada um de nós. Vamos unir nossas vozes e nossos braços para ajudar a construir a nova sociedade… “Sonho que se sonha só pode ser pura ilusão, mas sonho que se sonha junto é sinal de solução. Então vamos sonhar, companheiros, sonhar ligeiro, sonhar em mutirão”.

 

 

 

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