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Publicado em setembro-outubro de 2019 - ano 60 - número 329 - Pág. 03-14

“Quem reconhece que Jesus Cristo veio na carne é de Deus” (1Jo 4,2). Introdução à primeira carta de João

Por Maria Antônia Marques

Certa vez, um bispo visitou uma turma que estava se preparando para a primeira comunhão. Em conversa com as crianças, ele perguntou: “Qual o sinal do cristão?” Ele esperava ouvir: “O sinal da cruz”. Uma criança respondeu: “É o amor!” O bispo ia dizer que a resposta estava errada, hesitou um pouco e depois sorriu e disse: “Sim, você acertou!”

Introdução

Qual é o sinal característico da pessoa cristã? A pergunta é muito antiga, mas a resposta continua a mesma: o amor. “Amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, que vocês se amem uns aos outros, todos vão reconhecer que vocês são meus discípulos” (Jo 13,34b.35b). Fé e amor são colunas fundamentais de todas as religiões. Na vida cristã, nosso vínculo fundamental é com Jesus Cristo, o Messias encarnado. Daí a importância de sempre voltarmos à vida e à prática de Jesus Cristo e das comunidades que deram continuidade à sua missão: o anúncio do Reino de Deus e o amor ao próximo.

Nas primeiras comunidades cristãs, surgiram muitas definições acerca da identidade de Jesus Cristo. No fim do século I, havia grupos que dissociavam o Jesus da história do Cristo da fé e separavam a fé da vida prática, provocando desentendimentos e conflitos nas comunidades. Uma das comunidades sofridas era a da primeira carta de João. A carta inicia-se assim:

O que existia desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que temos contemplado e nossas mãos têm apalpado: a Palavra (Verbo) da Vida – porque a Vida foi manifestada, nós a temos visto, e estamos dando testemunho e anunciando a vocês a vida eterna, que estava junto do Pai e foi manifestada a nós (1Jo 1,1-2).

Ouvir, ver com nossos olhos, contemplar, apalpar com nossas mãos o Cristo, a Palavra da Vida. Dar testemunho de Jesus feito carne (cf. 4,2) é o tema principal da primeira carta de João e, ao mesmo tempo, o ponto crucial de conflitos na comunidade, porque alguns de seus membros não reconhecem “Jesus encarnado”, o Jesus humano e histórico. Eles são chamados de “anticristos” (2,18; 4,2-3; 2Jo 7), “falsos profetas” (4,1), enganosos (cf. 2,26; 3,7), “mentirosos” (2,22).

Esse grupo propõe um ensinamento gnóstico (gnosis, em grego, significa “conhecimento”), afirmando que a pessoa se salva graças a um conhecimento religioso e pessoal de Cristo Jesus, que é Espírito e portador da gnose, o conhecimento que salva. Pelo conhecimento, sem a prática, eles afirmam estar em íntima comunhão com Deus, serem iluminados e livres do pecado. Por isso, não estão empenhados no amor ao próximo e na prática da justiça (cf. 4,20-21).

Conforme a primeira carta de João, não é possível amar a Deus (Pai) sem amar o próximo (os filhos de Deus). Os dissidentes “espirituais” são acusados de “anticristos” por não viverem como Jesus Cristo feito carne e por seguirem os valores do mundo, ou seja, do Império Romano: “Eles são do mundo e por isso falam a linguagem do mundo, e o mundo os ouve” (4,5). O autor da carta ainda faz o seguinte alerta: “Não amem o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele” (2,15).

A qual mundo eles pertencem e seguem? A primeira carta de João foi escrita provavelmente pouco depois do Evangelho de João, no final do século I ou início do século II, em Éfeso, na Ásia Menor, onde provavelmente havia uma comunidade cristã significativa. Esta era uma das maiores cidades do mundo greco-romano.

1. Um olhar para a cidade de Éfeso

A cidade de Éfeso atualmente se chama Selçuk, localizada na Turquia, perto da desembocadura do rio Caistro, na costa ocidental da Ásia Menor. A cidade tinha um porto artificial, mantido por meio de dragagem, que se localizava na extremidade leste do mar Egeu e servia de embarque em direção à Grécia e a Roma. Esse porto fazia de Éfeso um local estratégico, tanto militarmente como comercialmente falando, atraindo, assim, várias nações poderosas para a região.

Após os domínios imperiais persas, gregos e dos reis de Pérgamo, o Império Romano conquistou a cidade, estabelecendo-se aí. Em 129 a.C., a província romana na Ásia Menor teve como capital a cidade de Pérgamo. Éfeso, contudo, por sua posição geográfica, era a principal metrópole, pois ligava Grécia e Roma, por mar e por vias terrestres, com a maior parte da Ásia Menor. Muitas mercadorias e grande fluxo humano alimentavam o movimento e a riqueza dessa cidade. Na época do Novo Testamento, Éfeso, com cerca de 250 mil habitantes, era uma das cinco principais cidades no mundo greco-romano, estando entre as mais poderosas e prósperas.

Sua grandeza e prosperidade transpareciam nas construções e no movimento em seu interior. A metrópole ostentava muitos prédios e espaços importantes, como ginásios de esportes, templos, teatros, mercados, bibliotecas e um arco do triunfo. As escavações arqueológicas apontam monumentos esplêndidos das épocas grega e romana:

a) o templo de Ártemis, composto de mais de cem colunas de mármore, uma das sete maravilhas do mundo antigo;
b) um grande teatro, com capacidade para cerca de 24 mil pessoas em suas arquibancadas;
c) uma praça do mercado (ágora, do grego), com inúmeras lojas.

Uma cidade com uma população mista: egípcios, gregos, ítalos, sírios, judeus, entre outros. Essa diversidade se refletia também em sua multiplicidade cultural e religiosa. Além do templo de Ártemis, vários outros templos e santuários da era romana foram descobertos ali, como o santuário dedicado a Serápis, deus egípcio. As evidências indicam que em Éfeso havia grande variedade de cultos de diversas religiões, sem mencionar a presença de diferentes escolas filosóficas e de magos.

Prosperidade, grandeza, beleza, poder e diversidade faziam de Éfeso verdadeira cidade cosmopolita. Nela circulavam muitas pessoas e muitas mercadorias por via terrestre e marítima, em uma busca desenfreada de bens, poder, prazer e honra (helenização). Esse era o espírito do mundo greco-romano dos poderosos, chamado de Maligno em 1Jo 2,13. Ao mesmo tempo, a cidade apresentava os males da ganância, exploração, corrupção, violência, imoralidade, desigualdade, miséria, fome e morte em seu interior: “Pois tudo o que há no mundo – os maus desejos vindos da carne e dos olhos, a arrogância provocada pelo dinheiro – são coisas que não vêm do Pai, mas do mundo” (1Jo 2,16).

A grande massa de “imigrantes pobres e escravos” do Oriente Médio e das margens do Mediterrâneo chegou a Éfeso para ganhar a vida e sobreviver na cidade cosmopolita. Eram pessoas pobres e desenraizadas! Elas sofriam com a insegurança e a violência na periferia. Nessa cidade, a Boa-Nova de Jesus Cristo foi semeada e espalhada, enfatizando o amor ao próximo (cf. 1Jo 2,3-11).

2. Conhecendo a sociedade greco-romana e a comunidade cristã de 1Jo

Éfeso era uma típica sociedade escravagista. A riqueza era produzida pelo trabalho escravo. Cerca de dois terços da população eram constituídos por pessoas pobres e escravizadas, vivendo à margem da sociedade. Os escravos, considerados mercadoria e propriedade, sofriam muitas vezes injustiça, violência e crueldade. Nessa sociedade, pairavam sofrimento, desespero, revolta dos pobres!

Um dos meios de o Império Romano controlar os habitantes em uma cidade como Éfeso era a rede (sistema) de patronato ou clientelismo, caracterizada pela troca de favores entre as pessoas, criando verdadeira teia de submissão, dependência, influência e poder. A prática de um patrono rico favorecer o cliente pobre criava dependência e submissão, porque a pessoa pobre devia sentir-se grata e devedora de favores ao poderoso.

O Império Romano, tendo o imperador como “patrono supremo”, organizava a sociedade hierárquica pelo sistema patronal, para controlar e subjugar o povo. O patronato estava presente em todas as dimensões da sociedade, especialmente nas associações, um fenômeno muito comum no mundo greco-romano, e era quase impossível viver à sua margem. A hierarquia da sociedade de patronato e clientelismo dificultava o surgimento de movimentos de resistência e de protesto contra os poderosos patrocinadores. Abafava e engolia a exploração, a violência e humilhação, o sofrimento e desespero, dividia os pobres e dificultava a revolta dos explorados no mundo greco-romano opressor.

Nesse contexto, a “associação cristã” estava na contramão do patronato. No seguimento do evangelho de Jesus, o Messias encarnado, a associação cristã tentava promover a solidariedade com os pobres, buscando propiciar-lhes espaço de liberdade e dignidade, sem criar dependências, não se deixando corromper pelas estruturas injustas de patronato ou clientela. Procurava não fazer distinção de pessoas, à diferença do mundo greco-romano, que praticava a injustiça, privilegiando os ricos e os detentores do poder. Daí o princípio fundamental que orientava a ação cristã: o amor ao próximo, manifestado na vida concreta de Jesus, o Messias encarnado (cf. 1Jo 3,11-24).

Na comunidade cristã, com a rede de solidariedade, constatavam-se várias ações concretas: a) partilha de alimento com os pobres; b) acolhimento de forasteiros, estrangeiros e perseguidos; c) atendimento a viúvas e crianças órfãs; d) sepultamento digno para os pobres escravos. O grupo social menos favorecido recebia especial atenção da caridade praticada pela comunidade cristã, que agia de modo contrário ao mundo escravagista.

No entanto, como testemunham a carta de Judas e a segunda carta de Pedro, as comunidades cristãs da Ásia Menor (do século I ou do início do II) sofriam com divisões internas e conflitos, provocados pelos falsos profetas ou mestres (cf. Jd 8-19; 2Pd 2,1-3). Eles renegavam Jesus como o Messias encarnado, sua vida terrestre, morte, ressurreição e a promessa da sua volta gloriosa. Como não haveria “parusia” (a vinda do Senhor) nem julgamento, tudo era permitido; podiam realizar, até com extravagância, todos os desejos – “imundícies” (cf. Jd 16; 2Pd 2,13-14).

Esses ensinamentos e práticas se enquadravam no movimento gnóstico, que se desenvolveu mais fortemente no século II. Para os profetas e mestres gnósticos, a salvação estava no conhecimento, desligado da vida prática. Somente por meio da iluminação mental e espiritual a pessoa entrava em comunhão com o Deus verdadeiro. Dessa forma, a fé cristã era substituída pelas buscas espirituais sem o seguimento do evangelho de Jesus Cristo. Como se estava na pretensa união com Deus, na vida moral não havia pecado nem julgamento de Deus, o que abria espaço à libertinagem, corrupção e imundícies.

A segunda carta de Pedro e a carta de Judas mostram urgência em seus propósitos de advertir as comunidades cristãs contra os falsos profetas ou mestres. Repreendem e rejeitam os pensamentos e as práticas dos falsos profetas atuantes nas comunidades, os quais buscavam destruir a fé alimentada pela prática do evangelho de Jesus Cristo, transmitida pelos apóstolos (cf. Jd 3).

Assim como as duas cartas católicas (Jd e 2Pd), a primeira carta de João – uma carta católica do fim do século I ou começo do século II – enfrenta esse problema e assume o objetivo de advertir as comunidades contra os falsos profetas ou anticristos, que brotam do seio das comunidades (cf. 2,19):

a) Mundo e libertinagem: “Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo – os maus desejos vindos da carne e dos olhos, a arrogância provocada pelo dinheiro – são coisas que não vêm do Pai, mas do mundo” (1Jo 2,15b-16).
b) Renegar Jesus como o Messias: “Quem é o mentiroso, senão quem nega que Jesus é o Messias? Esse tal é o Anticristo, aquele que nega o Pai e o Filho” (1Jo 2,22);
c) Conhecer a Deus: “Quem diz que conhece a Deus, mas não trata de guardar os mandamentos dele, é mentiroso; nesse não está a verdade” (1Jo 2,4).

Alguns membros se afastam da comunidade porque pretendem viver a vida que vem do mundo do Maligno, gerador de desejos desenfreados de riqueza e de prazer. Por isso rejeitam Jesus Cristo, o Messias encarnado, e não praticam os mandamentos do amor ao próximo. Dizem ter o conhecimento de Deus e, por conseguinte, creem estar em comunhão com ele, sem pecado nem julgamento. Com seus pensamentos e práticas, provocam conflito e divisão na comunidade.

Diante do conflito desordenado com os inimigos ou rivais, o autor de 1Jo, o representante da comunidade, reage energicamente, condenando-os e identificando-os como “anticristos” que têm aparecido na comunidade. Alerta a comunidade para que fique atenta e saiba discernir quem são os anticristos ou os falsos profetas.

3. Organização da primeira carta de João

A comunhão com Deus e com seu Filho, Jesus Cristo, é o tema principal da primeira carta de João: “Quem confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus” (4,15). Essa confissão implica assumir o mandamento do amor: “Que acreditemos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, conforme o mandamento que ele nos deu” (1Jo 3,23b; cf. Jo 13,34; 15,17). É no amor fraterno que cada pessoa se torna morada de Deus e do seu Filho, Jesus Cristo.

A primeira carta de João evidencia a importância da encarnação de Jesus Cristo. É possível que as comunidades estivessem influenciadas por outras formas de compreender Jesus Cristo, acolhendo ensinamentos que faziam distinção entre Jesus, o homem, e o Cristo, o enviado de Deus, negando a dimensão e a importância da vida e da prática de Jesus bem como sua morte na cruz.

Como está estruturada a primeira carta de João? Alguns afirmam que essa carta é a junção de cinco a nove trechos de homilias, outros acreditam ser a reunião de duas cartas menores. Há também os que observam o fato de ela ter a mesma estrutura do Evangelho de João (prólogo, epílogo e duas partes). Aqui, vamos utilizar a proposta de estrutura que divide a carta em três partes (1,5-2,28; 2,29-4,6; 4,7-5,13), com um prólogo (1,1-4) e um epílogo (5,14-21).

Prólogo (1Jo 1,1-4): Vimos, escutamos, contemplamos e tocamos o Verbo da Vida! O prólogo apresenta uma síntese da carta, testemunhando, com todos os sentidos, a encarnação e reforçando a comunhão com o Pai, o Filho e a comunidade. Jesus Cristo é a Palavra encarnada!

Primeira parte (1Jo 1,5-2,28): Deus é luz. Luz é sinônimo de vida, de realidade do bem; trevas são tudo o que se opõe à vida, indicam as realidades contrárias ao projeto de Deus. Caminhar na luz é aceitar o projeto de Deus realizado na vida e morte de Jesus Cristo (cf. 1Jo 1,5-7). Esse caminho tem quatro condições: a) reconhecer-se pecador (cf. 1Jo 1,8-2,2); b) o amor (cf. 1Jo 2,3-11); c) não amar o mundo (cf. 1Jo 2,12-17); d) preservar-se dos anticristos (cf. 1Jo 2,18-28).

Para essa comunidade, pecado é adesão às realidades de injustiça. Caminhar na luz exige vivenciar o mandamento do amor, base das relações humanas: “Quem diz que permanece em Deus deve caminhar como Jesus caminhou” (1Jo 2,6). As pessoas são orientadas para não aceitar as realidades de injustiça, denominadas pelo autor de “mundo”. Finalizando esta parte, o autor faz um apelo para que a comunidade reconheça o Anticristo – aquele que nega que Jesus é o Messias (cf. 1Jo 2,22) – e dele saiba se preservar.

Segunda parte (1Jo 2,29-4,6): É a partir de Jesus que podemos ser chamados de filhas e filhos de Deus, e a exigência é viver a prática da justiça. Para caminhar na justiça, são necessárias três atitudes: a) romper com o pecado (cf. 1Jo 3,3-10); b) observar o mandamento do amor (cf. 1Jo 3,11-24); c) discernir o verdadeiro Espírito (cf. 1Jo 4,1-6). Nesta parte, há forte contraste entre a justiça e o pecado. O amor e a solidariedade comprovam nossa identidade de filhas e filhos de Deus. A marca da vida cristã é o amor fraterno: “Jesus entregou sua vida por nós; portanto, também nós devemos entregar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16b). A comunidade é desafiada a examinar os espíritos para ver se vêm de Deus, e o critério é acreditar que “Jesus Cristo veio na carne” (cf. 1Jo 4,2).

Terceira parte (1Jo 4,7-5,13): Amor e fé são os temas da terceira parte. Ao abordar o tema do amor, por duas vezes o autor afirma que Deus é amor (cf. 1Jo 4,8.16). Amar é fazer a experiência da essência divina presente em nós. O amor de Deus é concreto: “Deus enviou seu Filho único ao mundo, para podermos viver por meio dele” (1Jo 4,9). É o amor fraterno que nos possibilita conhecer a Deus. A única forma de permanecer em Deus é no amor, que nos liberta de todo temor: “No amor não existe medo” (1Jo 4,18a). A experiência de amar e ser amado ajuda a pessoa a vencer o mundo – as realidades de injustiça. Assim, o autor anuncia o último tema: a fé (cf. 1Jo 5,4-13). É capaz de vencer o mundo quem acredita que Jesus é o Filho de Deus, o Messias encarnado, o amor de Deus feito carne. Ele é a fonte da vida eterna (cf. 1Jo 5,11-12). A carta conclui reforçando que a comunidade que acredita no nome do Filho de Deus tem a vida eterna (cf. 1Jo 5,13).

Epílogo (1Jo 5,14-21): Oração pelos pecadores e a fé em Jesus Cristo. É a oração que nos põe em contato com o projeto de Deus e com as pessoas. A comunidade é chamada a rezar pelas pessoas sujeitas a fraquezas humanas, “o pecado que não leva à morte”. A rejeição do projeto que Deus realiza por meio de Jesus Cristo encarnado é um pecado que leva à morte. O texto finaliza com uma advertência: “Filhinhos, fiquem longe dos ídolos” (5,21). É preciso afastar-se de qualquer tipo de idolatria. Deus quer vida plena para todas e todos.

A leitura da primeira carta de João nos ajuda a retomar os ideais da vida cristã. A Palavra da Vida continua se encarnando entre nós para ser Caminho, Verdade e Vida, inspirando-nos novas práticas de amor ao próximo. É uma carta que lança o convite às suas leitoras e aos seus leitores para romper com o pecado, com o mundo e com os anticristos. Há um acento especial na observância do mandamento do amor, porque Deus é amor. Que novamente possamos ver, ouvir, contemplar, tocar e testemunhar a Palavra que se faz carne, atendendo ao apelo para dar continuidade à missão de Jesus: a implantação do Reino de Deus.

Conclusão: exigências para a vida cristã ontem e hoje

Vivemos em uma era na qual o real é substituído pelo virtual e a sociedade traz as marcas do individualismo, que prima pelo culto de si mesmo. O que vale é viver e ser feliz a todo custo, sem se importar com as pessoas ao redor. Uma das chagas do nosso tempo é a insensibilidade social. A primeira carta de João, escrita para as primeiras comunidades cristãs, enfrentava conflitos semelhantes. Por isso se verifica nela a insistência no amor fraterno, na comunhão com o irmão, com a irmã, como a base para o relacionamento com Deus: “Amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus. E todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus” (4,7).

É pelo amor que nos tornamos filhas e filhos de Deus. Ele nos amou primeiro e por isso envia seu Filho para nos livrar da realidade de injustiça. É muito oportuno e necessário reler e atualizar a primeira carta de João nos tempos atuais. É um convite permanente a vivenciar o amor fraterno, que se traduz em gestos concretos.

Na vida cristã, o amor fraterno não é opcional, mas atitude fundamental. Eis alguns pontos da primeira carta de João sobre os quais podemos refletir:

a) Jesus, o Messias encarnado, nos purifica de todo o pecado (1Jo 1,5-2,2). Em resposta a um grupo que afirma estar em comunhão com Deus e isento de pecado, o autor sustenta que a comunhão com Deus exige a prática concreta de amor ao próximo. Recorda aos que estão em via de dissidência que afirmar estar sem pecado é negar a ação de Jesus Cristo, o servo chamado para o serviço da justiça (cf. Is 42,1-9). Ele sofre com a perseguição e a violência por causa da sua luta contra o pecado, entendido como a prática da injustiça (cf. 1Jo 1,9; Is 50,4-11), e morre como “vítima expiatória” pelo amor ao próximo até o fim (cf. Is 53,10). O autor, inspirado nos cânticos do Servo, reforça que Jesus Cristo “é a vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 2,2a). O amor de Deus é universal: “e não só pelos nossos, mas pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2b; cf. 1Jo 4,14). Jesus Cristo, fiel e justo, é nosso advogado (cf. 1Jo 2,2). Ele é o Messias encarnado, que entrega sua vida pela salvação do ser humano. Ele se faz pessoa! A única forma de entrar em comunhão com Deus é aceitar Jesus Cristo, o Messias, e amar o próximo. Jesus Cristo, o Servo de Deus, purifica-nos de todo o pecado – da realidade de injustiça – e nos convoca para assumirmos o projeto divino, por ele vivenciado: amar até o fim.

b) Não amar o mundo: a realidade do mal (1Jo 2,12-17). “Escrevo a vocês”; “Escrevi a vocês”: no presente e no passado, o autor exorta a comunidade, a qual carinhosamente chama de “filhinhos”, especificando dois grupos: os pais, as pessoas que aderiram ao projeto de Jesus Cristo há mais tempo – “desde o princípio” (1Jo 2,13) –, e os jovens, os recém-convertidos. Estes estão “vencendo o Maligno” – o mundo enquanto realidades de injustiça –, são fortes e a palavra de Deus permanece neles.

Em seguida, o autor da carta exorta: “Não amem o mundo nem o que há no mundo” (1Jo 2,15). O amor ao mundo e o amor do Pai são incompatíveis. Nesse texto, o mundo deve ser entendido como forças de oposição ao projeto do Deus amor. Jesus Cristo é o caminho que nos leva ao Pai. O que há no mundo? “Os maus desejos vindos da carne e dos olhos, a arrogância provocada pelo dinheiro” (1Jo 2,16).

Como podemos entender os maus desejos vindos da carne? São desejos desordenados que visam à própria satisfação, sem considerar as necessidades das outras pessoas. O desejo entra pelos olhos, refere-se ao mundo mental. Quantas coisas vemos e desejamos? Os desejos criados pelo mundo do Império Romano são semelhantes aos desejos do mundo em que vivemos. A sociedade incentiva o consumismo. A todo momento, somos estimuladas/os pela visão, e muitas pessoas se endividam para preencher necessidades criadas pela sociedade capitalista. A arrogância do dinheiro faz a pessoa querer mais e mais. O que há neste mundo é contrário ao projeto de Deus.

Com um olho no chão da vida das primeiras comunidades e outro em nossas comunidades do presente, enxergamos a mesma realidade: de um lado, luxo e riqueza; de outro, miséria, exploração, corrupção e morte. É nesse chão que as primeiras comunidades foram interpeladas a viver o seguimento de Jesus Cristo, e esse mesmo apelo continua nos convocando para vivermos o compromisso profético.

c) Discernir os sinais do verdadeiro Espírito (1Jo 4,1-6). O autor da primeira carta de João nos põe diante de dois grupos: de um lado, estão as comunidades, que ele chama de “amados”, “filhinhos”, os que são de Deus; de outro, “os que dizem ter o Espírito de Deus”, os “falsos profetas”, os “anticristos”, os que “falam a linguagem do mundo”.

Como distinguir o verdadeiro do falso profeta? O autor indica um critério claro: “Quem reconhece que Jesus Cristo veio na carne, esse vem da parte de Deus” (1Jo 4,2). E quem nega isso é o Anticristo (cf. 1Jo 4,3; 2,22). O principal critério é confessar que Deus se fez carne: “O que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que temos contemplado e nossas mãos têm apalpado: a Palavra da Vida” (1Jo 1,1).

Quem é de Deus reconhece Jesus Cristo. Essa confissão implica ir além do assistencialismo e comprometer-se com a construção de uma sociedade justa e solidária, em oposição às realidades que negam a vida do ser humano. Negar Jesus Cristo é rejeitar o próprio Deus. Qual resposta podemos dar à pergunta sobre se somos de Deus? Nossa fala, escuta e ação revelam nossa origem. É preciso continuar vida afora o processo de discernimento para distinguir os verdadeiros dos falsos profetas. Nosso seguimento de Jesus Cristo deve nos levar a um compromisso profético com a justiça, especialmente para os empobrecidos, que continuamente têm os direitos pisoteados e roubados. Reconhecer Jesus Cristo na carne é dar continuidade à sua missão: “Como o Pai me enviou, eu também envio vocês” (Jo 20,21b).

d) O amor faz a vida ressurgir (1Jo 3,11-24). Um texto que começa e termina com o amor fraterno. O centro é o amor que gera a vida e o ódio que provoca a morte. Não existe uma forma de amar sem manifestar práticas concretas de amor ao próximo. O amor não é teoria, mas exige compromisso concreto com a vida digna de nossas irmãs e irmãos, e é o Mestre que nos aponta o caminho: “Porque Jesus entregou sua vida por nós; portanto, também nós devemos entregar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16).

O amor de Deus não está em quem é insensível ao sofrimento de seus semelhantes. O apelo ao amor fraterno é incisivo. Nesta carta, não se pede amor a Deus, mas sim ao irmão. Um amor concreto que nos move à compaixão e à solidariedade, especialmente para com as pessoas pobres e oprimidas. “Quem não ama permanece na morte” (3,14b). Somos chamadas e chamados a fortalecer nossa fé em Jesus encarnado e no amor mútuo.

Os anticristos acreditavam que passariam da morte para a vida sem julgamento, mesmo não amando suas irmãs e irmãos. O único elemento que pode tranquilizar nossa consciência é o amor. O critério é guardar o mandamento de Deus: “Que acreditemos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros conforme o mandamento que ele nos deu” (1Jo 3,23). E o mandamento é: “amemo-nos uns aos outros” (1Jo 3,11; cf. Jo 13,34; 15,17). O amor é a condição para Deus se fazer morada em nosso meio (cf. Jo 14,23; 1Jo 3,24).

e) Deus é amor (1Jo 4,7-5,4). O verbo agapan, usado 34 vezes nesse texto, indica um amor incondicional, que se manifesta em gestos concretos. É amor que age, que sai ao encontro da outra, do outro: “o amor vem de Deus”, ele nos amou primeiro (1Jo 4,7.10.19). Deus é a origem e a essência do amor e o único caminho para chegarmos até ele, pois “Ele é amor” (1Jo 4,8.16). Nossa experiência de Deus passa pela vivência do amor: “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece conosco, e seu amor acontece em nós de forma perfeita” (1Jo 4,12).

Jesus Cristo é a manifestação concreta do amor de Deus: “Deus enviou seu Filho único ao mundo para podermos viver por meio dele” (1Jo 4,9.14). Não é possível separar amor a Deus de amor ao próximo. A condição para permanecer em Deus não é seguir um conjunto de regras ou cumprir alguns rituais, mas amar. “No amor não existe medo. Pelo contrário, o amor perfeito lança fora o medo” (1Jo 4,18a).

O amor a Deus se comprova com base em nossa capacidade de amar as irmãs e os irmãos. Nesse sentido, o autor da primeira carta de João afirma: “Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas odeia seu irmão, esse tal é um mentiroso. Pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E este mandamento nós o recebemos dele: quem ama a Deus, ame também o seu irmão” (1Jo 4,20-21). O texto é muito claro: a única forma de experimentar Deus é o amor fraterno.

É fundamental compreender a realidade do amor de Deus manifestado em Jesus Cristo encarnado. No centro da vida cristã está o amor, e nossa confissão de fé deve nos impulsionar para o serviço às pessoas necessitadas. Amar e ser amado nos torna participantes da essência divina. Não tem sentido uma religião centrada numa fé individualista e no cumprimento de rituais, desligada da vida. A ideologia que sustenta o poder e a opressão é contrária ao evangelho de Jesus, o Messias encarnado, que assume a causa da justiça até a entrega da própria vida e nos convoca a seguir o mesmo caminho.

Voltamos à pergunta inicial: que sinal identifica o cristão? É o sinal da cruz? A cruz, em si, é símbolo de tortura, mas, para a vida cristã, é a consequência de um amor que se entrega até o fim: “Ninguém tem amor maior do que alguém que dá a vida pelos amigos” (Jo 15,13). É o amor que gera a fé: “Todo aquele que nasceu de Deus vence o mundo” (1Jo 5,4). Portanto, o apelo feito às primeiras comunidades continua válido para as comunidades cristãs de todos os tempos: caminhar como Jesus caminhou (cf. 1Jo 2,6b).

A primeira carta de João tem como eixo central a confissão de que Jesus é o Filho de Deus: “Quem confessa que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus” (4,15). Trata-se de carta para ser lida, rezada, meditada, contemplada, pois o amor é um processo permanente em nossa vida e sempre novo. Amor e conhecimento de Deus são inseparáveis. É amando que Deus permanece conosco! Amemo-nos: eis a condição para superar a realidade de morte.

Maria Antônia Marques

Maria Antônia Marques é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no Instituto São Paulo de Estudos Superiores – Itesp. Juntamente com o Centro Bíblico Verbo, tem publicado pela Paulus, todos os anos, um subsídio para reflexão e círculos bíblicos para o mês da Bíblia. O do ano de 2019 é Jesus Cristo veio na carne é de Deus (1Jo 4,2): entendendo a primeira carta de João. E-mail: [email protected]