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Publicado em setembro-outubro de 2013 - ano 54 - número 292

“Felizes vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus”

Por Maria Antônia Marques e Shigeyuki Nakanose

Enquanto policiais mandavam um grupo de sem-tetos esvaziar um prédio invadido na Avenida Ipiranga, Júlia, 7, só pensava em não deixar para trás todo o seu material escolar. Paula, a mãe, diz que a filha não queria perder a aula no dia seguinte. Fazia frio, e a lona da barraca não impedia o vento de entrar. Mesmo protegida por cobertores, a menina acordou com os lábios rachados pelo frio, e o corpo dolorido pela cama dura. “Tava muito frio, parecendo gelo”, disse. Depois do café da manhã (um copo de refrigerante e pão com manteiga), a mãe conseguiu que ela tomasse banho em outro prédio invadido na Ipiranga. Só que havia fila, e Paula e Júlia demoraram mais do que o planejado. Chegaram às 13h08 à escola. Os portões haviam fechado. Paula ainda insistiu com uma funcionária, que negou a entrada. Júlia teve que voltar para o acampamento.[1]

A presença dos crucificados se faz realidade no meio de nós. Conhecemos quem são eles e elas? Depende de cada um. Depende da experiência do nosso cotidiano. Basta olhar ao nosso redor com mínima sensibilidade. Ou – para nós, cristãos – olhar com a fé no Cristo Jesus encarnado, crucificado e ressuscitado no meio das pessoas empobrecidas e crucificadas.

Muitos cristãos costumam ter compaixão e misericórdia pelos crucificados, e até refletem sobre a mudança de mentalidade: pensar mais no amor de Deus e voltar-se para ele. Porém, a verdadeira mudança deve atingir todas as dimensões da vida: os pensamentos, as relações humanas, sociais e econômicas. Deus se manifesta na totalidade da vida humana, pois a criatura humana é imagem e semelhança do Criador (Gn 1,26-27). Deve-se escutar o grito de corpos massacrados no cotidiano, e criar as condições favoráveis para eles.

No cotidiano das primeiras comunidades cristãs, como no cotidiano da maioria dos cristãos de hoje, sempre existiu o problema dos crucificados, os conflitos entre os privilegiados, os excluídos e o individualismo religioso. Destacamos, entre outras, a comunidade cristã de Lucas, que focaliza os fortes contrastes sociais entre os pobres e os ricos, por meio de seus textos exclusivos, como, por exemplo, a parábola do pobre Lázaro e do rico (Lc 16,19-21).

Em resposta à dura realidade dos pobres e oprimidos, a comunidade cristã de Lucas transmite, interpreta e aumenta as mensagens de Jesus de Nazaré. Uma delas é o sermão da planície (Lc 6,17-49), que se equipara ao sermão da montanha de Mateus (Mt 5-7). O sermão, sobretudo em Lc 6,20-26, insiste no tema dos pobres, famintos e injustiçados a quem o reino de Deus pertence. Anuncia assim que suas situações se reverterão. Para refletir sobre o tema dos contrastes sociais entre pobres e ricos e da sociedade justa e fraterna à luz de Lc 6,20-26, vamos conhecer a sociedade greco-romana na qual a comunidade de Lucas estava inserida:

1. Contrastes sociais entre pobres e ricos. 

Na sociedade do primeiro século, havia duas categorias: os ricos e os pobres. Os ricos (entre 1 e 5% da população) eram aqueles que viviam em abundância sem necessidade de trabalhar para sobreviver. Os pobres, pelo contrário, eram todos os que não podiam manter-se sem trabalhar fisicamente. Ou seja, “trabalhar com as próprias mãos”, diz Paulo. Nesse grupo estavam os agricultores, os comerciantes, os artesãos etc. Havia também os pobres – “indigentes” – que necessitavam mendigar para sobreviver.

No último patamar da categoria dos pobres estavam os escravos e as escravas, pessoas sem liberdade, sem direitos e sem dignidade humana e, em certos casos, sujeitos a abusos e espancamentos. De fato, na sociedade do tempo de Lucas existia um abismo descrito na história do pobre Lázaro: “Entre nós e vós existe um grande abismo, a fim de que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós não o possam, nem tampouco atravessem de lá até nós” (Lc 16-26).

Por trás da sociedade greco-romana havia um mecanismo de explorar e manter esses pobres em condição de escravidão:

  1. Sociedade patronal: a elite monopolizava informações e usava em proveito próprio os recursos financeiros que o poder central disponibilizava para obras e benfeitorias, manobrando tudo a seu favor. Por exemplo, o imperador, como o grande protetor, beneficiava os administradores e as elites locais com doações de cargos, títulos de honra e títulos de terras. Dessa forma, criava laços de gratidão, submissão e dependência. Esse modelo de administrar era conhecido como patronato, modelo que abrange todas as relações sociais, desde o imperador até os estratos sociais mais pobres.
  2. Tributos: o Império, por meio de sua política patronal, sabia se beneficiar de todas as atividades econômicas: cobrava, com mão de ferro, taxas e impostos, o que levava pequenos comerciantes e produtores rurais à falência. Os ricos se mantinham, pois eram donos de latifúndios e estavam inseridos na “rede comercial” do sistema patronal. Isso fazia crescer, cada vez mais, a diferença entre ricos e pobres. “Alguns publicanos também vieram para ser batizados e disseram-lhe; ‘Mestre, que devemos fazer?’. Ele disse: ‘Não deveis exigir nada além do que vos foi prescrito’” (Lc 3,13). O texto exclusivo de Lucas descreve o abuso cotidiano da cobrança de tributo no império romano, empobrecendo a população.
  3. Exército: havia um poderoso exército para conquistar e sustentar o domínio do Império. Uma de suas funções era controlar o cotidiano da população, frequentemente cometendo abusos. “Os soldados, por sua vez, perguntavam: ‘E nós, que precisamos fazer?’. Disse-lhes: ‘A ninguém molesteis com extorsões; não denuncieis falsamente e contentai-vos com o vosso soldo’” (Lc 3,14). Esse texto, exclusivo do evangelho de Lucas, teria nascido da realidade de violência e de abuso do exército.
  4. Religião: outro recurso que o Império utilizava para expandir seu poder e manter o controle social eram a religião: a divinização da imagem do imperador, exibindo-a em moedas, broches, taças, estátuas, altares e fóruns. Promovia cultos, sacrifícios, jogos, festas e festivais em datas significativas da vida do imperador, criando uma “aura” divina em torno de sua imagem.
  5. Religião oficial dos judeus: além de pagar os impostos civis, os judeus deviam honrar as leis e os tributos religiosos, como o dízimo. Quem não conseguia observar era considerado impuro e endemoninhado. Era excluído da benção de Deus e do Reino de Deus. Após a destruição do templo, os pobres sofriam toda a carga das restrições legais da sinagoga.

A sociedade greco-romana, marcada pela competição e ambição de riqueza, de poder e de honra, espoliava e excluía os pobres. A busca desenfreada por poder e a marginalização social dos pobres aconteciam também na convivência cristã. A discriminação contra os pobres atingia até o cerne da vivência cristã: a refeição comunitária em memória de Jesus.

A celebração era um dos momentos mais fortes da vivência comunitária. Um convite para experimentar a comunhão fraterna entre ricos e pobres, livres e escravos, judeus gentios, mulheres e homens. No entanto, muitas vezes isso não ocorria no interior das comunidades. “Quando, pois, vos reunis o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa por comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado”, assim afirma Paulo, condenando a divisão criada no momento da ceia (1Cor 11,20-21).

No mundo greco-romano, os cristãos pobres sofriam dentro e fora das comunidades. O evangelho de Lucas, provavelmente, foi dirigido a esse grupo sofrido e aflito da Ásia menor e da Grécia. Ele discute e apresenta o caminho de Jesus como caminho que transforma a sociedade injusta e excludente em uma nova sociedade de fraternidade.

2. Felizes vós, os pobres, e ai de vós, ricos…

“Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Felizes vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, que agora chorais, porque haveis de rir” (Lc 6,20-21).

A palavra “pobre”, no sentido original do termo bíblico anawim, encontra-se em Amós e Sofonias: “Porque vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias. Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos e tornam torto o caminho dos pobres” (Am 2,6-7). Os pobres são as pessoas empobrecidas, espoliadas e injustiçadas pelos ricos desejosos de riqueza. São as vítimas da sociedade exploradora e excludente.

Para esses pobres, Jesus diz que eles são os destinatários das bem-aventuranças, e que deles é o Reino de Deus. Porém, esse não é o reino de César nem dos ricos ambiciosos, mas o reino inaugurado por Jesus segundo a sua proclamação, na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19; cf. Is 61,1-2).

A leitura do livro do profeta Isaías, episódio exclusivo do evangelho de Lucas, insiste no tema dos pobres e oprimidos que são libertados no Reino de Deus, onde não há mais nem fome nem choro. É uma nova sociedade de justiça, amor, reconciliação e partilha do “ano da graça” (cf. Lv 25). Por isso, a bem-aventurança dos pobres não significa a exaltação de sua condição precária e sofrida, mas porque Jesus, como o Deus dos pobres no Antigo Testamento, convive e liberta os pobres: “Sim, pois ele não desprezou, não desdenhou a pobreza do pobre, nem lhe ocultou sua face, mas ouviu-o, quando a ele gritou. Os pobres comerão e ficarão saciados, louvarão a Iahweh aqueles que o buscam” (Sl 22, 25.27).

A prática de Jesus era a da libertação dos pobres, e agora são os pobres que devem promover o Reino de Deus: “porque vosso é o Reino de Deus”. Eles são os sujeitos da construção da nova sociedade de justiça e solidariedade: “Procurai a Javé vós todos, os pobres da terra, que realizais a sua ordem. Procurai a justiça, procurai a solidariedade, talvez sejais protegidos no dia da ira de Javé” (Sf 2,3). Nesse contexto, surge um desafio: o seguimento de Jesus é o caminho da cruz, está na contramão da sociedade dominada pelo Império Romano e seus colaboradores:

Felizes sereis quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem, insultarem e proscreverem vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem. Alegrai-vos naquele dia e exultai, porque no céu será grande a vossa recompensa; pois do mesmo modo seus pais tratavam os profetas (Lc 6,22-23).

A quarta bem-aventurança já se percebe bem no cântico do servo sofredor (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12): o servo, no sentido do povo sofrido do exílio na Babilônia (Is 54,17), é chamado para o serviço da justiça, é perseguido, resiste até o fim e por isso é morto, mas Deus o acolhe e lhe dá a vitória. No cântico, Deus está com o servo e intervém a seu favor. É um cântico de esperança e de futuro presente.

A ação de Deus é agora a de Jesus. Ele está com os pobres perseguidos e lhes promete o Reino de Deus, que está em oposição ao reino organizado pelas relações humanas baseadas na injustiça, no poder e em privilégio. O Reino de Deus dado aos pobres então exige deles uma ação de comprometer-se com a construção da sociedade de relações humanas de justiça, serviço e comunhão. A ação dos pobres é para a libertação do reinado deste mundo do mesmo modo que os profetas, como Amós e Miqueias, trabalharam: “os seus pais tratavam os profetas”.

O anúncio da bem-aventurança, portanto, não significa simplesmente uma promessa do futuro: “os pobres vão descansar no céu”, nem: “esta terra é a terra de lágrima e de penitência para ganhar o céu”. O anúncio não se trata de uma predição abstrata, mas uma convocação urgente para a ação libertadora. E essa ação atinge e envolve os ricos, para quem Lucas dirige a advertência dos quatro “ais”:

Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação! Ai de vós, que agora estais saciados, porque tereis fome! Ai de vós, que agora rides, porque conhecereis o luto e as lágrimas! Ai de vós, quando todos vos bendisseram, pois do mesmo modo seus pais tratavam os falsos profetas (Lc 6,24-26).

Primeiramente, os quatro “ais” são as maldições aos ricos, folgazões e ambiciosos da riqueza, que na acumulação espoliam os pobres. São contra o reinado de injustiça e de exclusão para o qual os falsos profetas propagam e contribuem. O mais importante, porém, é aplicar os quatro “ais” para os pobres também. Para eles, a maldição é uma advertência contra as seduções de riqueza e luxo sem limites, que os levam a se tornarem os protagonistas do mundo da injustiça.

A ‘bem-aventurança’ não se trata então de uma predição abstrata ou de uma promessa salvífica, mas de um anúncio da transformação do mundo de acúmulo e injustiça, feita com a força de solidariedade e partilha dos seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré. É um forte alerta à consciência cristã diante da divisão socioeconômica entre pobreza e riqueza.

3. Catecismo para os pobres e os ricos

O evangelho de Lucas salienta a forte divisão socioeconômica entre pobres e ricos, o que fica evidente no acréscimo das quatro maldições aos ricos às bem-aventuranças dos pobres. Há nesse evangelho outros textos exclusivos, que advertem e convidam os pobres e os ricos a aderirem às bem-aventuranças: justiça, compaixão, solidariedade e partilha, características do reinado do Deus da vida. É Deus que vem ao encontro das pessoas que passam fome e padecem com tantos outros sofrimentos.

  1. “Seu nome é santo e sua misericórdia perdura de geração em geração, para aqueles que o temem. Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou. Cumulou de bens a famintos e despediu ricos de mãos vazias” (Lc 1,49-53). No cântico de Maria (o magnificat), a comunidade lucana anuncia o projeto salvífico de Deus: destrona os ricos apegados às suas riquezas e aos seus poderes enquanto os pobres em suas práticas de solidariedade são elevados e acolhidos por Deus. O cântico, como as bem-aventuranças (Lc 6,20-26), aponta para a subversão da ordem social.
  2. “E as multidões o interrogaram: ‘Que devemos fazer?’. Respondia-lhes: ‘Quem tiver duas túnicas, reparta-as com aquele que não tem, e quem tiver o que comer, faça o mesmo’” (Lc 3,10). A conversão, anunciada por João Batista, significa mudança de vida: romper com o comportamento e os valores do mundo, que no acúmulo e no luxo espoliam os pobres. É um convite radical e uma advertência para os ricos contra as seduções do “dinheiro”.
  3.  “E se emprestais àqueles de quem esperais receber, que graça alcançais? Até mesmo os pecadores emprestam aos pecadores para receberem o equivalente. Muito pelo contrário, amais vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Será grande a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo, pois ele é bom para com os ingratos e com os maus” (Lc 6,34-35). Lc 6,27-38 é a continuação das quatro maldições aos ricos (Lc 6,24-26). Possivelmente, os destinatários deste trecho são os ricos, chamados a superar os valores da sociedade patronal: a doutrina e a teologia da retribuição. Eles devem amar “seus Inimigos”, nome atribuído aos pobres, famintos, mendigos no mundo greco-romano daquele tempo.
  4. “E eu vos digo: fazei amigos com o Dinheiro da iniquidade, a fim de que, no dia em que faltar o dinheiro, estes vos recebam nas tendas eternas” (Lc 16,9-12). O termo “dinheiro” em grego se diz Mamon, deus das riquezas. O “Dinheiro” é iníquo enquanto fonte de riqueza acumulada de maneira injusta. Ou seja, acumular o dinheiro na mordomia e no luxo sem se preocupar com os necessitados. “Fazer amigos com o Dinheiro”, então, é uma prática oposta: partilhar as riquezas com os necessitados.
  5.  “Quando Jesus chegou ao lugar, levantou os olhos e disse-lhe: ‘Zaqueu, desce depressa, pois hoje devo ficar em tua casa’ […] Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: ‘Senhor, eis que dou a metade de meus bens aos pobres, e se defraudei a alguém, restituo-lhe o quádruplo’. Jesus lhe disse: ‘Hoje a salvação entrou nesta casa, porque ele também é um filho de Abraão. Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido’” (Lc 19,5.8-10). Zaqueu trabalha em Jericó, cidade situada no vale do Jordão, que se torna, por ter água abundante, uma parada obrigatória para os peregrinos a Jerusalém e os comerciantes para os países do sudeste. Nessa cidade, Zaqueu se enriquece por fiscalizar e cobrar impostos e, em muitas ocasiões, defraudar pagantes. Uma riqueza empregada assim é injusta. Ele se torna justo por manifestar sua conversão (receber Jesus), partilhar sua riqueza com os pobres e restituir a quem tenha defraudado. É reparar as injustiças pelas quais se enriqueceu. Na verdadeira conversão, os ricos são convidados a não acumular.

Com base nesses textos exclusivos do Evangelho de Lucas, percebe-se a dura realidade da divisão socioeconômica entre os pobres e os ricos do mundo greco-romano da Ásia menor e da Grécia. Os textos desafiam e convidam os ricos e os pobres para fazer uma mudança radical: usar os bens em favor da vida e restabelecer as relações de justiça social. É um apelo de conversão desafiadora para todos e todas!

Como a história de Zaqueu, muito rico e chefe dos cobradores de impostos (Lc 19,1-10), a conversão também atinge o conceito da “salvação”, a “vida eterna”: Jesus lhe disse: “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque ele também é um filho de Abraão. Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,9-10). A salvação começa aqui neste mundo. O reino de Deus inaugurado pela prática de Jesus de Nazaré se enraíza na vida cotidiana: a partilha dos bens e as relações humanas, fraternas e justas das pessoas.

Segundo os evangelhos interpretados dentro do contexto socioeconômico, Jesus quer atingir e transformar as pessoas para que assim as estruturas injustas da sociedade possam ser transformadas. Os seus seguidores e seguidoras devem participar da vida eterna presente na prática da compaixão, solidariedade e justiça. Quem, por amor, segue Jesus Cristo, vive e participa na vida divina e eterna.

4. Uma palavra final

Mesmo acampada, Paula diz que incentivará a filha a ir à aula. “Queria dar continuidade, para ela aproveitar esse prazer que ela tem.” A família não tem planos de sair tão cedo do acampamento, até porque não tem para onde ir. Desempregados, a mãe e o pai vivem com os R$ 620 reais, do seguro-desemprego dela, o que não dá para pagar aluguel e se sustentar. Paula, auxiliar de cozinha, desempregada, concluiu o segundo grau. O sonho dela é que a filha faça curso superior. “Ela quer ser médica. Já tem o próprio sonho dela, vive dizendo: ‘Mãe, quando eu virar médica, vou te dar uma casa e um carro’”.

A “bem-aventurança” significa bem mais do que a mensagem evoca: uma esperança eterna após a morte. Ela se enraíza na vida concreta. Todas as pessoas têm o direito à vida digna. Porém, na realidade de ontem e hoje há muitos famintos, aflitos e perseguidos. Muitas Júlias, Paulas e outras.

Hoje no Brasil temos 60 milhões de pobres (outras fontes indicam “apenas” 30 milhões) e outros tantos milhões abaixo da linha de indigência. Por fim, o dado mais agravante: 1% da população concentra fortuna equivalente ao rendimento dos 50% mais pobres da população.

Uma pessoa pode ser feliz com a riqueza farta enquanto milhares de pessoas dormem com fome? Quem só pensa em si mesmo com a acumulação e luxo da sociedade consumista não colocará nenhuma pedra na construção do reino de Jesus Cristo.



[1] Da Redação, Folha de São Paulo, São Paulo, 31.07.2012, Caderno Cotidiano, p. 10.

Maria Antônia Marques e Shigeyuki Nakanose