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Publicado em setembro-outubro de 2013 - ano 54 - número 292

Maria pôs-se a caminho

Por Shigeyuki Nakanose

Em uma quinta-feira, no dia 31 de maio de 2012, às 9 horas da manhã, celebramos, no cemitério do Morumbi, a vida, morte e ressurreição de Isaosan, esposo de dona Terezinha, amigos de longa data. Após os cantos, rezas, depoimentos, bênçãos, caminhamos para o túmulo. Uma caminhada no meio de chuva fina, o que aumentava ainda mais o sentimento de tristeza.

No lugar do sepultamento, como celebrante, fiquei na cabeceira e olhei para o fundo do túmulo, que devia ter entre cinco e seis metros de profundidade. Um espaço escuro e tenebroso. Depois de uma pequena celebração, ao observar o caixão descendo, pouco a pouco, até o fundo, senti e achei o não à vida. A mortalidade do ser humano. A vida parece estar sucumbindo nas trevas.

Quando os coveiros começaram a jogar as primeiras pás de terra sobre o caixão já posto no fundo, escutei o canto bem baixinho iniciado por uma mulher. Em pouco tempo, o canto ganhou força, misturado com choro, aplausos e tristeza, conforto:

 

“Pelas estradas da vida, nunca sozinho estás, contigo pelo caminho Santa Maria vai. Óh! Vem conosco, vem caminhar! Santa Maria, vem!

Se parecer tua vida inútil caminhar, pensa que abres caminho, outros te seguirão. Óh! Vem conosco, vem caminhar! Santa Maria, vem!”

 

Há uma devoção rodeando Maria, mãe de Jesus, que transcende o pensamento teológico e toca no sentimento e na fé de muita gente. É um sentimento cultivado ao longo da caminhada dos fiéis. Maria, Nossa Senhora, a mãezinha do céu nos momentos mais difíceis. Como entender tanta força dessa mulher cuja devoção é um dos pilares da piedade católica. Como fazer dessa devoção uma força para a construção do Reino: a unidade em torno da justiça, da dignidade humana e da paz.

A respeito de Maria, desde a infância, costuma-se escutar a história de Maria de Nazaré, seja na família, na igreja, na escolinha, nas rodas de conversa. São as informações extraídas dos evangelhos: Os pastores visitam o menino com Maria (Lc 2,16); Os três magos visitam o menino com Maria (Mt 2,11) etc. No entanto, cada Evangelho tem seus textos exclusivos e fornece informações diferentes sobre a vida dela. Por exemplo, o Evangelho mais antigo, o de Marcos, inicia-se com a pregação de João Batista sem narrar o nascimento de Jesus, e informa a tensão entre Jesus e sua família com a presença de Maria. O Evangelho de João, escrito quase setenta anos depois da morte de Jesus, descreve Maria ao pé da cruz (Jo 19,25-27) enquanto os outros evangelhos falam da presença de algumas mulheres que observavam a cruz a distância (Mc 15,40-41).

Essas diferenças revelam que os Evangelhos, que foram escritos quarenta e até sessenta anos depois da paixão, morte e ressurreição de Jesus, não são uma mera história de Jesus. Eles nasceram das experiências das comunidades cristãs que seguiram, reinterpretaram e transmitiram as palavras e a prática de Jesus de Nazaré a partir de suas realidades. Em cada evangelho, há uma reflexão da vivência e da fé de cada comunidade.

Nos Evangelhos, Maria aparece em referência a Jesus. Os textos bíblicos sobre ela, então, são muito mais do que fatos da vida de uma mulher. Eles devem ser compreendidos na caminhada histórica de cada comunidade. Os seguidores e seguidoras de Jesus acolhem a memória de Maria de Nazaré, reinterpretam-na e incluem-na no culto e na oração a partir do contexto e da experiência da fé em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado. A figura de Maria como mãe protetora cresceu, especialmente, em momentos difíceis como as perseguições contra as comunidades.

Um dos Evangelhos que tem mais relatos sobre a vida de Maria nasce na caminhada da comunidade de Lucas. Com as narrativas de infância de Jesus (Lc 1,5-2,52), a comunidade deixa perceber a origem humilde de Maria na pequena vila de Nazaré, longe de Jerusalém, capital da Judeia. É simplesmente Maria de Nazaré! Pela tradição e fé da comunidade de Lucas, podemos dar início à caminhada com Maria.

1. Maria no contexto da comunidade lucana

O primeiro capítulo de cada evangelho é o cartão postal: apresenta o rosto – o projeto e a teologia – da comunidade que está por trás do livro. Vejamos:

  • O evangelho de Mateus começa com a genealogia de Jesus, na qual há quatro estrangeiras e Maria. Diante da Lei judaica oficial, todas essas mulheres são consideradas impuras (Tamar, Raab, Rute, Betsabeia e Maria). Com a presença de impuras na sua genealogia, Jesus é apresentado como o Messias dos impuros, dos pobres e dos excluídos.
  • No evangelho de Marcos, o primeiro capítulo apresenta a prática libertadora de Jesus na Galileia: ele convive com os marginalizados, fazendo-os voltar à liberdade e ao serviço aos outros
  • No evangelho de João, Jesus Cristo, apresentado pelo Prólogo (Jo 1,1-18), é o Filho único de Deus, que se fez carne e habita no meio da humanidade, revelando-nos o amor e o projeto do Pai.

O evangelho de Lucas também não foge à regra. Ao examinarmos Lc 1,5-38, narrativa exclusiva de Lucas, percebemos de imediato que os textos sobre João Batista e Jesus são apresentados em paralelo, mostrando o rosto da comunidade, representada por Maria, como podemos observar no esquema abaixo:

 

  

Anúncio do nascimento de João Batista (Lc 1,5-25)

Anúncio do nascimento de Jesus (Lc 1,26-38)

Apresentação Zacarias e Isabel (v. 5-7) José e Maria (v. 26-27)
Anjo Gabriel Para Zacarias (v. 8-11) Para Maria (v. 28)
Reação Ele perturbou-se (v. 12) Ela ficou intrigada (v. 29)
Encorajamento “Não temas” (v. 13a) “Não temas” (v. 30)
Anúncio Nascimento de João (v. 13b-14) Nascimento de Jesus (v. 31)
Missão Converterá muitos dos filhos de Israel (v. 15-17) Reinará na casa de Jacó para sempre (v. 32-33)
Dúvida “De que modo saberei disso” (v. 18a) “Como é que vai ser isso” (v. 34 a)
Argumento “Pois eu sou velho e minha esposa é de idade avançada” (v. 18b) “Se eu não conheço homem algum?” (v. 34b)
Resposta A concepção provém de Deus (v. 19) A concepção provém de Deus (v.  35)
Sinal Mudez (v. 20) A gravidez de Isabel (v. 36-37)
Reação Silêncio (V. 21-22) “Faça-se em mim segundo tua palavra” (v. 38)

 

Do modo como esse paralelo foi construído, tudo salienta a superioridade de Jesus. O precursor João (=Deus dá a graça) abrirá o caminho para a chegada do Messias. Jesus (=Javé salva) é o próprio Messias, o Filho de Deus, que trará a salvação. Além do mais, o paralelo também evidencia a superioridade de Maria em relação a Zacarias. Enquanto Zacarias, um velho sacerdote, está a serviço da lei do templo e fica mudo por não acreditar na ação de Deus, Maria, uma jovem da aldeia da Galileia, está a serviço da casa e fica repleta do Espírito Santo.

Se analisarmos o paralelo no contexto da comunidade de Lucas, veremos que Zacarias representa a doutrina e o culto do Templo, da instituição de Jerusalém. É uma linguagem simbólica para expressar que a religião oficial de Israel se tornou muda e sem a ação do Espírito. Em outras palavras, ela está presa em sua velha estrutura de poder e não consegue reconhecer a ação salvífica de Deus no projeto do Messias, esperado pelos pobres que clamam por justiça e libertação.

Por outro lado, Maria, uma jovem, representa a comunidade cristã dos pobres. É um novo movimento de Jesus, “Filho do Altíssimo”, no ventre de Maria. A comunidade não está no templo, mas se reúne na casa, difundindo o anúncio do Reino pelo mundo inteiro. Ela não está assim restrita à antiga religião do Templo. E como a presteza de Maria em servir, a comunidade cristã, guiada pelo Espírito, deve ser capaz de promover a comunhão entre irmãos e com Deus, de forma solidária e fraterna. As palavras finais de Maria mostram a disponibilidade dos discípulos missionários de Jesus: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo tua palavra!” (Lc 1,38).

Enfim, o fato de Maria, menina pobre de Nazaré, conceber Jesus Messias, o Filho de Deus, indica que o Deus da vida inverte a ordem social: os pobres e oprimidos se tornam sujeito da história com o projeto de solidariedade e fraternidade. Maria, por sua disposição a ser do Senhor, traz no seu ventre o novo povo de Israel. A comunidade cristã, como este novo povo de Israel, deve apresentar-se como “a serva do Senhor”, para concretizar o projeto do Deus da vida assumido na vida de Jesus de Nazaré.

No primeiro capítulo, temos ainda a narrativa da visita de Maria a Isabel, que também é uma cena exclusiva de Lucas. Ora, se olharmos bem essa narrativa na perspectiva teológica e pastoral, a comunidade lucana mostra ainda mais o seu rosto, sua prática e sua fé.

2. Maria pôs-se a caminho para a região montanhosa

A narrativa da visita de Maria a Isabel é uma continuação da narrativa anterior: a visita do anjo Gabriel a Zacarias e a Maria (Lc 1,5-38). Continua o tema da superioridade de Jesus sobre João. Mas agora aplicado diretamente à reação da criança no ventre de Isabel: “Pois, quando tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria em meu ventre” (Lc 1,44).

João, ainda no ventre de sua mãe, reconhece a grandeza de Jesus, apontando-o como o Messias, o “Filho do Altíssimo”. Com isso, Isabel, movida pelo Espírito Santo, também proclama que Jesus é o Senhor: “Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?” (Lc 1,43). Assim, resumidamente, o projeto salvífico de Deus e a prontidão de Maria, na narrativa da visita do anjo a Maria, são confirmados pela exaltação de Isabel: “Feliz aquela que creu, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido!” (Lc 1,45).

É provável que a redação final do texto da visita de Maria a Isabel contenha a interpretação teológica própria da comunidade lucana, exaltando o senhorio de Jesus e o projeto salvífico de Deus, mas, ao mesmo tempo, é um texto que recolhe a tradição teológica e pastoral do cotidiano da comunidade. Por meio da visita de Maria a Isabel, podemos perceber o caminho do discipulado de Jesus:

1)      A forma como Lucas construiu a narrativa da visita de Maria a Isabel mostra a disposição e a solidariedade de Maria. Ela viajou de Nazaré a uma cidade de Judá para ajudar Isabel, grávida com idade avançada. Viajou da Galileia para a região montanhosa da Judeia – da terra verde para a terra seca. Nessa cena, o mais importante é a solidariedade de Maria, oriunda da periferia, com relação a Isabel, esposa de Zacarias, sacerdote do Templo de Jerusalém, centro do poder e de exploração. Pastoralmente, a comunidade cristã da periferia proclama o não à opressão e o sim à solidariedade fraterna que leva à comunhão da vida.

2)      O autor da narrativa descreve a atuação de Maria de forma autônoma: “Naqueles dias, Maria pôs-se a caminho para a região montanhosa, dirigindo-se apressadamente a uma cidade de Judá. Entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel […]. Maria permaneceu com ela mais ou menos três meses e voltou para a casa dela” (Lc 1,39-40.56). A atuação autônoma de Maria é contrária ao costume do mundo patriarcal do seu tempo. É muito provável que tal descrição reflita a atuação de algumas mulheres das primeiras comunidades cristãs.

3)       “Ora, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre e Isabel ficou repleta do Espírito Santo” (Lc 1,41). O Antigo Testamento destaca a esterilidade como uma das causas de sofrimento e discriminação das mulheres (cf. 1Sm 1), porque a esterilidade impossibilita a continuação da casa. Além de ser estéril, Isabel está com a idade avançada. É outra causa de discriminação e humilhação: as crianças que nascem de mulheres idosas são consideradas fracas e rejeitadas no mundo greco-romano. Mas apesar de tais discriminações impostas sobre a figura de Isabel, a comunidade cristã atribui-lhe o papel importante de reconhecer e exclamar o mistério da concepção do Messias no corpo de Maria. O que a comunidade quer com isso é dignificar os oprimidos e denunciar todo tipo de discriminação contra o ser humano (cf. At 6,1).

4)      “Feliz aquela que creu, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido” (Lc 1,45). As duas mulheres, mães grávidas, se encontram e se regozijam com o cumprimento da promessa de Deus. Ao contrário de Zacarias, um sacerdote do Templo de Jerusalém, as duas mulheres pobres acreditam na ação salvífica de Deus na história, manifestada na tradição dos pobres do Antigo Testamento: ele está a favor dos pobres, está no meio deles. São a teologia e a fé que iluminam e animam o discipulado missionário das primeiras comunidades cristãs.

A narrativa da visita de Maria a Isabel é uma catequese sobre o discipulado de Jesus, cujas exigências são: prática de solidariedade, dignificação do ser humano e a justiça social com a fé no Deus da vida. De modo especial, o cântico de Maria é um resumo do projeto do Deus da vida, revelado na vida de Jesus.

No evangelho de Lucas, Maria é, assim, apresentada como uma mulher pobre da periferia, consciente e comprometida com a causa dos pobres. Quais os rostos de Maria segundo os outros evangelhos, então? As informações sobre a dimensão humana de Maria? Para entender e aprofundar melhor a vida de Maria de Nazaré, uma judia da Galileia, podemos dialogar com alguns textos bíblicos que nos revelam a chave para tocar em sua pessoa.

2. Maria de Nazaré, Mãe de Jesus, uma judia da Galileia

Houve uma reunião dos sacerdotes e deliberaram: “Façamos um véu para o templo do Senhor”. Disse o sacerdote: “Chamai-me as virgens sem mancha da tribo de Davi”.  Partiram os mensageiros, procuraram e encontraram sete. O sacerdote lembrou-se da jovem Maria, por ser ela da tribo de Davi e sem mancha diante de Deus. Os emissários saíram e a trouxeram. Depois que as introduziram no templo do Senhor, disse o sacerdote: “Tirai-me a sorte para saber quem tecerá o ouro, o amianto, o linho, a seda, o jacinto, o escarlate e a púrpura genuína”. Couberam a Maria a púrpura genuína e o escarlate. Apanhou-os e foi para sua casa.[1]

No início do século III, ao fazer a releitura do texto da “Anunciação” (Lc 1,26-38), o autor do apócrifo “A História do Nascimento de Maria” (O Proto-evangelho de Tiago) salienta a majestade de Maria, com narrativa sem fundamento histórico. À luz desse e outros textos dos apócrifos, compreende-se que a reflexão sobre Maria, que estava vinculada a Jesus Cristo no início do cristianismo, começa a adquirir o próprio caminho: a devoção mariana com o uso de narrações mitológicas (cf. o apócrifo “Morte e Assunção de Maria” – Trânsito de Maria ou Livro do Descanso).

Com o crescimento da piedade mariana, surge o culto à Santíssima Virgem Maria na Idade Média, desenvolvendo hinos litúrgicos e pinturas com a imagem de pura beleza, até angelical de Maria. Desde o século XVI, contra a Reforma Protestante, a Igreja Católica aumenta ainda mais a devoção a Maria junto com a adoração ao Santíssimo Sacramento e o papel do Papa. Maria é, cada vez mais, adorada como a “rainha do céu e da terra”. Chega-se a dizer que todas as graças sejam alcançadas pela Santíssima Virgem, proclamada com os dogmas da Imaculada Conceição (1854) e da Assunção (1950). É uma Maria triunfalista e endeusada.

Contudo, essa reflexão sobre Maria (mariologia) começa a ser revista com a chegada do movimento de renovação da Igreja Católica: o Concílio Vaticano II. O documento Lumen Gentium, por exemplo, situa a devoção a Maria no mistério de Jesus Cristo: “Por isso o sagrado Concílio, ao expor a doutrina da Igreja, na qual o divino Redentor opera a salvação, deseja esclarecer cuidadosamente quer a função da bem-aventurada Virgem no mistério do Verbo encarnado e do corpo místico, quer os deveres dos próprios homens remidos para com a Mãe de Deus, que é Mãe de Cristo e dos homens, em especial dos fiéis” (VIII, 54).

A mariologia, então, é retomada e aprofundada em relação com Jesus Cristo e com a comunidade de seus seguidores e seguidoras, pois ela é mãe, educadora, companheira e seguidora de Jesus. A glorificação e a devoção a Maria deve estar vinculada com a missão salvífica de Jesus Cristo, crucificado pelo império romano e seus colaboradores, e ressuscitado pelo Deus da vida.

Nessa revisão e renovação na mariologia, o movimento bíblico tem um papel fundamental: a reflexão sobre Maria a partir do estudo contextualizado da Bíblia. As informações bíblicas sobre Maria, mãe de Jesus, são imprescindíveis para não se construir uma devoção a Maria sem fundo histórico. “Toda reflexão teológica consistente baseia-se na Sagrada Escritura.”[2]

Mesmo que cada evangelho segundo sua realidade seja fruto da reflexão e interpretação da vida de Jesus de Nazaré e a comunidade de seus seguidores e seguidoras à luz da fé em Jesus Cristo ressuscitado, alguns textos nos fornecem dados importantes sobre a vida de Maria de Nazaré:

1) Maria, mulher empobrecida da Galileia

Os textos bíblicos apresentam Maria como mulher de Nazaré. É um povoado judaico entre duzentos e quatrocentos habitantes no tempo de Jesus: “As escavações levadas a efeito debaixo das estruturas cristãs posteriores não mostram nenhuma sinagoga, nem fortificação ou palácios, nenhuma basílica nem balneário, nem mesmo ruas pavimentadas. Absolutamente nada. Em vez disso, prensas para produzir azeite de oliva e vinho, cisternas, silo e pedras de moer espalhadas ao redor de covas falam de uma população rural que vivia em casebres muito simples”.[3]

Há certas evidências na arqueologia de que a vida dessa população rural era marcada pela fome e sofrimento. A pesquisa nos relata a perspectiva de vida no tempo de Jesus: no primeiro ano de vida, cerca de 30% dos recém-nascidos morriam; dentro dos 10 anos de vida, cerca de 50%. Na faixa etária dos 30 anos de idade, de 70% a 75% morriam, especialmente por desnutrição e falta de alimento, devido ao trabalho pesado e as guerras. A maioria das pessoas que conseguiam viver sofria com a fome crônica, a perda de dentes, a fraqueza nas vistas e os vermes no ventre. Era uma realidade duríssima.[4]

Uma das maiores causas do empobrecimento dos camponeses judeus era a exigência de pagamento de impostos. Os judeus eram obrigados a pagar para os romanos o imposto sobre 25 a 30% das colheitas, o pedágio para a circulação de pessoas e mercadorias, e a dedicar um tempo de trabalhos forçados para as tropas e para as obras públicas. Existiam também os impostos do Templo: vários dízimos, ofertas de sacrifícios, imposto pessoal, estipulado em um denário etc. Cresceu o número de pessoas endividadas e escravizadas. Era comum presenciar famílias inteiras sendo vendidas como escravas devido às dívidas.

O sofrimento do povo acontecia não somente no campo de tributos e comércio, mas também no campo político e cultural. Os romanos nomearam os idumeus, inimigos dos judeus, para reger a Palestina: Herodes Magno e seus filhos (Arquelau, Herodes Antipas e Filipe), cujos reinados foram marcados por brutalidade e tirania, espalhando ódio e desespero no meio do povo. Promoviam a ostentação do luxo segundo o estilo romano (cultura greco-romana), construindo palácios em cidades como Cesareia, Jerusalém, Séforis, Tiberíades, Jodefá, entre outras. Aumentaram os tributos, assim como intensificaram a exploração, a opressão e a violência contra os camponeses, que constituíam 90% ou mais da população da Palestina.

A violência das autoridades se evidenciou, especialmente, na repressão contra os movimentos populares de revolta que infestavam a Palestina. Por exemplo, a cidade de Séforis, centro administrativo da Galileia, foi centro da rebelião após a morte de Herodes, o Grande, violentamente reprimida e devastada; a população foi massacrada e escravizada. Nazaré ficava apenas a sete quilômetros de Séforis, de modo que Maria e seu filho Jesus tinham presenciado e experimentado, em sua pele, a tragédia e o desespero do povo.

Nesse caldeirão de sofrimento e tensões sociais, Maria de Nazaré viveu, formou-se, educou e acompanhou o filho, Jesus, que passou a maior parte da vida andando de uma aldeia para outra na Galileia. Ele pregou e praticou um relacionamento social e religioso baseado no amor e na justiça, o que o levou a confrontar as autoridades e, consequentemente, à cruz. Seus atos e palavras estavam enraizados nas experiências da vida camponesa de sua terra, da qual sua mãe, Maria, fazia parte.

Com muita probabilidade, a sensibilidade, a compaixão e a solidariedade de Jesus com seus irmãos sofridos e massacrados também exprimem a dimensão humana e existencial de Maria de Nazaré, mulher empobrecida da Galileia (cf. Mc 6,34).

2) Maria, mãe preocupada com seu filho

E voltou para casa. E de novo a multidão se apinhou, de tal modo que eles não podiam se alimentar. E quando os seus tomaram conhecimento disso, saíram para detê-lo, porque diziam: “Enlouqueceu!…” Chegaram então sua mãe e seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: “Eis que tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora e te procuram”. Ele perguntou: “Quem é minha mãe e meus irmãos?” (Mc 3,20-21.31-34).

Os parentes julgaram Jesus e disseram: “Enlouqueceu”. O julgamento deve ser motivado pelo comportamento e pela prática de Jesus, que não segue a Lei e o costume oficial. Os evangelhos trazem à tona essas características da atuação de Jesus: “Aconteceu que, estando à mesa, em casa de Levi, com muitos publicanos e pecadores, com seus discípulos” (Mc 2,15); “Aconteceu que, ao passar num sábado pelas plantações, seus discípulos começaram a abrir caminhos arrancando as espigas” (Mc 2,23).

Jesus vive no meio dos impuros, excluídos, endemoninhados… Entra em conflito com o guardião da Lei do puro e do impuro, de modo que os escribas o julgam: “Ele está possuído por um espírito impuro” (Mc 3,30). Diante da corrupção e exploração da autoridade do Templo, Jesus expressa sua indignação: “Vós, porém, fizestes dela um covil de ladrões” (Mc 11,17). Essa é a causa principal da ira e condenação das autoridades religiosas de Jerusalém (cf. Mc 11,18).

Os parentes e familiares tentam prender e neutralizar essa atuação de Jesus que compromete e ameaça o nome, a vida do seu clã e sua família no mundo mediterrâneo da cultura patriarcal de “honra e vergonha”. O dever de um membro de uma aldeia judaica é a fidelidade e a obediência ao chefe (ancião) de seu clã e a seu pai, que controla a família e sua herança (terra, casa, animais, filhos etc). A honra de uma família está em primeiro lugar e deve ser mantida até com a morte. A organização e tradição familiar é um dos meios importantes de sobrevivência e, ao mesmo tempo, serve, às vezes, para manter o sistema do poder na sociedade oriental e judaica da época.

Assim, entende-se que a reação dos parentes ao saber da atuação de Jesus é julgá-lo fora de si. Nesse grupo de pessoas com laços consanguíneos, Maria, a mãe de Jesus, está presente. Segundo a tradição conservadora familiar dos judeus daquele tempo, uma mulher virtuosa deve se dedicar completamente à casa, a sua administração e organização (cf. Pr 31,13-15). Enquanto o pai cuida da família no exterior (herança, relações jurídicas etc.), o cuidado da mãe está com o interior: as crianças, animais domésticos, cozinha e outras tarefas da casa. Ela desempenha como a perfeita dona de casa para honrar seu marido (cf. Pr 31,23). E não deve desempenhar atividade e responsabilidade jurídica fora de casa, porque isso desonraria o homem, o chefe da família, na cultura de honra e vergonha.

Nesse mundo oriental e judaico, é estranha a presença de Maria na delegação de seus parentes e familiares para prender Jesus, filho adulto, que estaria ameaçando a honra de seu clã e família. O problema deve ser resolvido e executado pelos homens do clã. Que pensar do encontro de Maria com Jesus neste contexto? Também o encontro é marcado pela tensão entre Jesus e seus familiares: “Ele perguntou: ‘Quem é minha mãe e meus irmãos?’. E, repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe’” (Mc 3,33-35).

Apesar de tudo isso, Maria foi ao encontro de seu filho. Por quê? Uma resposta mais convincente está na experiência humana de todos os tempos: uma mãe não abandona seu filho. É um exemplo de laço humano, utilizado até na descrição sobre o relacionamento entre Deus e o povo de Israel: “Por acaso uma mulher se esquecerá da sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem eu não me esqueceria de ti. Eis que te gravei nas palmas da mão” (Is 49,14-16).

Maria percebe que seu filho Jesus corre perigo, que está na mira das autoridades judaicas e romanas por construir uma verdadeira família baseada no amor, na justiça e na solidariedade, conforme o projeto do Deus da vida. Ela vai tentar falar, convencer e mudar a atitude de Jesus. Ela procura preservar a vida do seu filho. Emocionalmente, Maria age como qualquer mãe que ama, compadece e se arrisca pelo filho do seu ventre.

3) Maria, mãe do filho massacrado pelo poder imperial

“Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Copas, e Maria Madalena” (Jo 19, 25). Enquanto, nos sinóticos, as mulheres assistem à crucificação a distância (Mc 15,40), em João, ao invés, as mulheres e o discípulo amado permanecem ao pé da cruz. O verbo “permanecer”, que não é utilizado pelos sinóticos, exprime a teologia joanina: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). Para a comunidade joanina, as mulheres são as verdadeiras discípulas de Jesus.

Hoje a maioria dos biblistas pensa que as mulheres estavam observando de longe. Alguns presumem que Maria estaria em Nazaré da Galileia. Quer seja Maria a distância ou ao pé da cruz, ela teve o filho morto. A morte é um momento de angústia e tristeza. Para uma mãe, a morte de um filho é um contrassenso inaceitável. Ainda mais: Jesus foi executado com a crucificação. Era uma punição cruel e assustadora, aplicada aos escravos e aos não romanos criminosos, como assassinos, bandidos e rebeldes. Em geral, os romanos crucificavam os criminosos inteiramente nus em local de muita visibilidade para humilhar e intimidar o povo.

Para Maria, a morte de Jesus na cruz foi um golpe brutal, que bateu no fundo de sua alma: “Meu coração se contorce dentro de mim, minhas entranhas comovem-se” (Os 11,8). Ou como diz a comunidade de Lucas: “Eis que este menino foi posto para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição – e a ti, uma espada traspassará tua alma! – para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações” (Lc 2,34-35).

Humanamente falando, Maria chorou por Jesus, arrasada pela perda do seu filho amado, na memória de um menino carinhoso, amável, sensível ao sofrimento de outros. Também deve ter chorado por ele, destruída pelo doloroso sentimento de impotência de não ter conseguido proteger e convencer o filho a sair do caminho de confrontos com as autoridades da época.

Maria é como “inúmeras mães judias com os filhos cruelmente assassinados”. Uma mulher devastada. A situação de sofrimento extremo pode levar a pessoa a se tornar dura, inflexível e fechada, ou pode ser uma verdadeira escola de humanização. Segundo o evangelho de Lucas e o de João, que descrevem Maria como “discípula exemplar e testemunha apostólica”, Maria amadurece, compreende e se abre para o projeto de seu filho Jesus por uma sociedade igualitária, com direito de todos a uma vida digna e plena.

Historicamente, na perseguição provocada por anunciar Jesus Cristo crucificado, “que para os judeus, é escândalo, para os gentios é loucura” (1Cor 1,23), o sofrimento e dor cruel dos cristãos fazem a memória de Maria com o filho assassinado ser amplamente solidária com os familiares dos fiéis mutilados e mortos. E, até hoje, Maria, com Jesus morto, enquanto figura histórica e simbólica da comunidade cristã das origens, permanece e estimula nossa sensibilidade pela necessidade de transformar o mundo de injustiça e violência.

Ao reduzir Maria a apenas uma devoção à Maria gloriosa sem carne e osso, o caminho cristão ignora e perde toda a humanidade de Jesus de Nazaré: “Ele, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou, tomando a forma de escravo. Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como um homem abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, à morte sobre a cruz” (Fl 2,6-8).

Uma palavra final:

Na mesa do meu quarto, há uma pequena imagem de Maria. A foi danificada por vários “tombos”. É uma imagem trazida por minha mãe ao hospital, no qual eu estava lutando contra a doença. A internação durou seis meses. Como de costume, todos os dias, os meus pais me visitavam, trazendo-me o jantar – meus pratos favoritos –, contra a orientação médica. Certo dia, a imagem de Maria chegou junto com a comida.

Passaram-se mais de vinte anos. Meus pais já faleceram. Mas a imagem ainda continua na minha frente. É a memória sagrada. Por ela, me lembro de minha mãe e de meu pai, que tiveram a experiência dolorosa com a bomba atômica de Nagasaki e suas consequências, e sempre rezavam o rosário, meditando sobre a vida de Jesus. Lembro-me da internação, do sofrimento, do desespero, do amadurecimento etc. Recentemente, após as andanças por Israel, a terra de Maria, José e Jesus, a imagem de Maria me suscita reflexões sobre o cotidiano dessa mulher e seu povo de Nazaré, Galileia, mundo marcado pela violência, exploração, exclusão, miséria, doença e muita fome. E também reflexões sobre as mulheres mães de hoje e, especialmente, as mães, como Maria de Nazaré, que perderam os filhos e filhas nas diversas formas de violência e em tragédias, como, por exemplo, as mães dos 241 jovens mortos de Santa Maria, vítimas do descaso, da corrupção de valores e da impunidade.

As dores de inúmeras mães espalhadas no mundo suscitam a lembrança de Maria de Nazaré, uma judia da Galileia, Mãe de Jesus, morto por tentar abolir todo tipo de violência como a única expressão apropriada da fé no Deus da vida, presente no cotidiano da humanidade. O Brasil e o mundo serão muito melhores quando todos os devotos a Maria educarem as crianças para se tornarem pessoas sensíveis ao sofrimento de outros, e para sonhar com uma sociedade regida pela partilha, amor e justiça.



[1] A história do nascimento de Maria: o véu do templo, X, 1-2. Petrópolis: Vozes, 1991.

[2] Afonso MURAD, Maria, toda de Deus e tão humanaCompêndio de Mariologia, p. 24.

[3] John Dominic CROSSAN; Jonatham L. REED, Em busca de Jesus: debaixo das pedras, atrás dos textos, p. 75.

[4] Masahiro YAMAGUTI, O amanhecer do nascimento de Jesus: a história e o povo da Galileia, p. 225-227.

Shigeyuki Nakanose

Religioso verbita, padre, assessor do Centro Bíblico Verbo, leciona no ITESP, na Faculdade Católica de São José dos Campos e na Faculdade Dehoniana, em Taubaté.
E-mail: [email protected]