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Publicado em número 226 - (pp. 14-20)

Falar, olhar, tocar, levantar e caminhar junto

Por Maria Antônia Marques; Shigeyuki Nakanose, svd

Uma leitura de Atos 3,1-10

 

“Uma esmola, pelo amor de Deus!” Com frequência ouvimos esse pedido no metrô, nos ônibus, nos bancos, nos estabelecimentos comerciais, nas portas das igrejas, nas praças e avenidas das pequenas e grandes cidades. O número de empobrecidas(os) cresce de maneira assustadora. Encontrar-se com pessoas que vivem na mais completa miséria já faz parte do nosso cotidiano.

Há alguns dias, numa das avenidas da cidade de São Paulo, vimos um senhor que transitava entre os carros, pedindo esmolas. Ele estava bêbado. A distância, limitamo-nos a emitir este juízo: “Ele está bêbado e pode ser uma pessoa perigosa”. Quando se aproximou do carro em que estávamos, nosso coração ficou apertado, sentimo-nos constrangidos com aquela situação. A sua presença nos questionou. Uma profunda tristeza estava estampada no rosto daquele homem. Ao nos vermos frente a frente com ele, não conseguimos ficar indiferentes à sua dor. Continuamos nosso trajeto em silêncio, porém a imagem dele nos acompanhou por vários dias.

Esse quadro faz parte do cotidiano de uma sociedade capitalista, individualista, excludente e esmagadora de uma grande maioria. É uma realidade que, muitas vezes, passa a ser aceita como algo irreversível. A ideologia globalizada, de certa maneira, já conseguiu fechar os olhos e trancar a mente e o coração de muitos seres humanos, que, por isso, são incapazes de perceber o erro que existe por trás dessa realidade triste. Mas as pessoas que possuem o mínimo de sensibilidade ética não conseguem ficar alheias à realidade de dor e de opressão vivida por um grande número de irmãs e irmãos colocados à margem da sociedade, à beira do caminho.

É uma questão que nos desafia e nos inquieta. Essa mesma preocupação também fazia parte da vida das primeiras comunidades cristãs. Como as primeiras seguidoras e seguidores de Jesus se posicionaram diante das situações de pobreza e abandono dos pobres e pequenos? Na busca de encontrar resposta a essa questão, presente também em nossas comunidades atuais, vamos reler Atos 3,1-10. Este texto narra o encontro de Pedro e João com o homem aleijado. Um encontro que abre novas possibilidades de vida.

Na porta do Templo era muito comum encontrar pobres, doentes, cegos e paralíticos (cf. Jo 5,3). Nesse lugar, essas pessoas costumavam pedir esmolas. Era uma das poucas alternativas que lhes restavam para sobreviver. Atos 3,1-10 retrata essa situação. Que tal um mergulho no tempo para melhor entender o contexto socioeconômico, político e religioso vivido pelas primeiras comunidades cristãs?

 

1. Mergulhando na história

Desde o ano 63 a.C. os romanos conquistaram a Palestina pela força. Os novos dominadores deram continuidade à política implantada pelos gregos. A escravidão, o comércio, o latifúndio e os altos impostos eram elementos básicos na economia do império. Os imperadores se consideravam como homens escolhidos pelos deuses para impor a lei e a paz. Os grupos ou pessoas que se revoltavam contra o império eram mortos.

O império crescia à custa do sofrimento do povo. Nesse período foram construídas fortalezas, pontes, estradas, portos, templos, teatros, praças, palácios, estádios etc. Nessas construções trabalharam muitas pessoas em regime de corveia — aquelas que vendiam sua mão de obra para o pagamento de tributos — ou escravos obtidos no comércio de pessoas ou prisioneiros de guerra. O brilho e o esplendor do império romano ocultavam uma situação de dor e opressão.

A força militar garantia a submissão do povo. O exército incendiou e destruiu várias cidades. Muitas pessoas foram mortas. A passagem do exército romano deixava atrás de si uma situação de desolação: mulheres abusadas sexualmente, muitos homens mortos, grande quantidade de órfãos e de jovens mutilados.

No império greco-romano, a sociedade era constituída de ricos e pobres. Na classe dos ricos podemos nomear o imperador, os nobres, os notáveis, os chefes da casa, os cidadãos livres e os altos militares. A classe dos pobres era formada por diaristas, trabalhadores manuais, mendigos, biscateiros, endividados, escravos ou semiescravos. Ricos e pobres não se misturavam. Sentar-se à mesma mesa, nem pensar. A divisão de estratos sociais era justificada pela religião e pela filosofia.

A situação era gravíssima, principalmente para os camponeses, que não conseguiam pagar os impostos e acabavam perdendo suas terras. Havia o imposto do solo, entre 20 e 25% do produto da terra, que podia ser pago em dinheiro ou com o próprio produto. As mulheres a partir de 12 anos e os homens a partir dos 14 anos, em todo o império, tinham de pagar 1 denário por ano, isso equivalia a uma jornada diária de trabalho.

Os recenseamentos eram uma forma de controlar o pagamento do imposto pessoal. As pessoas ainda eram obrigadas a pagar pedágios para levar suas mercadorias de um lugar para o outro. Os impostos eram pesados e abusivos. Alguns indivíduos compravam o direito de recebê-los.

Para os judeus, a situação tornou-se ainda pior. Além do tributo exigido pelos romanos, havia o tributo religioso, instituído pelo Templo, centro da vida social e econômica dos judeus, local de orações, peregrinações, sacrifícios e ofertas. Esse local também era uma espécie de tesouro público. Os impostos judaicos eram destinados à manutenção e conservação do prédio, como também às despesas dos sacerdotes.

Os tributos eram muitos. Eis a lista dos principais:

— Todo israelita maior de 13 anos era obrigado a pagar 2 denários por ano ao Templo.

— O “primeiro dízimo”, ou seja, a obrigação de entregar 10% de todo o produto da terra e do comércio agropecuário ao longo do ano.

— O “segundo dízimo” feito no quarto e no quinto ano. Depois de ter pago o primeiro dízimo, a pessoa tinha a obrigação de gastar, na cidade de Jerusalém, a décima parte dos produtos da terra e do gado.

— O “dízimo dos pobres”, no terceiro e no sexto ano, substituía o segundo dízimo nesse ano. A décima parte de toda a produção devia ser enviada para Jerusalém e distribuída aos pobres.

— A colheita do quarto ano era destinada a Javé: uma parte era depositada no altar e a outra encaminhada aos funcionários do culto.

 

Fora de Jerusalém, o controle dos tributos religiosos era feito por meio das sinagogas. Em cada comunidade judaica local havia uma sinagoga. Ela recebia os produtos e os encaminhava para Jerusalém.

A sinagoga nasceu da necessidade do grupo de se reunir, ler, estudar e interpretar as Escrituras e as leis. Com o tempo, tornou-se uma instituição forte que passou a controlar a vida de seus membros. As leis controlavam todas as dimensões da vida humana. As leis referentes ao sábado e as da pureza eram as principais. Uma pessoa só podia participar da vida social se fosse pura.

Mas quem era considerado puro? Aquela ou aquele que era judeu de pai e mãe e que conseguia estar em dia com todas as exigências da Lei, principalmente com os tributos religiosos. Isso era quase impossível para os pobres. A pessoa era controlada pela polícia do império romano e pelo sistema religioso do Templo e da sinagoga.

Para muitos, a situação se tornou insustentável. Nas ruas e nas praças havia pessoas sem trabalho, famintas, abandonadas e doentes (cf. Mt 20,1-7; Jo 5,3). Angústia e tensão rondavam o cotidiano de muitas pessoas (cf. Mt 6,25-31). Era comum encontrar pessoas loucas, consideradas possuídas por espíritos maus (cf. Lc 6,18). Muitos judeus foram obrigados a emigrar para outros países, eram os chamados judeus da diáspora. Eram muitos e estavam em todas as principais cidades do império.

Na Palestina, muitas pessoas pobres fugiram para as montanhas e começaram a praticar assaltos e roubos (cf. Lc 10,30). Muitas pessoas viviam nas portas dos templos e santuários pedindo esmolas. Semelhante à nossa situação de hoje, em qualquer estabelecimento público encontramos com pedintes, especialmente nas portas das igrejas.

 

2. Na porta do Templo

Pedro e João estão subindo ao Templo para a oração das três horas da tarde (At 3,1). As seguidoras e os seguidores de Jesus continuaram ligados ao Templo e às suas tradições ancestrais. A única diferença é que as pessoas que passaram a fazer parte do movimento de Jesus acreditavam nele como o Messias e tentavam seguir no mesmo caminho. Elas e eles só deixaram de frequentar o Templo quando foram obrigados.

Na cura do aleijado, a palavra “templo” aparece seis vezes (At 3,1.2.3.8. 10). Parece que o autor quer ressaltar a importância desse lugar. Não é dentro do Templo que acontece o milagre, mas no espaço que as pessoas impuras — pobres, doentes, estrangeiros, aleijados — e os animais podiam entrar (At 3,1-10).

Para o judeu, frequentar o Templo de Jerusalém era o máximo. Sentia-se envolvido pelo sentimento religioso, por todas as tradições que envolvem esse lugar e, ao mesmo tempo, maravilhado por aquela obra grandiosa. É o mesmo sentimento que muitas pessoas, ainda hoje, experimentam diante do Santuário de Aparecida. Quem já enfrentou aquela enorme fila para contemplar a imagem da santa também experimentou forte emoção religiosa. Deus revela-se por meio de sinais e gestos simples. Ao mesmo tempo, deparamos com aquela enorme construção. As repartições são muitas. Há uma grande nave central e várias laterais. No subsolo existem várias salas para os romeiros, a sala dos milagres e muitas outras… Um dia é pouco para conhecer bem a Basílica de Aparecida.

Vamos visitar e conhecer o Templo de Jerusalém? Esse Templo passou por uma reforma que durou mais de 80 anos (20 a.C.-62 d.C.). Aproximadamente 18.000 pessoas trabalharam nessa obra. O Templo era formado por pátios murados e separados por grades. Havia o pátio dos gentios com livre acesso para todos; era separado do Templo e dos outros pátios. Aí estava o pórtico de Salomão, o mercado de animais para os sacrifícios e o câmbio de moedas.

O segundo pátio era para os judeus. Os estrangeiros, os doentes e os aleijados não podiam, sob pena de morte, chegar ao segundo pátio. Para passar do primeiro para o segundo pátio havia a porta chamada Formosa. No segundo pátio havia três átrios: um para as mulheres, outro para os judeus e um terceiro reservado aos sacerdotes, onde ficava o altar do Templo. Somente na festa dos Tabernáculos é que os homens podiam entrar nesse átrio.

Na porta Formosa, Pedro e João se encontram com um coxo de nascença que era colocado nesse local todos os dias. Mas quem é esse homem que ficava na porta do Templo esperando a esmola dos outros para sobreviver? O homem aleijado representa o povo pobre e oprimido à espera de uma “esmolinha pelo amor de Deus”.

Em Atos 3,1-10 a palavra “esmola” aparece três vezes (v. 2.3.10). No antigo Israel, a preocupação mais forte era fazer justiça, ou seja, denunciar o sistema opressor e restabelecer uma sociedade baseada na justiça, na partilha, na solidariedade e no bem comum de todas(os). No exílio nasce uma nova preocupação: ser justo em nível individual. E ser justo era cumprir as exigências da Lei de Moisés. As leis judaicas, especialmente a observância do sábado, a exigência da circuncisão e as obras da piedade — oração, esmola e jejum —, foram supervalorizadas (cf. Tb 1,3). O cumprimento da lei foi colocado acima da pessoa.

As leis da pureza eram fundamentais. A lei do puro e do impuro definia quem estava mais perto e quem estava mais distante de Deus (Lv 12). Uma pessoa doente ou com alguma deficiência física era considerada impura por causa de algum pecado, uma vez que a doença era vista como castigo de Deus (cf. Ex 20,5; Jo 9,2). O simples contato com pessoas ou coisas impuras já era suficiente para tornar o outro impuro, impedindo-o de participar do culto no Templo e, consequentemente, da salvação.

Um judeu, para ser puro diante de Deus, tinha de cumprir com as exigências da Lei: participar das festas, pagar os dízimos e praticar as obras de caridade (cf. Tb 4,6-11; Eclo 17,17-18; Dn 4,24). O homem aleijado está na porta do Templo pedindo esmolas. Dar esmola passou a ser um meio para os judeus conseguirem a salvação.

Os pobres, os doentes, os aleijados e todos os marginalizados passaram a ser objetos daqueles que precisavam cumprir a Lei para serem purificados diante do Deus do Templo. O ouro e a prata tinham o poder de comprar a salvação. Assim, na cura do aleijado, as comunidades cristãs, sem riquezas para partilhar, agem na contramão dessa maneira de pensar: querem que o outro e a outra tenham vida em plenitude (cf. Jo 10,10).

Nesse contexto, o aleijado está aí, pede uma esmola e espera recebê-la. Pedir esmola é sua única iniciativa. Pedro e João olham fixamente para o homem. Em seguida, Pedro pede que o homem olhe para eles (At 3,3-4). O texto continua: o homem olhou, esperando receber alguma coisa (At 3,5). Aí vem a surpresa… Surpresa para o homem aleijado e também para o(a) leitor(a).

Pedro olha o homem paralítico e pede que ele também olhe para eles. O olhar estabelece igualdade. Esse olhar, como o olhar de Jesus, tem a força de libertar, faz a pessoa tomar consciência da força que existe dentro de si. É um olhar que ressuscita, que produz vida nova. Nesse olhar o homem paralítico se reencontra, e o mesmo deve ter acontecido com Pedro e João. Ele se vê refletido no olhar do homem que está à sua frente.

Pedro e João não têm moedas para dar, mas não ficam indiferentes ao clamor do homem paralítico. Oferecem o bem maior que eles têm: o nome de Jesus. É em nome de Jesus Cristo, o Nazareu, que eles abrem novas possibilidades para o homem paralisado. Os apóstolos ordenam: “Levante-se e comece a andar” (At 3,6). Uma palavra que tem o poder de salvar. Pedro concretiza a palavra dada: “Pedro pegou a mão direita do homem e o ajudou a se levantar” (At 3,7).

Ao pegar a mão direita do homem aleijado, Pedro rompe com a barreira imposta pela lei do puro e do impuro: ele toca um homem que era considerado maldito de Deus e lhe devolve a alegria de viver. O gesto da comunidade cristã ajuda a pessoa a ressuscitar, integra-a na vida social e religiosa: “E entrou no Templo junto com Pedro e João, andando, pulando e louvando a Deus” (At 3,8).

A comunidade cristã, assumindo a mesma prática de Jesus, testemunha que o tempo messiânico já chegou: “Então, os olhos dos cegos vão se abrir, e se abrirão também os ouvidos dos surdos; os aleijados saltarão como cervo, e a língua do mudo cantará, porque jorrarão águas no deserto e rios na terra seca” (Is 35,5-6). O homem paralítico é curado. Agora ele ganha autonomia, não precisa ser carregado por outros. Ele recupera suas forças para andar com as próprias pernas.

Devolver ao outro a alegria de viver é sinal claro da presença de Deus entre o seu povo. O homem dá um salto qualitativo em sua vida: de paralítico, dependente de outras pessoas, ele passa a caminhar com as próprias pernas. Agora ele tem autonomia de vida. A alegria é muito grande. O homem curado entra no templo andando, pulando e louvando a Deus. Isso nos faz pensar em alguns salmos nos quais o justo agradece a cura e a salvação de Deus (Sl 7,18; 13,6; 86,12). A salvação é para todas e todos.

O homem era paralítico desde o nascimento. Ou seja, durante toda a sua existência. As chances desse homem voltar a andar eram mínimas, uma condição quase irreversível. As comunidades dos Atos, por volta do ano 85, estavam paralisadas, dominadas e subjugadas por dois sistemas: o religioso e o político.

 

3. A prática das primeiras comunidades cristãs

As comunidades cristãs no final do primeiro século enfrentaram muitas dificuldades. Elas foram pressionadas pelo império romano e pelo judaísmo oficial. Os conflitos eram muitos, tanto em nível externo como interno, e estavam paralisando as comunidades. Assim, as comunidades dos Atos se veem retratadas, como num espelho, na história do homem paralítico desde o nascimento. Nesse contexto, a prática de Pedro e João é relida pelas comunidades para reanimá-las na caminhada.

A vida das comunidades piorou após a destruição do Templo de Jerusalém. Isso aconteceu por volta do ano 70 d.C. O conflito acirrou-se no ano 66 d.C., quando os romanos saquearam o Templo de Jerusalém. Os vários grupos de judeus, embora tivessem posições diferentes, uniram-se para lutar contra os dominadores. Esse movimento ficou conhecido como a guerra judaica (66-73 d.C.). O povo judeu foi derrotado pelos romanos. Um verdadeiro massacre. Sobreviveram apenas os judeus de linha farisaica e os judeus cristãos.

Após a guerra, o grupo dos fariseus começou a reorganizar a vida do povo. Os fariseus e os escribas exerciam suas atividades nas sinagogas, com a função de explicar e interpretar a Lei. Aos poucos, os judeus fariseus foram-se fortalecendo e a sinagoga passou a ser uma forte instituição para garantir, proteger e controlar a vida do povo. Os romanos perceberam que seria vantajoso para eles se aliar aos judeus fariseus.

A aliança com os romanos favoreceu o desenvolvimento dos grupos de linha farisaica. Surgiram muitos grupos, entre eles a Academia de Jâmnia, fundada pelo rabino Iohanan ben-Zakai. Alguns grupos de fariseus e escribas conseguiram o direito de interpretar e aplicar a Lei, utilizando-a também para cobrar tributos do povo judeu. Isso interessava aos romanos.

O uso da Lei como mecanismo de controle do povo judeu foi intensificado. O ensino da Lei era feito por meio da sinagoga. Por volta do ano 85, as sinagogas estavam espalhadas por toda a Ásia Menor. Em cada cidade, as comunidades judaicas desenvolveram uma organização independente, com seu conselho local e administração própria de suas finanças. Elas estabeleceram locais para estudo, culto e sepultamentos; ofereciam ajuda aos indigentes e mantinham tribunais para julgar disputas entre judeus (cf. Mt 23,34). As sinagogas funcionavam como uma cidade dentro da cidade.

Alguns judeus, na tentativa de preservar a sua identidade como grupo e manter seus interesses, começaram a exigir uma observância rigorosa da Lei. Renasceu o nacionalismo judaico: só o judeu fazia parte do povo eleito. Estrangeiros, doentes, pobres, mendigos, escravos eram considerados impuros, porque não eram abençoados por Deus. Os principais sinais de bênção para o povo judeu eram: riqueza, descendência e vida longa (cf. Dt 30,15-20; Pr 3,2).

A opressão era muito grande. Havia muitas pessoas vivendo à margem da sociedade, numa verdadeira situação de isolamento — semelhante às que tinham alguma doença contagiosa. O relacionamento entre as pessoas era medido pela observância rigorosa da Lei. Os sentimentos eram medidos. O ser humano se torna objeto da Lei. Nesse mundo legalista, a comunidade cristã faz ecoar um grito contra o formalismo das relações. A comunidade, relembrando, recontando e relendo o encontro de Pedro e João com o aleijado de nascença, propõe romper a lei do puro e impuro para ir ao encontro da outra ou do outro.

Pedro olha, fala, toca e ajuda o aleijado a se levantar, em nome de Jesus de Nazaré. Essa prática da comunidade é uma retomada da prática de Jesus. Olhar, falar, tocar e fazer levantar são gestos presentes no relacionamento de Deus com o seu povo (cf. Ex 3,7-8a), de Jesus com as suas seguidoras e seus seguidores (cf. Mc 10,21) e da comunidade cristã que procura se manter fiel aos ensinamentos de Jesus. Mas qual a importância desses gestos na vida das pessoas?

 

Olhar: O olhar não significa simplesmente ver, perceber, enxergar, mas também tem o sentido de um encontro existencial: Jesus olha para o jovem rico com amor (Mc 10,21). Olhar com amor significa olhar atentamente, com afeição e carinho. É acolher. Isso possibilita compartilhar da vivência da outra ou do outro. É a tentativa de estabelecer relação com quem é olhado. Vamos lembrar também o olhar de Jesus a Pedro: “Então o Senhor se voltou, e olhou para Pedro” (Lc 22,61). Esse olhar leva Pedro a tomar consciência de si… E Pedro chorou amargamente. Em Atos dos Apóstolos podemos ler o encontro entre Pedro e o aleijado que primeiramente acontece pelo olhar (At 3,4-5), deparamos também com o olhar de Paulo que recrimina o mago Elimas (At 13,9) e, mais adiante, o olhar de Paulo que cura o homem paralítico (At 14,9). Olhar e ser olhada(o). No olhar da outra ou do outro nós nos enxergamos. Como é bom sentir, nos vários olhares que encontramos no dia a dia, acolhida e ternura. É um afago no coração. Outra maneira eficaz de nos aproximarmos das pessoas é o falar.

 

Falar: A palavra tem a força de criar e recriar: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). A palavra é sagrada. Assim nossas comunidades cantam: “Palavra não foi feita para dividir ninguém. Palavra é a ponte onde o amor vai e vem”. A palavra pode nos aproximar ou nos distanciar das pessoas. Uma palavra bem-dita é libertadora, abre novas perspectivas e possibilidades. A palavra pode curar o outro de sua solidão social. A palavra de Jesus é eficaz, tem o poder de curar e libertar (cf. Mc 1,21-38; 2,5.11). As curas realizadas por Jesus são a concretização da palavra: “Dize uma só palavra e o meu empregado ficará curado” (Mt 8,8). Existe uma unidade entre a palavra e a ação de Jesus: Deus o enviou para anunciar a boa notícia aos pobres: “Enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos” (Lc 4,18). As comunidades cristãs assumem a mesma prática de Jesus: Pedro e João se dirigem ao homem paralítico e Pedro fala: “Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho eu lhe dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareu, levante-se e comece a andar!” (At 3,6). Com essa palavra eficaz, eles evocam a presença de Jesus, reconhecem que o nome de Jesus tem o milagroso poder de curar. A cura realizada pelos apóstolos é precedida pelo olhar, falar, tocar… Tocar o corpo da outra, do outro, é expressão de carinho, confiança, irmandade…

 

Tocar: Conforme a Lei de Moisés, o simples contato com uma pessoa ou coisa impura era suficiente para tornar aquela ou aquele que havia tocado impuro. Jesus, ao tocar as pessoas, rompe com a barreira do puro e impuro que separava as pessoas. Há, nos Evangelhos, muitos exemplos que mostram Jesus tocando as pessoas ou sendo tocado por elas (cf. Mc 1,31; 3,10; 5,41; 6,5; 8,22; 9,27; 10,16; Lc 8,54). Ao tocar as pessoas impuras, em vez de Jesus ficar impuro, ele as tornava puras: “Jesus ficou cheio de ira, estendeu a mão, tocou nele e disse: ‘Eu quero, fique purificado’” (Mc 1,41). Ou ainda: “Jesus se afastou com o homem para longe da multidão; em seguida, pôs os dedos no ouvido do homem, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele” (Mc 7,33). Jesus, com esses gestos, se aproximava das pessoas, gastava tempo com elas… Curava da solidão social, restabelecia as relações fraternas da vida na casa. No livro dos Atos vemos as seguidoras e os seguidores assumindo as mesmas atitudes de Jesus (cf. At 3,7; 9,41). Os apóstolos rompem a barreira do puro e do impuro e tocam o homem paralítico, ajudando-o a se levantar.

 

Levantar: Em geral, a palavra “levantar” refere-se às curas de pessoas consideradas impuras. A proposta de Jesus é gerar vida nova: ressuscitar. Quebrar o jugo da Lei que mantém as pessoas escravas, dependentes, passivas e quase sem vida. Em Cafarnaum, Jesus cura um paralítico: “Levante-se, pegue a sua cama e vá para a casa” (Mc 2,11). Jesus cura o homem que tinha a mão atrofiada: “Levante-se e fique no meio” (Mc 3,3). Ele ressuscita a filha de Jairo: “Jesus pegou a menina pela mão e disse: ‘Menina — eu lhe digo — levante-se!’” (Mc 5,41). Jesus devolve a essas pessoas a vida social. Levante-se! Essa ordem é repetida muitas vezes. Em Mc 16,6 encontramos a mesma palavra para falar da ressurreição de Jesus: “Ele ressuscitou! Ou seja, levantou! Não está aqui!”. A comunidade cristã é chamada para levantar, ressuscitar, viver e fazer acontecer a vida nova. No livro dos Atos dos Apóstolos testemunhamos a comunidade cristã levantando e fazendo outras pessoas levantarem-se (cf. At 3,7; 10,26; 12,7 etc.). O amor, a solidariedade, o compromisso com as pessoas tem o milagroso poder de ressuscitá-las e também de ressuscitar aquela(e) que foi capaz de estender a mão à outra, ao outro. Como dizia Santo Irineu: “A glória de Deus é a vida do ser humano”.

 

Olhar, falar, tocar, levantar… Essas atitudes estão muito presentes no relacionamento de Jesus com as pessoas e nos revelam algo mais da personalidade de Jesus: um homem que tem sentimentos e sabe expressar sua afetividade. Uma pessoa que ama e se deixa amar pelas pessoas. Um Jesus muito mais humano do que, em geral, aquele que nos foi transmitido. As comunidades cristãs, por volta do ano 85, tentaram vivenciar as mesmas atitudes de Jesus — um bom exemplo a seguir em nossos trabalhos pastorais: não ter medo de amar, aproximar, tocar, falar, olhar e olhar de novo…

Novamente volta à nossa mente o olhar do homem que veio ao nosso encontro pedindo ajuda. Que olhar triste… Um ser humano destituído de sua dignidade, aí jogado nas ruas, sem eira nem beira. Nessa mesma situação encontram-se milhares de pessoas. Só no Brasil, calcula-se que 32 milhões vivem na mais completa pobreza.

Os rostos sofridos são inúmeros: crianças abandonadas, jovens sem trabalho e sem condições de estudar, menores na prostituição, exploração do trabalho infantil, desempregados e subempregados, mulheres violentadas dentro de sua própria casa, muitas mulheres e homens sem-teto, sem-terra, amontoadas(os) debaixo dos viadutos das grandes cidades, pessoas idosas abandonadas… A todo momento deparamos com pessoas que contam suas tristes histórias, inventadas ou não, pouco importa; o fato é que temos seres humanos à nossa frente sem condições dignas de vida.

Dia a dia cresce o número de paralíticos em nossa sociedade neoliberal e excludente. Como cristãs e cristãos, seguidoras e seguidores da proposta de Jesus, o que podemos fazer diante dessa realidade? Muitas vezes nos encontramos sem perspectivas e paralisadas(os) diante das dificuldades que vivemos. Não podemos ficar paradas(os)! Como as primeiras comunidades cristãs, precisamos renovar a certeza de que o poder do amor, traduzido em gestos concretos, é capaz de ressuscitar a outra ou o outro.

É importante acreditar nos pequenos projetos e somar nossas forças com todos os grupos que estão lutando em defesa da vida ameaçada. Desenvolver um olhar amoroso, capaz de restabelecer a igualdade. Ir ao encontro do outro ou da outra com palavras capazes de reerguê-lo(a). Tocar o outro ou a outra com nossas mãos, superando as barreiras do individualismo e do egoísmo. “Ouro e prata não temos”, mas, como continuadoras(es), da prática de Jesus, temos outra riqueza a partilhar: a herança que ele nos deixou. Que possamos olhar, falar, tocar, levantar a outra, o outro. Que os nossos gestos possam produzir sementes de vida nova. Que esta seja a nossa riqueza, o nosso presente para todas e todos.

 

 

Maria Antônia Marques; Shigeyuki Nakanose, svd