Artigos

Publicado em setembro-outubro de 2010 - ano 51 - número 274 - (pp. 6-13)

Levanta-te e vai à grande cidade: uma introdução ao livro de Jonas

Por Maria Antônia Marques

Na Bíblia, o livro de Jonas faz parte da coleção dos livros proféticos. Ele se situa entre os livros de Abdias e Miqueias. No entanto, em vez de anúncio e denúncia, como era de se esperar, temos uma espécie de relato sobre o chamado de um profeta que, do início ao fim, faz oposição à sua missão. Em vez de oráculos, temos uma historieta ou novela. Esse tipo de literatura é uma narrativa cujo enredo é composto de episódios breves, construídos com elementos da vida real, mas também com o uso de exageros, suspense e ironia. A preocupação, nesse tipo de história, não é documentar fatos, mas entreter e instruir a audiência que a lê ou escuta. Na Bíblia, há muitas historietas: por exemplo, a narrativa de Jó (1-2 e 42,7-17), os vários contos presentes no livro de Daniel 1-6, a história de Tobias, Judite e Susana, entre outras.

Para melhor entender o livro de Jonas, vamos recordar a origem do nome da personagem central: “Jonas, filho de Amati” (Jn 1,1). De acordo com a tradição, há um profeta do tempo de Jeroboão II com o mesmo nome (783-743 a.C.), da aldeia de Gat-Ofer, que havia anunciado o restabelecimento das fronteiras de Israel (2Rs 14,25). A narrativa adotou um nome histórico, adaptando-o para outro contexto. A cidade de Nínive só se tornou a capital da Assíria no tempo de Senaquerib (704-681 a.C.).

A narrativa de Jonas é uma das mais populares, tanto na tradição judaica quanto na cristã. Ela é lida no Dia do Perdão (Yom Kippur), o dia do arrependimento e do retorno ao bem, uma data muito importante na religião judaica, celebrada com um jejum de 25 horas e intensa oração. Na tradição cristã, essa história é conhecida e citada desde o tempo das primeiras comunidades cristãs. A estada de Jonas no ventre do monstro marinho prefigura a morte e a ressurreição de Jesus (Mt 12,40). A conversão dos habitantes de Nínive é lembrada como modelo e censura para Israel (Mt 12,41-42; Lc 11,32). A história de Jonas é lida na liturgia da Igreja Católica na 27ª semana do tempo comum — segunda, terça, quarta-feira (respectivamente Jn 1,1-2, 1.11; 3,1-10 e 3,10-4,11) — e na quarta-feira da primeira semana da Quaresma (Jn 3,1-10).

É uma história lida, contada, recontada, desenhada e celebrada. Quem ainda não leu esse livro, pelo menos já ouviu falar de um sujeito rebelde que foi engolido por um peixe, onde permaneceu três dias e três noites, e depois foi devolvido. Vivo e inteiro! Você conhece alguma história semelhante?

 

1. Recontando a história de Jonas

Jonas é enviado para a cidade de Nínive, mas vai em direção oposta: embarca num navio para Társis. Ele quer fugir para bem longe. Javé provoca forte tempestade, e toda a tripulação trabalha arduamente para sobreviver ao temporal, exceto Jonas, encontrado em sono profundo. O capitão ordena-lhe que invoque o Deus dele. Ao ser questionado pelos marinheiros, o próprio Jonas reconhece sua culpa e pede que seja atirado ao mar para aplacar a ira de Javé. Se morrer, não terá de assumir a ordem de Javé. Ele prefere morrer a cumprir sua missão, mas um grande peixe, por ordem de Javé, o engole. No ventre do peixe, Jonas reza e agradece a Javé por sua salvação. E Deus atende a sua oração: o peixe vomita Jonas em terra firme. Nem ele o aguentou. Novamente Jonas recebe a ordem de ir a Nínive e, desta vez, obedece. Ele vai e anuncia a destruição da cidade. Todos os habitantes se convertem: homens, mulheres, rei e animais. Deus se compadece, mas Jonas fica indignado com a atitude misericordiosa de Javé.

A narrativa de Jonas termina com uma pergunta: “Tu tens pena da mamoneira, que não te custou trabalho e que não fizeste crescer, que em uma noite existiu e em uma noite pereceu. E eu não terei pena de Nínive, a grande cidade?” Uma pergunta que continua ecoando em nossos ouvidos e nos instiga a pensar. Além dessa pergunta, surgem outras: afinal, quem são os autores dessa narrativa que continua provocando risos ainda hoje? E em que período foi escrita? Não existem respostas exatas para essas questões. Buscaremos, junto com estudiosos(as) desse livro, arriscar uma resposta.

 

2. Autoria e data

Quem começa a ler o livro de Jonas constata que o texto é uma narrativa coerente, com unidade de tema e estilo. Somente o capítulo 2,3-10, uma narrativa poética, apresenta uma teologia bem diferente do restante do livro. Um salmo que provavelmente foi acrescentado depois. Em todo o texto, não há menção alguma a Jonas como um profeta.

Quem foi o autor ou os autores do livro? Não sabemos. Na época de Jonas, um dos grupos responsáveis pela educação eram os sacerdotes, cuja obrigação era ensinar ao povo a instrução (lei). Em geral, os ensinamentos dos sacerdotes estavam mais relacionados ao culto e ao sacrifício. Esse tipo de ensinamento e a centralidade do templo são mencionados no capítulo 2, que é um salmo posterior (2,5.8.10).

O autor do livro de Jonas não pode ter sido do círculo de sacerdotes. Além desse grupo, outros ensinavam ao povo: os sábios. Em Israel, a sabedoria oficial estava ligada ao templo, mas no meio do povo existiam pessoas sábias, comprometidas com a fé e a vida. O autor do livro de Jonas pode ter sua origem entre os sábios de Israel, pois conhecia bem a tradição de seu povo, bem como a de outros povos. Ele devia manter contato com estrangeiros e os considerava com bons olhos. A história apresenta Javé que teve compaixão dos estrangeiros e, para completar, de um grande inimigo! Trata-se de uma ironia contra a corrente judaica da época de Esdras, que acreditava ser o povo judeu o único povo eleito e santo e considerava os estrangeiros impuros.

Como datar o livro de Jonas? A narrativa não oferece nenhuma evidência no próprio texto. A existência de um profeta de nome Jonas no século VIII não significa que o livro tenha sido escrito naquela época. O objetivo do livro é transmitir um ensinamento às pessoas que viviam no tempo em que foi escrito. Há alguns indícios que possibilitam uma datação tardia. Eis os mais significativos:

1.  A narrativa de Jonas apresenta várias palavras de origem aramaica. A língua aramaica se tornou a língua oficial no período persa. As palavras que designam os marinheiros (Jn 1,5), o navio (Jn 1,5), o decreto do rei de Nínive (Jn 3,7), entre outras, vêm do aramaico.

2.  A compreensão de Deus. O autor utiliza a expressão “Deus do céu”, que aparece nos livros do pós-exílio (cf. Esd 1,2; 5,11; Ne 1,4.5; Dn 2,18).

3.  A história de Jonas faz alusão a costumes persas, por exemplo: a participação de animais nos rituais de penitência (Jn 3,7-8).

4.  Existem estreitos paralelos com a teologia do livro de Jeremias e de Joel (cf. Jr 18,7-10 e Jn 3,9-10; Jl 2,13b.14a e Jn 4,2b; 3,9). O livro de Jeremias foi relido e atualizado no exílio e no pós-exílio. O livro de Joel surgiu no século IV ou meados do século III a.C.

5.  A identificação de Nínive como capital da Assíria no tempo de Jonas. Nínive só se tornou importante no tempo de Senaquerib, em 704 a.C. O rei seria tratado como rei da Assíria e não rei de Nínive. Para um profeta de Gat-Ofer, uma aldeia da Galileia, era mais fácil embarcar nos portos de Tiro ou Aco, e não em Jope, porto próximo para quem vivia em Jerusalém e nas regiões próximas.

 

No livro de Jonas, não há influência da época helenística, do tempo de Alexandre Magno e de seus sucessores (333 a.C.-134 a.C.). Não aparece o conflito com os samaritanos, nem mesmo a questão dos casamentos com mulheres estrangeiras, tratados por Neemias e Esdras (Ne 13,23-27; Esd 4; 9-10). Não há uma precisão quanto à data, mas, diante dos elementos apresentados, é possível afirmar que o livro tenha sido escrito no final do século IV ou no início do século III a.C., no período persa.

 

3. Estrutura do livro

Para melhor entender a mensagem do livro de Jonas, vejamos um esquema básico da narrativa. É uma história bem desenvolvida e planejada, que pode ser dividida em duas cenas paralelas. Nas duas cenas, encontramos a palavra de Javé, a reação de Jonas, a presença de personagens estrangeiras e de elementos da natureza. Podemos esquematizar a narrativa da seguinte forma (Magonet, 1992: 937-938):

 

 

 

Primeira cena — capítulos 1 e 2: no mar Segunda cena — capítulos 3 e 4: em terra
A — 1,1-2: O chamado de Jonas. A — 3,1-2: O chamado de Jonas.
B — 1,3: Jonas levanta-se e foge. B — 3,3: Jonas levanta-se e vai a Nínive.
C — 1,4: Ação de Javé: a grande tempestade. C — 3,4: Ação de Jonas — pregação.
D — 1,5: Ação dos marinheiros. D — 3,5: Ação dos ninivitas — jejum.
E — 1,6: O capitão reconhece o poder da divindade por trás da tempestade. E — 3,6-8: O rei reconhece o poder de Deus, faz penitência e proclama um jejum.
F — 1,7-13: Os marinheiros acham o culpado. F — 3,8b: Ordena a conversão.
G — 14: Os marinheiros rezam a Javé. G — 3,9: oração pode mover a ação de Deus.
H — 15: Jonas é lançado ao mar; cessa a tempestade. H — 3,10: Deus arrependeu-se e não fez o mal que ameaçara fazer-lhes.
I — 16: Os marinheiros temem a Javé. I — 3,5: Homens de Nínive creram em Deus.
J — 2,1: Javé salva Jonas. J — 4,1.5.8c: Jonas fica desgostoso com Javé.
L — 2,2-10: Jonas reza e agradece a sua salvação. L — 4,2-4: Jonas reza.
M — 2,11: Javé responde — Jonas é devolvido a terra firme. M — 4,4.6-8b.9: Deus responde.

 

O chamado de Jonas é repetido duas vezes: na primeira, ele foge; na segunda, obedece. Os marinheiros e os ninivitas representam os estrangeiros, descritos de maneira positiva. Eles reconhecem o poder de Deus e rezam, enquanto Jonas, representante do povo de Israel, continua fechado em sua recusa à ordem de Javé.

A história emprega alguns recursos narrativos, como a repetição de palavras, o uso de citações e a inversão irônica.

 

— Repetição de palavras

a) Descer, yārad, aparece três vezes no primeiro capítulo, indicando o caminho descendente de Jonas: desceu para Jope, desceu para o navio (Jn 1,3), desceu para o fundo do navio, onde dormia profundamente (Jn 1,5). No capítulo 2, o texto afirma que ele desceu até as raízes das montanhas (Jn 2,7).

b) Grande, gādol. Um adjetivo que o autor não economiza. Ele emprega para Nínive (Jn 1,2; 3,2.3; 4,11), para o vento (Jn 1,4), para a tempestade (Jn 1,4.12), para o temor dos marinheiros (Jn 1,10.16), para os homens de Nínive (Jn 3,5.7).

c) Lançar, atirar ou jogar, tûl, é usado quatro vezes no capítulo (Jn 1,4.5.12.15). No capítulo 2, o autor usa outro verbo para lançar, shālak (2,7).

d) Mandar, determinar, designar, mānah. Os quatro eventos miraculosos que aparecem na história são introduzidos pela mesma raiz verbal: o grande peixe (Jn 2,1), a planta (Jn 4,6), o verme (Jn 4,7) e o vento (Jn 4,8).

 

— Uso de citações

a) O capítulo 2 é um salmo que traz citações de outros salmos: “Tuas vagas todas e tuas ondas passaram sobre mim” (Sl 42,8b; cf. Jn 2,4b); “Quanto a mim, na minha ânsia eu dizia: ‘Fui excluído para longe dos teus olhos!’ Tu, porém, ouvias a minha voz suplicante, quando eu gritava a ti” (Sl 31,23; cf. Jn 2,5); “Salva-me, ó Deus, pois a água sobe até o meu pescoço” (Sl 69,2; cf. Jn 2,6); “Iahweh, tiraste minha vida do Xeol, tu me reavivaste dentre os que descem à cova” (Sl 30,4; cf. Sl 16,10; Jn 2,7b); “Tu detestas os que veneram ídolos vazios; quanto a mim, confio em Iahweh” (Sl 31,7; cf. Jn 2,9); “De ti vem meu louvor na grande assembleia, cumprirei meus votos frente àqueles que o temem”; “A Iahweh pertence a salvação! E sobre o teu povo, a tua bênção” (Sl 22,26; 3,9; cf. Jn 2,10).

b) O argumento do rei de Nínive (Jn 3,8-9) pode ser uma releitura da tradição de Jeremias: “Ora, eu falo sobre uma nação ou contra um reino, para arrancar, arrasar, destruir, mas se esta nação, contra a qual falei, se converte de sua perversidade, então me arrependo do mal que jurara fazer-lhe (…). Converta-se, pois, cada um de seu caminho perverso, melhorai vossos caminhos e vossas obras” (Jr 18,7-8.11b; cf. Jr 26,3.13.19).

c) “Tu és um Deus de piedade e de ternura, lento para a ira e rico em amor e que se arrepende do mal” (Jn 4,2) é uma citação de Ex 34,6-7.

d) “Então Jonas pediu a morte e disse: ‘É melhor para mim morrer do que viver’” (Jn 4,8c). Afirmação semelhante encontramos em 1Rs 19,4: Elias “pediu a morte, dizendo: ‘Agora basta, Iahweh! Retira-me a vida, pois não sou melhor que meus pais’”.

 

– Inversão irônica

O autor inverte a narrativa bíblica convencional. Logo no início, há a ordem para Jonas: “Levanta-te e vai”, e quem está lendo espera que ele obedeça. Ele “levantou-se e fugiu para Társis” (Jn 1,1.3). A personagem central age de um jeito inesperado. Os marinheiros e os ninivitas têm um comportamento exemplar. Os marinheiros tentam salvar Jonas; os habitantes de Nínive creram em Deus, convocaram jejum e fizeram penitência; o rei convoca jejum, penitência e exorta o povo à conversão. Outra inversão interessante é Jonas rezando: “Eu te peço, tira a minha vida, pois é melhor para mim a morte do que a vida” (Jn 4,3). Os marinheiros rezam: “Ah, Iahweh, não queremos perecer por causa da vida deste homem! Mas não ponhas sobre nós o sangue inocente, pois tu agiste como quiseste” (Jn 1,14). Jonas prefere morrer a ver os ninivitas viver.

No capítulo 2, Jonas reza. Mas não menciona uma palavra sequer sobre sua missão ou sua fuga. Apenas agradece a Javé pela salvação (Jn 2,7). E mais: destaca a importância do Templo. Um Jonas muito diferente do resto do livro. Rezar um salmo dentro da barriga de um peixe é ideia tão absurda quanto a de que ele poderia sobreviver ali de um a três dias. É história de pescador!

O livro de Jonas surge da pena de quem conhece a tradição de seu povo. Um sábio que mantém vivas algumas memórias importantes. Os recursos narrativos, especialmente o uso de citações, apontam para o período do pós-exílio. Um texto que apresenta uma teologia de um Deus da gratuidade e da misericórdia para com todos os povos, incluindo os piores inimigos do povo.

Afinal, qual a mensagem de Jonas? Qual a intenção dessa narrativa?

 

4. A mensagem de Jonas

No tempo de Neemias e Esdras (450-350 a.C.), entre os interesses principais destacavam-se a reconstrução de Jerusalém, a restauração da Lei e das práticas rituais, a eliminação de influências estrangeiras e a proibição de casamentos mistos. O livro de Jonas ignora esses temas. Ao contrário, é um texto que ironiza o comportamento do judeu nacionalista e tem um olhar favorável aos estrangeiros. A resistência demonstrada pelo personagem Jonas representa os grupos que não aceitam que Javé seja misericordioso com estrangeiros — muito menos com os assírios —, como Abdias, Joel, Neemias e Esdras.

De acordo com a narrativa, as pessoas de Nínive são chamadas à mudança de vida: “Invocarão a Deus com vigor e se converterá cada qual de seu caminho perverso e da violência que está em suas mãos” (Jn 3,8). Nínive era símbolo do império opressor e de sua crueldade. Uma cidade chamada de “sanguinária” (Na 3,1.3). O termo hebraico traduzido por ações violentas é hamás, que nos textos proféticos significa as mais diversas injustiças sociais. Não se trata de uma conversão dos opressores ao verdadeiro Deus, mas de abandonar toda forma de injustiça social. Portanto, o perdão e a misericórdia de Deus são para todas as pessoas, até para os piores inimigos do povo de Israel. Dessa forma, os grupos nacionalistas e exclusivistas de Israel são chamados à conversão. O personagem Jonas é símbolo de um povo que não acredita na intervenção de Deus em favor daqueles que consideram seus inimigos. Mas o autor do livro de Jonas segue em outra direção. Ele acredita que o perdão e a ação de Deus não têm fronteiras.

As pessoas que liam ou ouviam a narrativa de Jonas eram convidadas a rever sua compreensão de Deus. O livro de Jonas foi usado contra a visão reduzida de alguns grupos de judeus que pensavam serem eles o único povo abençoado por Deus. Apresentar Javé que se compadece dos assírios e se arrepende do mal não é o mesmo que afirmar que todos os povos são escolhidos por ele, mas sim que ele é favorável a todos os que se convertem de sua má conduta e ações violentas. De acordo com o ensinamento das primeiras comunidades, Deus se alegra por um só pecador que se converte (Lc 15,7.10).

Há muitas perguntas na história de Jonas. Diante da tempestade, o capitão o questiona: “Como podes dormir?” (Jn 1,6). Os marinheiros querem saber qual é a missão de Jonas, de onde ele vem, qual a sua terra e o povo a que pertence (Jn 1,8). Sabendo da identidade de Jonas, os marinheiros questionam: “Que é isso que fizeste?” (Jn 1,10). Na tentativa de encontrar soluções, os marinheiros dizem-lhe: “Que te faremos para que o mar se acalme em torno de nós?” (Jn 1,11). No capítulo 4, há duplo questionamento de Javé para Jonas: “Tens, por acaso, motivo para te irar?” “Está certo que te aborreças por causa da mamoneira?” (Jn 4,4.9). “E eu não terei pena de Nínive?” (Jn 4,11). Nem todas as perguntas estão respondidas. O questionamento continua.

A história de Jonas é tão antiga e tão nova. A releitura dessa narrativa nos ajudará a refletir sobre a necessidade de assumir nossa missão de cada dia. É um convite para identificarmos nossos preconceitos e eliminá-los. Refletindo sobre a oração de Jonas, buscaremos ampliar nossos horizontes para reconhecer a presença de Deus em cada pessoa que vive e pratica a justiça, independentemente de sua confissão religiosa. O coração de Deus é capaz de se comover diante da pessoa que se converte. E o nosso? Essa história nos recorda a importância de dar o perdão, e dá-lo em primeiro lugar a si mesmo. Deus é compaixão e misericórdia; portanto, criados à sua imagem e semelhança, é nossa vocação desenvolver as mesmas atitudes. São essas as perspectivas para nossa leitura de Jonas.

 

5. Chaves de leitura

Para que possamos mergulhar no horizonte sociocultural e histórico em que nasceu o livro de Jonas, apresentamos algumas chaves que poderão auxiliar a leitura.

1. Nacionalismo judaico. Para compreender a formação dessa mentalidade, é necessário retomar a história. Em 587 a.C., o Templo e a cidade de Jerusalém foram destruídos e uma parte da população foi deportada para a Babilônia, onde já havia colônias de judeus exilados da primeira deportação (597 a.C.). Esse período é conhecido como o exílio da Babilônia. Em 539 a.C., os persas dominaram os babilônios e, no ano seguinte, os judeus exilados puderam retornar a Jerusalém. No exílio, para garantir a unidade e a coesão do povo judeu, surgiu a ideia de povo eleito. No pós-exílio, especialmente no tempo de Neemias e Esdras (450-350 a.C.), consolidou-se a compreensão de que o povo de Israel era o único povo santo, escolhido e privilegiado por Deus. Essa visão nacionalista gerou exclusão de outros grupos, principalmente dos estrangeiros. Nesse contexto, o livro de Jonas mostra-o sendo enviado por Javé para pregar a Nínive, a capital dos assírios. Ele foge em direção contrária, desce para Jope, de onde embarca para Társis, considerado o lugar mais distante de Israel. De acordo com a mentalidade da época, o único lugar da morada de Javé era Jerusalém. Os profetas de Israel pregaram contra as outras nações, mas Jonas é o único enviado para pregar a destruição de uma cidade (no caso, Nínive) na própria cidade. A novidade já aponta para a intenção do autor: mais do que destruição, parece que o objetivo é que a palavra de Deus seja ouvida.

2. Os estrangeiros — pessoas consideradas excluídas — vivem a justiça. No pós-exílio, começa um processo de exclusão, até chegar à eliminação do estrangeiro. No livro do Êxodo, que teve sua redação final nesse período, lemos: “Fica atento para observar o que hoje te ordeno: expulsarei de diante de ti os amorreus, os cananeus, os heteus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus. Abstém-te de fazer aliança com os moradores da terra para onde vais, para que não sejam uma cilada” (Ex 34,11-12). A ideia de povo eleito e santo, que inicialmente possibilitou manter a coesão e a identidade do judeu no exílio, agora provoca fechamento e isolamento de outros povos e até dos judeus que haviam ficado na terra. Conforme a religião oficial, o povo judeu era considerado puro e os estrangeiros, impuros. Ser puro significava pertencer ao povo eleito e cumprir com todas as exigências da Lei, principalmente as leis da pureza (Lv 11-15). De acordo com a teologia do Templo, a pessoa fiel à Lei era abençoada com riqueza, terra e descendência. O Templo era o único lugar da manifestação de Deus. Só os sacerdotes da linhagem de Aarão, considerados os principais sacerdotes, podiam oferecer sacrifícios a Javé. O estrangeiro, sob pena de morte, não podia entrar no Templo (Nm 3,38). A história de Jonas mostra os estrangeiros trabalhando arduamente para sobreviver à tempestade, enquanto Jonas, representante do judeu que acredita que só o povo de Israel é privilegiado por Deus, dorme, permanece distante das pessoas e de Deus. Sempre houve vozes contrárias à exclusão de estrangeiros. Podemos ouvir alguns ecos nos livros de Jó, Jonas, Rute, do Terceiro Isaías e em alguns salmos, que propuseram a inclusão do estrangeiro.

3. A presença de Deus não está presa ao Templo. A oração de Jonas mostra que, mesmo dentro do peixe, no abismo mais profundo, ele continua olhando para o Templo e espera que a sua prece chegue até o Templo. Desde sua reconstrução, em 515 a.C., o Templo se tornou o centro da vida religiosa e política do povo judeu. Esse sistema ficou conhecido como teocracia; em outras palavras, é o governo a partir do Templo e da liderança do sumo sacerdote. O livro de Jonas mostra Deus agindo na tempestade, no mar, nos elementos da natureza. Um Deus que age para além das fronteiras de Israel: em Jope e em Nínive. Mas, quando lemos a oração de Jonas, a narrativa poética (Jn 2,3-10), vemos que Deus ouve a prece e realiza a salvação a partir do Templo. A personagem Jonas representa as pessoas que acreditavam ser o Templo o único lugar da presença de Deus. É possível rezar o mesmo salmo rezado por ele, acreditando que Deus se faz presente nos momentos de dificuldade e sofrimento, mas precisamos ampliar nossos horizontes e reconhecer a sua presença em todo o universo e em todos os seres criados. Como o grupo do Terceiro Isaías, acreditamos que tudo que existe foi feito pela mão de Deus e seus olhos estão voltados “para o pobre, o abatido, para aquele que treme diante de minha palavra” (Is 66,2). Deus está presente onde reina o amor e a justiça.

4. Deus perdoa sempre, até mesmo o pior inimigo do povo de Israel. A cidade de Nínive era considerada o símbolo dos opressores de todos os tempos. Os assírios eram famosos por sua violência e crueldade. O povo de Israel, tanto do Norte quanto do Sul, experimentou por longo tempo a crueldade do império assírio. Desde 738 a.C., o rei do Norte, Manaém, pagava tributos para o rei da Assíria. Por volta de 732 a.C., os assírios se apropriaram de várias cidades do reino do Norte. Dez anos depois, a Samaria foi invadida e transformada numa província assíria, a elite foi deportada e substituída por estrangeiros (2Rs 17,24). O reino do Sul viveu a mesma situação. Desde 732 a.C., pagava tributos para a Assíria. Foi invadido em 701 a.C. por Senaquerib, que se apoderou de 36 cidades-fortalezas. É justamente para Nínive que Javé envia Jonas. Mesmo contra a sua vontade, o enviado vai e anuncia a destruição da cidade. De acordo com a narrativa, os habitantes de Nínive fazem jejum, penitência e se convertem de seu caminho perverso e da violência de suas mãos (Jn 3,5.8). E Deus amolece o coração. Ele teve compaixão. Afinal, qual é o objetivo do autor de Jonas ao mostrar que Javé se compadece do pior inimigo de Israel? Qual é a grande cidade da época do livro? Seria apenas uma referência aos vários povos estrangeiros que moravam em Judá? É um texto que nos questiona diante dos desafios que enfrentamos na grande cidade. Quais são os maiores inimigos do nosso povo? Aceitamos que a compaixão e a misericórdia de Deus também são para eles? Eis um grande desafio para nossa reflexão pessoal e uma chave importante na leitura e compreensão da história de Jonas.

5. A misericórdia e a gratuidade de Deus não têm fronteiras. Após a queda de Jerusalém, em 587 a.C., as pessoas que foram atingidas, especialmente as elites, tentaram encontrar os motivos de sua destruição e, apesar do sofrimento e decepção, acreditavam que o exílio era castigo de Javé. Alguns salmos trazem o eco dessa maneira de pensar: “Até quando te esconderás, ó Iahweh? Até o fim vai arder como fogo tua cólera?” (Sl 89,47). No Salmo 44,12-13, lemos: “Tu nos entregaste como ovelhas de corte, tu nos dispersaste por entre as nações; vendes o teu povo por um nada, e nada lucras com seu preço”.

 

No pós-exílio, a identidade de um judaíta não vem do fato de pertencer ao povo, mas de sua fé em Javé. Isso pode ser constatado no livro de Jonas, quando os marinheiros lhe perguntam: “Donde vens, qual a tua terra e a que povo pertences?” Jonas responde: “Sou hebreu e temo a Iahweh, o Deus do céu, que fez o mar e a terra” (Jn 1,8-9). Os membros da comunidade judaica eram designados como tementes a Deus: “Vós que temeis a Iahweh, louvai-o! Glorificai-o, descendência toda de Jacó! Temei-o, descendência toda de Israel” (Sl 22,26; cf. Sl 85,10). A fé em Javé e a ideia de ser o povo eleito permitiram ao povo judeu manter identidade no exílio. Mas, no pós-exílio, a categoria de povo eleito, que inclui a noção de privilégios e superioridade, provocou atitudes exclusivistas e separatistas de grupos divergentes e estrangeiros. Riqueza, descendência e vida longa eram consideradas como bênçãos divinas para a pessoa que observava a Lei de Deus, adorando somente o Deus de Israel. As leis da pureza determinavam quem estava mais próximo de Deus e quem estava mais distante. As pessoas ligadas ao Templo acreditavam que a misericórdia de Javé era apenas para o povo de Israel puro. Na contramão da teologia oficial, o livro de Jonas apresenta um Deus que age com misericórdia para com todos os povos.

Abrir-se para o outro, superar preconceitos, desenvolver em nossa vida atitudes de misericórdia e compaixão são passos de um projeto que dura a vida inteira. Que o encontro com Jonas nos ensine a não ser como ele. Que o Deus da ternura e da compaixão seja nossa força e nossa inspiração.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

CARDOSO PEREIRA, Nancy. “Lições de cartografia: pequena introdução ao livro de Jonas”. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, nº 35-36, 2000, pp. 199-205.

KILPP, Nelson. Jonas. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1994.

LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Paulus, Loyola, 2008.

MAGONET, Jonathan. “Book of Jonah”, in: FREEDMAN, David Noel (org.). The anchor Bible dictionary. New York: Doubleday, v. 3, 1992, pp. 936-942.

TRIBBLE, Phyllis. “The book of Jonah”, in: KECK, Leander E. (org.). The new interpreter’s Bible. Nashville: Abingdon, 1996, pp. 463-529.

 

Maria Antônia Marques