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Publicado em número 244 - (pp. 11-16)

Eu não vou castigar suas filhas por se prostituírem

Por Cecília Toseli; Maria Antônia Marques

Uma leitura de Oseias 4,4-14

Quem tem olhos para ver, caminha e encontra o corpo suado e sofrido de mulheres, homens, jovens, crianças e idosos puxando carroça nas ruas das grandes cidades. São catadoras e catadores de materiais recicláveis que, há mais de quarenta anos, prestam importante serviço à sociedade. Nunca ninguém se importou com a vida dessas pessoas nem com o destino do material coletado, que costumam chamar de “lixo”. Há algum tempo, porém, temos atingido níveis inadmissíveis de descarte de embalagens plásticas, papéis, alumínio etc. A coleta seletiva dos materiais recicláveis tornou-se necessidade urgente no programa das prefeituras. O “lixo” virou uma “mina de ouro” para certos empresários. De lá para cá, diríamos, usando a linguagem do profeta Oseias, que diversos setores da sociedade têm se “prostituído” na corrida desenfreada pelo lucro do “lixo”. Esses grupos passam por cima de catadoras e catadores e roubam o material que lhes garante a subsistência, sem sequer reconhecerem a importância histórica do seu trabalho na cidade.

No tempo de Oseias, a situação era semelhante. As pequenas aldeias camponesas, também sofriam muito com a prostituição dos grupos dominantes, que, não se importando com a vida das famílias e os valores da casa israelita, praticavam a corrupção e a violência, ávidos por lucro e poder. Vamos conversar com a comunidade de Oseias e ouvir o que ela tem a nos dizer sobre as formas de prostituição na realidade em que vivia.

 

1. A prostituição sagrada

A imagem da prostituição é muito usada na profecia de Oseias. Em geral, as pessoas leem e conhecem Oseias como o profeta que se casa com uma mulher de prostituição. E Javé é apresentado como o marido que condena sua esposa, neste caso o povo, por cometer prostituição. Mas como entender essa linguagem? Que tipo de prostituição é cometida?

O termo prostituição no livro de Oseias tem vários sentidos: indica as relações internacionais proibidas, a corrupção das elites políticas e religiosas e a própria religião do Estado — especialmente a religião que incentiva o culto de fertilidade praticado nos santuários do rei, chamado de “prostituição sagrada” (cf. Os 4,12-14).

Nas antigas cidades-Estado de Canaã, como Tiro dos sidônios (1Rs 16,29-34), existem os cultos a Baal oficial, o deus da chuva e da fertilidade. Nos cultos, além da oferta dos produtos em sinal de agradecimento à divindade pela colheita, há também muitos rituais de fertilidade, incluindo a celebração do encontro entre Baal e Anat, sua esposa e irmã. Esse encontro é representado por meio de relações sexuais entre mulheres e homens escolhidos(as) para serem prostitutos(as) sagrados(as) a serviço dos fiéis de Baal. Mas qual a origem do culto a Baal?

Uma das histórias do povo cananeu sobre as origens de Baal, deus da chuva e da fertilidade, diz o seguinte: Mot, a divindade da esterilidade e da morte, mata Baal. A deusa Anat, irmã e esposa de Baal, mata Mot, fazendo Baal retornar à vida. Essa história explica o calor e a seca durante os meses de maio a setembro, quando não cai uma gota de água sobre a terra de Canaã. É o período em que Baal está morto. Mas o reencontro apaixonado e a relação sexual entre Baal e Anat têm força de reiniciar a estação das chuvas, em outubro. Em seguida, o próprio Baal entra em combate com Mot, morre outra vez e, depois, volta à vida. Esse mito era celebrado anualmente.

No tempo de Oseias, nos santuários oficiais há rituais e cultos a Javé oficial com as mesmas características do culto a Baal, ou seja, celebrações nas quais se invoca a Javé como o deus da fertilidade, aquele que garante colheita para a terra, cria para os animais e filhos e filhas para as famílias. Mas com a crescente necessidade de produtos e pessoas para sustentar a política de Israel e o imperialismo da Assíria, sacerdotes e agentes do Estado promovem e até convocam filhas e noras para assumirem funções reprodutivas nos santuários.

Por um lado, a dominação da Assíria sobre Israel implica alto pagamento de tributo ao império, em produtos e às vezes em mão de obra. Por outro, para concorrer no comércio internacional e sustentar um exército que garanta a segurança interna, Israel também necessita de mais produtos e mão de obra.

Com o objetivo de aumentar a arrecadação, o Estado faz uso da religião. Nas festas anuais da eira, incentiva a prostituição de filhas e noras por meio do rito de fertilidade ao Javé “baalizado”, a fim de gerar mais filhos. O aumento da taxa de natalidade significa o aumento do número de pessoas para cuidar das lavouras, ingressar no exército, trabalhar nas obras públicas e nos serviços domésticos na corte. Em Israel, as mulheres tinham o costume de ter filhos somente depois de desmamar o mais novo. Isso levava uns três anos ou mais (cf. Gn 21,8; 1Sm 1,20; Os 1,8). Agora são obrigadas a ter filhos com intervalos menores. Dessa maneira, o Estado interfere no ciclo natural de reprodução da mulher, visando somente ao crescimento dos lucros. Os sacerdotes estão invadindo as aldeias e as eiras, apropriando-se das festas e dos rituais religiosos do povo somente para garantir o aumento da produção.

A festa na eira acontece no período da colheita. A eira é um espaço situado num lugar alto, em geral numa pequena colina, onde o vento facilita a debulha do trigo. É também um local de ritual religioso. Muitos casamentos são combinados nas eiras. Toda a população da aldeia, numa espécie de mutirão, trabalha junto: mulheres, homens, jovens, idosos e crianças. A colheita é grande e o tempo é curto; isso exige a colaboração de todos. É necessário arregaçar as mangas e trabalhar. Depois do cansaço, as pessoas se abrigam nas sombras das árvores e aí acontecem os rituais de fertilidade.

O fim da colheita é celebrado com muita festa, dança e ritos religiosos. O texto de Juízes 21,19-21 traz uma referência à festa da colheita: “‘Há uma festa anual de Javé em Silo, que fica ao norte de Betel, ao leste do caminho que sobe de Betel para Siquém, e ao sul de Lebona’. Sugeriram, então, aos benjaminitas: ‘Vão e escondam-se entre as vinhas. Fiquem observando e, quando as moças de Silo saírem para dançar, vocês saiam das vinhas e cada um de vocês rapte uma mulher para si dentre as moças de Silo e depois retornem com elas para o território de Benjamim’”. Os ritos religiosos, incluindo os cultos de fertilidade, são formas de agradecer ao Deus da vida pela colheita abundante, pelos frutos da terra. Mas o Estado e principalmente os sacerdotes estão distorcendo essas práticas e se apropriando dos cultos, das festas, das danças do povo e de seu corpo.

A profecia de Oseias condena o uso da religião em vista do enriquecimento das elites religiosas e políticas. Vejamos a crítica de Oseias.

 

2. Meu processo é contra ti, ó sacerdote!

Oseias 4,4-14 é um texto que pode ser dividido em duas unidades. Os vv. 4-10 apresentam um processo contra os sacerdotes e seus aliados. Eles são considerados os principais responsáveis pela situação do povo. Em seguida, os vv.11-14 apresentam as consequências da ação dos sacerdotes.

O texto tem início com uma acusação contra os sacerdotes: “Eu levanto uma acusação contra você, sacerdote!”. A acusação atinge também os profetas que comungam do mesmo projeto. A ação dos sacerdotes atingirá a própria mãe deles (cf. Os 4,5). Nesse caso, a imagem da mãe é usada para falar da nação. A mulher aparece como personificação do país.

O sacerdote tropeçará à luz do dia. Ele é mediador entre Deus e o povo. A sua função é ensinar o conhecimento de Deus. Porém, esses sacerdotes se distanciam cada vez mais de Javé, porque estão agindo como funcionários, vivendo à custa do pecado de outras pessoas. Uma vez que têm o direito de consumir as vítimas oferecidas pela expiação do pecado, preferem que aumente o pecado do povo para que aumentem também os seus lucros (cf. Os 4,8).

Em seguida, o texto afirma que o profeta tropeça de noite. A noite é o momento dos sonhos, das visões e da presença de Deus (cf. Sl 139,11-12). Há profetas que estão sendo coniventes com a corrupção dos sacerdotes. Eles não são mais porta-vozes do povo pobre e oprimido, mas sim do Estado. Por isso, juntamente com os sacerdotes, também estão levando o país à destruição.

“O meu povo está morrendo por falta de conhecimento” (Os 4,6). O que está matando o povo? Certamente é a política de alianças com as nações estrangeiras e a busca desenfreada de produtos para manter o comércio (cf. Os 7,8-12) e a exploração do povo (cf. Os 7,1). Essa prática vai contra a aliança de Javé com seu povo, baseada no projeto da partilha, da solidariedade e da justiça. Mas o sacerdote, que deve recordar esses ensinamentos ao povo, é o primeiro a rejeitar o conhecimento de Deus. Seus interesses seguem a lógica econômica das elites dominantes.

O texto parece refletir a lei do olho por olho, dente por dente. Os sacerdotes rejeitam o conhecimento, por isso serão rejeitados por Javé. Além do sacerdote, seus filhos também serão rejeitados. Na visão de Oseias, Javé rejeita os sacerdotes e seus aliados, mas não abandona o povo, que continua sendo chamado de “meu povo” (cf. Os 4,6.8.12).

Em Os 4,7 o castigo dos sacerdotes será trocar a sua glória por vergonha. Em Oseias 9,11 afirma-se: “A honra de Efraim voará como pássaro, sem nascimento, sem gravidez, sem concepção”. A honra está ligada com a capacidade de procriar. Nesse sentido, a honra dos sacerdotes será transformada em vergonha: eles se tornarão estéreis. A desonra dos sacerdotes é consequência da corrupção política e religiosa que eles estão promovendo: “vivem do pecado do meu povo e querem que o povo continue pecando” (Os 4,8).

O centro da atenção de Os 4,4-6 é o pecado dos sacerdotes. Ao passo que Os 4,11-14 destaca os vários cultos religiosos praticados pelo povo. O elo que une os dois oráculos é o versículo 9: povo e sacerdotes serão castigados por Deus. O castigo consiste em comer e não se saciar; prostituir-se e não se multiplicar (cf. Os 4,10); e porque eles se alimentam dos sacrifícios que o povo oferece pelos pecados, a sua vergonha será a sua incapacidade de procriar. O texto conclui que o maior pecado dos líderes religiosos é o seu afastamento de Javé.

Em Oseias 4,11-14 podemos encontrar a sabedoria que nasce no meio do povo. O texto traz dois provérbios populares: “O vinho e o licor tiram a razão” (Os 4,11) e “um povo sem conhecimento caminha para a perdição” (Os 4,14). E Os 11,12-13 mostra o envolvimento do povo com diversas práticas religiosas: “Consulta um pedaço de madeira, e seu bastão lhe dá uma resposta”. O texto tanto pode estar se referindo à deusa Aserá, associada ao símbolo da árvore, como aos ídolos feitos de madeira (cf. Dt 4,28). E o profeta continua: “Vivem oferecendo sacrifícios no alto dos montes, queimando incenso sobre as colinas ou debaixo de um carvalho, de um salgueiro, ou de um terebinto, cuja sombra lhes agrade” (4,13). Esse verso nos lembra o costume popular de apresentar oferendas ou incenso para agradecer às divindades as colheitas e as crias dos animais.

Mas o texto adverte que um espírito de prostituição os extravia e os afasta de Deus (cf. Os 4,12; 5,4). Essas palavras podem conter uma crítica especialmente aos sacerdotes, agentes oficiais da religião, que invadem as eiras e deturpam as práticas populares. Quando os sacerdotes incentivam homens e mulheres à prostituição, em vista do comércio e do lucro, são eles, na verdade, que estão tomados por um espírito de prostituição. Segundo Oseias, os sacerdotes são os principais responsáveis pela desestruturação da casa.

Por isso, o profeta proclama que as mulheres não serão castigadas: “Eu não vou castigar suas filhas por se prostituírem, nem suas noras por cometerem adultério, pois vocês mesmos andam com prostitutas e sacrificam com as prostitutas sagradas” (Os 4,14). Assim, parece-nos que a crítica no tempo de Oseias não é contra as diversas manifestações religiosas existentes nas aldeias, mas sim contra a apropriação que os sacerdotes estão fazendo da religião popular. E, nesse sentido, as mulheres são as mais atingidas pelo sistema oficial.

A religião oficial busca controlar o corpo das mulheres, manipulando a sua capacidade de produção e reprodução da vida a fim de garantir os interesses políticos e econômicos do Estado. Mas a comunidade profética reage: “Efraim está ferido, suas raízes já secaram; não dará mais frutos. E, mesmo que ainda venham a ter filhos, eu farei morrer o querido fruto do seu ventre”; “Chegam-lhe as dores do parto, mas o filho é um imbecil: ao chegar a hora de nascer, ele não sai do seio materno” (Os 9,16; 13,13).

Para as famílias israelitas, os filhos são grande sinal da bênção divina, garantia da continuidade do nome e da vida da casa. Para uma mulher, a possibilidade de gerar filhos representa o reconhecimento público do seu valor. Dizer que as mulheres não vão conceber, ou que seus filhos nascerão mortos, é um jeito forte de fazer oposição ao Estado e denunciar o processo de desintegração da casa israelita, pois é no corpo das camponesas e dos camponeses que a voz profética se manifesta.

 

3. A mulher no Antigo Israel[1]

A antiga sociedade israelita é patrilinear, patrimonial e patrilocal. O sistema da honra e da vergonha é fundamental. A família ampliada consiste de três ou até quatro gerações que vivem juntas sob a autoridade de um patriarca. O direito de herança é do primogênito. Os jovens têm menos direitos. A geração masculina mais velha recebe maior respeito, mas exerce menos poder dentro da família.

O poder e o privilégio das mulheres dependem de seus tutores. A filha solteira está na dependência do pai e, depois de casada, passa a depender do marido. No livro do Êxodo 20,17, a mulher aparece na lista de propriedades do marido, junto com o escravo, a escrava, o boi e o asno. O marido é chamado de ba’al, palavra hebraica que significa dono. O marido é obrigado a pagar um valor em dinheiro ao pai da noiva ou substituir esse valor em forma de serviço (cf. Gn 29,15-20; Jz 1,12; 1Sm 18,25.27).

O casamento é patrilocal. A jovem deixa a sua casa de origem e entra para a família do marido, ambiente muitas vezes hostil e desconhecido. Ela tem de se adaptar. O amor é fator secundário. O casamento é meio para fazer ou estreitar alianças com outras casas ou outros clãs. No sistema patriarcal, é aceitável ter mais de uma esposa. Ter mais de uma esposa aumenta o número de descendentes e também a produção da casa. A esposa principal tem uma posição superior em relação às outras esposas e concubinas.

A jovem esposa que passa a fazer parte da casa do marido enfrenta várias dificuldades. Ela se torna membro integral da nova família somente quando nasce o primeiro filho. Mas, se o marido tem outras esposas, o nascimento do filho gera ciúme e brigas (cf. Gn 16,1-15; 21,8-21). Se ela deixa a casa de seu marido, o que é uma desonra, deve retornar à casa de seu pai (cf. Jz 19,2-3). Como podemos constatar, nessa estrutura patriarcal, o homem ocupa posição privilegiada.

A valorização da mulher está relacionada à fertilidade. Sua principal contribuição para a casa patriarcal é gerar filhos, para que se garanta a continuidade do nome da família, da casa e da herança (cf. Gn 38; Rt 1-3). Por isso, o controle sobre o corpo e a sexualidade das mulheres — esposas, filhas e irmãs — é tão importante. É questão de preservar a honra. No Israel Antigo, as mulheres são dependentes dos homens social e economicamente. A honra delas depende dos homens aos quais estão ligadas (cf. Jz 19,11-30). Por sua vez, a honra de um homem é medida por sua riqueza, coragem, força e habilidade para prover e defender a honra de sua família.

Na Bíblia hebraica, vergonha ou desgraça aparece em oposição à honra, evocando sentimentos de incapacidade e fraqueza. Nessa cultura, o homem é envergonhado pela perda da riqueza ou da coragem; pela incapacidade de proteger a honra de sua família; pela impotência sexual. A mulher pode ser envergonhada por seu forte desejo, por sua independência e confiança, por desrespeitar o homem ou por sua liberdade sexual.

Na estrutura patrilinear, a honra do homem depende do comportamento sexual da mulher — esposa, filha, irmã ou mãe. Há várias estratégias masculinas para controlar as mulheres; por exemplo, a insistência para que elas usem o véu em lugares públicos, a segregação e a restrição de sua atuação social (cf. Pr 7,10; 12,4). Uma mulher sem-vergonha é a prova de que oshomens da casa não têm honra, não têm capacidade para controlar e preservar a honra de sua família. Dessa forma, a casa perde a honra pública.

Nas sociedades baseadas no sistema social da honra e da vergonha, o adultério constitui a ofensa máxima. Ele representa a violação do direito do homem sobre a sexualidade da mulher, além de pôr em dúvida a paternidade. É bom lembrarmos que a questão da paternidade envolve o direito à herança, a continuidade do nome, a pertença à família e até mesmo as condições de subsistência. Na estrutura patrilinear, o homem precisa ter certeza de que a criança é seu filho legítimo. O adultério faz o marido e a sua casa perderem a honra. A mulher sem-vergonha revela o fracasso do homem em controlar o corpo e a sexualidade das mulheres e preservar a honra de sua família.

A punição para o adultério é o apedrejamento para a mulher e o homem (cf. Lv 20,10; Dt 22,22). Mas, na realidade, a parte castigada quase sempre é a mulher (cf. Gn 38,24). Conforme a Lei, “uma só testemunha não é suficiente contra alguém, seja qual for o crime ou pecado. Em todo pecado que alguém tiver cometido, o processo será aberto pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas” (cf. Dt 19,15). Esse processo nem sempre é possível e, além do mais, a mulher é mais vulnerável pelo fato de que pode ficar grávida. Outra forma de castigo é tirar a roupa da mulher e expô-la publicamente (cf. Os 2,5; Ez 16,37-39).

Nessa perspectiva da honra e da vergonha, a mulher que faz sexo fora do casamento desonra a sua família. O homem não é castigado por fazer sexo, a menos que ele tenha se envolvido com uma mulher casada e tenha sido pego no ato (cf. Dt 22,22-29). O seu relacionamento com as prostitutas é aceitável (cf. Gn 38,12-23; Js 2,1-7). De acordo com a estrutura da sociedade israelita, a principal causadora da ofensa no adultério é a mulher.

No contexto cultural do século oitavo antes de Cristo, talvez possamos dizer que a profecia de Oseias represente algum avanço. Em 2,21, por exemplo, admite o casamento com uma mulher prostituta; e em 3,3, homem e mulher se comprometem juntos a criar nova relação. Mas, fruto também dos condicionamentos de sua época, a profecia de Oseias revela suas limitações, como podemos ver quanto ao uso da metáfora do casamento, do marido e da esposa.

Na Bíblia há diferentes imagens para falar do relacionamento entre Deus e Israel. A primeira vez que aparece a metáfora do casamento é no livro de Oseias. Nessa metáfora, a imagem do marido é usada para representar a divindade, e a imagem da mulher para Israel. Essa comparação é um reflexo da sociedade do Antigo Israel, na qual o homem ocupa uma posição privilegiada e a mulher está sujeita a ele. Na visão profética, o castigo de Deus tem como objetivo a conversão do povo, porém, ao mesmo tempo, justifica o modo de agir dos homens em relação às mulheres, também as agressões físicas.

Em Oseias, a metáfora de marido e esposa para falar da aliança entre Deus e Israel está profundamente arraigada na cultura de sua época. A comparação é construída com base em condicionamentos sócio-históricos que determinam o que significa ser mulher e homem naquele contexto. Hoje continuamos vivendo numa sociedade patriarcal e androcêntrica, na qual muitas são as formas de controle do corpo de homens, mulheres, crianças, jovens e idosos e de violência contra eles. As pessoas são obrigadas a se adequar a papéis que lhes foram impostos, sem, muitas vezes, poderem manifestar sua vontade e realizar o seu ser. Com isso, desrespeitamos as pessoas e os povos como eles são, com suas diferenças de raça, idade, sexo, religião, cultura… No relacionamento, por exemplo, entre marido e esposa, o homem usufrui de muitos privilégios e se torna senhor de sua esposa, a qual, muitas vezes, aceita esse papel de passividade e submissão. Porém, com alegria, assistimos também ao desabrochar de nova mentalidade, com base na qual mulher e homem vivem verdadeiras relações novas de parceria e igualdade. Oxalá possamos caminhar, cada vez mais, nessa direção.



[1] Cf. Galé A. YEE, “The Book of Hosea. Introduction, Commentary and Reflections”, In: The New Interpreter’s Bible. Vol VII, Nashville, Abingdon Press, 1996, pp. 206-209.

Cecília Toseli; Maria Antônia Marques