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Publicado em março-abril de 2015 - ano 56 - número 302

A ação pastoral em tempos de mudança: Modelos obsoletos e balizas de um novo paradigma

Por Agenor Brighenti

O artigo lança um olhar analítico sobre a situação da pastoral hoje, no contexto de profundas transformações e de crise social e, consequentemente, das instituições e da Igreja. Identifica modelos de pastoral inconsequentes com o momento atual e as balizas fundamentais para novo paradigma pastoral capaz de interagir com o mundo contemporâneo de maneira criativa, sem aferrar-se nem ao passado nem à modernidade e à pós-modernidade.

Às vezes, quiséramos ignorar, mas não há como negar. Sobram evidências de que estamos imersos em um tempo marcado por profundas transformações. E, praticamente, como elas atingem todas as esferas da vida social, mergulham-nos em um tempo de crise: crise de paradigmas e das utopias, das ciências e da razão, dos metarrelatos e das instituições, crise de identidade, das religiões, de valores, crise de sentido. É um tempo incômodo, pois está permeado de incertezas e angústias, mais tendente à criatividade do que ao plágio ou ao agarrar-se a velhas seguranças de um passado sem retorno.

Entretanto, como nos adverte a sabedoria oriental, crise não é “fim da história” ou “beco sem saída”. Crise é encruzilhada, ocasião de novas oportunidades, mas sob condição de não fugirmos dela. Crise é metamorfose, passagem, travessia, só que tanto para a morte como para um novo nascimento, dependendo de como a enfrentamos. Se fugirmos dela, é presságio de um fim catastrófico; se a assumirmos, é prenúncio de um tempo pascal, de novo começo.

O amplo leque de mudanças em curso atesta que, em grande medida, a crise atual se deve à crise da modernidade, do projeto civilizacional moderno, responsável pelas maiores conquistas da humanidade, mas, ao mesmo tempo, pelas maiores frustrações da história. Por um lado, não se podem descartar valores como democracia, liberdade, igualdade, ciência, estado de direito, tecnologia, autonomia da subjetividade, tolerância; por outro, é preciso reconhecer que a sociedade moderna, fundada no mito do progresso, deixou sem respostas as questões mais ligadas à finalidade do progresso e da aventura tecnológica, à realização e à felicidade pessoal, enfim, ao sentido da vida. Prova disso é a irrupção de novas realidades, diante das quais o projeto civilizacional se tornou mais curto do que falso, e, com elas, a emergência de novas aspirações e valores. Em outras palavras, a crise atual deve-se mais à emergência de novas perguntas e à busca de novas respostas a aspirações legítimas antes não contempladas do que aos equívocos da modernidade, por mais numerosos e graves que tenham sido.

Consequentemente, a saída da crise não está em ser antimoderno ou pré-moderno. Nem em ser pós-moderno ou em aferrar-se à modernidade. Mas, sim, em dar um passo a mais dentro da modernidade, redimensionando seu projeto e acrescentando novas aspirações a ele, que ainda não foi substituído por nenhum outro que o supere. Ou seja, apesar de estarmos mergulhados em tempos de crise, trata-se, pois, de olhar para a frente, de dar respostas novas às novas perguntas, de criar o novo em nosso presente, alicerçados nas conquistas do passado.

Para nos situar no atual momento eclesial e pastoral, é importante ter presente esse pano de fundo, pois também a experiência religiosa e a Igreja passam por profundas mudanças; também a instituição eclesial, as teologias e a pastoral estão mergulhadas num tempo de crise; também no meio religioso, entre ambiguidades e retrocessos, irrompem novas realidades e legítimas aspirações. E também nós, os cristãos, se formos às causas da atual crise pastoral, depararemos com a crise da sociedade, que afeta igualmente a Igreja. E nem poderia ser diferente, pois o mundo é constitutivo da Igreja. Não é o mundo que está na Igreja, mas é a Igreja que está no mundo. O povo de Deus peregrina no seio de uma humanidade toda ela peregrinante. E o destino do povo de Deus não é diferente do destino de toda a humanidade. Tal como na sociedade atual em relação à modernidade, também na Igreja há dificuldade em situar-se em nosso novo tempo, para interagir com ele, e, sobretudo, há dificuldade de aprender e enriquecer-se com as novas realidades emergentes. A renúncia de Bento XVI deu-se nesse contexto, em grande medida, fruto do esgotamento de posturas marcadas por um “entrincheiramento identitário” que torna a Igreja refém de uma “subcultura eclesiástica”.

A crise da modernidade afeta diretamente a Igreja, pois nela está também implicado o Concílio Vaticano II, dado que, entre outras coisas, ele significou a reconciliação da Igreja com o mundo moderno, depois de cinco séculos de oposição e excomunhão em bloco. O que a modernidade representa para a humanidade o Vaticano II significa para a Igreja. E da mesma forma que a modernidade está em crise, também o Vaticano II atravessa profunda crise, percepção que para muitos constitui um grande equívoco, num momento de ingênuo otimismo eclesial, como foi o agitado “Maio de 68”. Os saudosistas do rito tridentino, entre outros, querem anular o Vaticano II, que, segundo eles, teria destruído a Igreja. Estaria, então, a saída da crise eclesial em ser anti-Vaticano II (a postura apologética da Contrarreforma tridentina) ou pré-Vaticano II (refugiando-se nas práticas medievais de piedade devocional)? Estaria a saída em ser pós-Vaticano II (entregues ao emocionalismo, entre a magia e o esoterismo) ou em aferrar-se à letra do Concílio, fechando-se a nova recepção dele no novo contexto?

Por um lado, infelizmente, tal como no âmbito da sociedade, no seio da qual as diferentes hermenêuticas da crise da modernidade se configuram em projetos sociais distintos, também no âmbito eclesial, as diversas hermenêuticas do Vaticano II e da tradição latino-americana configuram modelos de pastoral diferentes e, em muitos aspectos, antagônicos; por outro, felizmente, também estão presentes nos meios eclesiais práticas pastorais que vão sinalizando as balizas de um novo paradigma de pastoral, centrado na integração de novas realidades e legítimas aspirações, que irrompem na história como “novos sinais dos tempos”. O novo pontificado se põe nessa perspectiva, tal como atesta, sobretudo, a Evangelii Gaudium. A Conferência de Aparecida também nos desafiou a ser consequentes com a renovação do Vaticano II e da tradição libertadora latino-americana.

  1. Modelos de pastoral inconsequentes com os tempos atuais

Um olhar analítico sobre a situação da pastoral na Igreja hoje pode identificar pelo menos quatro modelos de pastoral inconsequentes com o momento atual: a pastoral de conservação, que tende a desconhecer o atual processo de mudanças; a pastoral apologista, que tem medo delas; a pastoral secularista, que adota uma postura mimética e mercadológica diante delas; a pastoral liberacionista, que teima em negá-las, achando que, na conjuntura atual, mudar é retroceder.

Na realidade, são modelos de pastoral sem futuro, pois estão na contramão da história, fechados aos novos sinais dos tempos e às interpelações do Espírito. Entretanto, é preciso ficar atentos e não adotar uma atitude desqualificadora deles, em bloco. Como todo acontecimento histórico é marcado pela ambiguidade, esses modelos também são portadores de elementos de um novo paradigma pastoral, congruente com as exigências das mudanças dos tempos atuais.

Desconhecendo as mudanças: a pastoral de conservação (de cristandade)

A pastoral de conservação, assim denominada por Medellín (Med 6,1) e nomeada por Aparecida (DAp 370), é o modelo de pastoral do regime de cristandade. Está ainda vigente na Igreja e existe há mais de mil anos, apesar de haver sido radicalmente superado pelo Concílio Vaticano II, há meio século. Funciona centralizado no padre e na paróquia e, no seio desta, na matriz. A paróquia, entretanto, desde o início da Idade Média, continua sendo, para a maioria dos católicos, o único espaço de contato com a Igreja, o que não anula a urgente necessidade de uma renovação profunda de suas estruturas, tal como a CNBB tem proposto ultimamente.

A pastoral de conservação está à margem da sociedade atual, funcionando como que de forma imune à renovação do Vaticano II, desconhecendo a modernidade, bem como a crise da modernidade e o processo de mudanças em curso. Tributário do dualismo agostiniano que opõe a “cidade de Deus” à “cidade dos homens”, o âmbito eclesial é o espaço do sagrado, refúgio dos cristãos, perante a perdição do espaço profano do mundo, indiferente à salvação (extra eclesiam nulla salus).

Na pastoral de conservação, em sua configuração pré-tridentina, a prática da fé é de cunho devocional, centrada no culto aos santos e composta de procissões, romarias, milagres e promessas, práticas típicas do catolicismo popular medieval (um catolicismo “de muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre” – Riolando Azzi). Já em sua configuração tridentina, a vivência cristã gira em torno do padre, baseada na recepção dos sacramentos e na observância dos mandamentos da Igreja.

Resquício de uma sociedade teocrática, assentada sobre o denominado “substrato católico” de uma cultura rural estática, pressupõe que os cristãos já estejam evangelizados, quando na realidade se trata de católicos não convertidos, sem a experiência de um encontro pessoal com Jesus Cristo e o Reino de Deus. Consequentemente, não há processos de iniciação cristã, catecumenato ou catequese permanente. A recepção dos sacramentos salva por si só, sendo eles concebidos e acolhidos como “remédio” ou “vacina espiritual”. Em lugar da Bíblia, coloca-se na mão do povo o catecismo da Igreja. Em lugar de teologia para formar cristãos adultos, enquadram-se os fiéis na doutrina e nos dogmas da fé católica. A paróquia é territorial e nela, em lugar de fiéis, há clientes que acorrem esporadicamente ao templo para receber certos benefícios espirituais fornecidos pelo clero. Na pastoral de conservação, o administrativo predomina sobre o pastoral; a sacramentação sobre a evangelização; a quantidade sobre a qualidade; o pároco sobre o bispo; o padre sobre o leigo; o rural sobre o urbano; o pré-moderno sobre o moderno; a massa sobre a comunidade.

Temendo as mudanças: a pastoral apologista (de neocristandade)

A pastoral apologista é o modelo de pastoral do regime de neocristandade, que teve seu auge no século XIX, quando a Igreja pré-moderna jogou suas últimas cartas no confronto com a modernidade. Pouco tempo depois, ela será desautorizada em seus pressupostos pelo Concílio Vaticano II, que insere a Igreja em atitude de “diálogo e serviço” ao mundo. Nos dias atuais, com a crise da modernidade e a falta de referenciais seguros, a pastoral apologista volta com força, com ares de “revanche de Deus”, com muito dinheiro e poder, triunfalismo e visibilidade, guardiã da ortodoxia, da moral católica, da tradição. O tradicionalismo e o fundamentalismo são sempre um fenômeno ligado às elites, a uns poucos abastados. Nos dois pontificados anteriores ao atual, os movimentos eclesiais com perfil de neocristandade foram vistos como a “nova primavera da Igreja”. Entretanto, na prática, revelaram-se os principais responsáveis pelo atual “inverno eclesial”, que o novo pontificado se propõe superar.

A pastoral apologista assume a defesa da instituição católica diante de uma sociedade anticlerical e a guarda das verdades da fé em face de uma razão secularizante, que não reconhece senão o que pode ser comprovado pelas ciências. Ao desconstrucionismo dos metarrelatos e do relativismo reinante que geram vazio, incertezas e medo, contrapõe-se o “porto de certezas” da tradição religiosa e um elenco de verdades apoiadas numa racionalidade metafísica. Se a pastoral de conservação é pré-moderna, a pastoral apologista é antimoderna. Nesse modelo de Igreja e de pastoral, em lugar do Vaticano II, que se rendeu à modernidade – considerada uma “revolução” antropocentrista que, em sua essência, atenta contra Deus –, apregoa-se não a “volta às fontes” bíblicas e patrísticas, mas a “volta ao fundamento”, guardado zelosamente pela tradição antimoderna dos santos papas “Pios”, que acertadamente excomungaram em bloco a modernidade.

A pastoral apologista apoia-se numa “missão centrípeta”, levada a cabo pela milícia dos cristãos, soldados de Cristo, a “legião” de leigos “mandatada” pelo clero, uma vez que este é rejeitado por uma sociedade anticlerical. A missão consiste, numa atitude apologética e proselitista, em sair para fora da Igreja e trazer de volta as “ovelhas desgarradas” para dentro dela. Numa atitude hostil perante o mundo, cria seu próprio mundo, uma espécie de “subcultura eclesiástica”, no seio da qual pouco a pouco se sentirá a necessidade de vestir-se diferente, morar diferente, evitar os diferentes, conviver entre iguais, em típica mentalidade de seita ou gueto. A redogmatização da religião e o entrincheiramento identitário acabam sendo sua marca, apoiados na racionalidade pré-moderna agostiniana e tomista. Como se está em estado de guerra, qualquer crítica é tolhida, pois enfraquece a resistência. Diante da dúvida, a certeza da tradição e a obediência à autoridade monárquica, ícone da divindade na terra. A missa tridentina alimenta o imaginário de novos cruzados, no resgate da pré-modernidade perdida.

Padecendo as mudanças: a pastoral secularista (de pós-modernidade)

A pastoral secularista propõe-se responder às necessidades imediatas das pessoas, em sua grande maioria, no contexto atual, órfãs de sociedade e de Igreja. É integrada por pessoas desencantadas com as promessas da modernidade, por “pós-modernos” em crise de identidade, pessoas machucadas, desesperançadas, em busca de autoajuda e habitadas por um sentimento de impotência diante dos inúmeros obstáculos a vencer, tanto no campo material como no plano físico e afetivo. Em suas fileiras, estão pessoas que querem ser felizes hoje, buscando solução para seus problemas concretos e apostando em saídas providencialistas e imediatistas. Nesses meios, há um encolhimento da utopia no momentâneo, desafiando as instituições a fazer o presente tocar o fim, ou da intra-história, lugar de antecipação daquilo que se espera em plenitude na meta-história.

Em meio às turbulências de nosso tempo, dado que o passado perdeu relevância e o futuro é incerto, o corpo constitui a referência da realidade presente, deixando-se levar pelas sensações e professando uma espécie de “religião do corpo”. Na medida em que Deus quer a salvação a partir do corpo, essa religiosidade colada à materialidade da vida pode ser porta de entrada para a religião, mas, ao reduzir-se a isso, passa a ser porta de saída.

A pastoral secularista vem na esteira de uma religiosidade eclética e difusa, uma espécie de neopaganismo imanentista, que confunde salvação com prosperidade material, saúde física e realização afetiva. É a religião à la carte: Deus como objeto de desejos pessoais, solo fértil para os mercadores da boa-fé, no seio do atual, próspero e rentável mercado do religioso. A religião já é o produto mais rentável do capitalismo.

No seio da pastoral secularista, há um deslocamento, na esfera da subjetividade individual, da militância para a mística, do profético para o terapêutico e do ético para o estético (passagem de opções orientadas por parâmetros éticos para escolhas pautadas por sensibilidades estéticas), contribuindo para o surgimento de “comunidades invisíveis”, compostas de “cristãos sem Igreja”, sem vínculos comunitários. Há uma internalização das decisões na esfera da subjetividade individual, esvaziando as instituições, inclusive a instituição eclesial, composta também de muitos membros sem espírito de pertença.

Nesse contexto, a mídia contribui para a banalização da religião, reduzindo-a à esfera privada e a um espetáculo para entreter o público. Trata-se de uma “estetização presentista”, propiciadora de sensações “in-transcendentes”, espelho das imagens da imanência. Também a religião passa a ser consumista, centrada no indivíduo e na degustação do sagrado, entre a magia e o esoterismo.

Negando as mudanças: a pastoral liberacionista (de encantamento com a modernidade)

A pastoral liberacionista, nascida da renovação do Concílio Vaticano II e da profética tradição latino-americana, pretende-se a resposta mais avalizada à crítica da religião como alienação ou ópio do povo. Não quer perder de vista a indissociável conversão pessoal e das estruturas, a qual exige a militância dos cristãos também na esfera política, à luz da opção preferencial pelos pobres. Também não quer deixar a parceria com os movimentos sociais, a qual permitiu avanços nas políticas públicas de inclusão de amplos segmentos da população historicamente tratados como supérfluos e descartáveis.

Com a crise da modernidade e, em sua esteira, a crise das utopias, a fragmentação do tecido social, a crise da democracia representativa, dos ideais comunitários e o surgimento de novos rostos da pobreza, a pastoral liberacionista sofreu grande revés. De repente, viu-se sem as mediações capazes de fazer aterrissar os ideais coletivos em projetos históricos concretos. Entretanto, apesar disso, em meio à perplexidade do presente, em lugar de tirar lições da crise e buscar novas mediações capazes de manter vivos os ideais do evangelho social, a pastoral liberacionista tende a minimizar ou mesmo a negar as transformações atuais, apostando tratar-se de uma crise passageira, sem maiores consequências para a ação transformadora da Igreja.

E como se nada ou muito pouco tivesse acontecido em meio aos escombros do Muro de Berlim e das Torres Gêmeas, continua-se priorizando, quando não com exclusividade, a promoção de mudanças estruturais e a atuação no âmbito político e social. Qualquer mudança é retrocesso. Deixam-se em segundo plano as questões mais ligadas à esfera da pessoa, da subjetividade, à realização pessoal, à autonomia, à dimensão sabática da existência, à experiência pessoal do sagrado, tidas como preocupações burguesas. Pastoral é, sobretudo, pastoral social, em estreita relação com as lutas sociais e em parceria com os segmentos da sociedade civil, empenhados na conquista das causas populares, com as mesmas mediações de sempre. O outro continua sendo visto como mero imperativo ético, mais instância de expiação do que de gratuidade, mais “mesmidade” do que alteridade. Mudar as mediações é perder os ideais.

  1. Balizas de um novo paradigma pastoral

Como Igreja, por mais duras e desconcertantes que possam ser as mudanças no seio da sociedade, não estamos condenados ao pragmatismo do cotidiano nem a repetir o passado. Em tempos de travessia e de criação de novas respostas a novas perguntas, de nada servem saídas pastorais providencialistas ou modelos nostálgicos restauradores de um passado sem retorno. Em meio à ambiguidade dos acontecimentos, é preciso ficarmos atentos às interpelações do Espírito e, sobretudo, não satanizarmos as práticas proféticas que “minorias abraâmicas” vão cravando, como cunhas, nas brechas de modelos sociais e eclesiais obsoletos. São respostas ainda frágeis, incapazes de compor um modelo estável e satisfatório, mas suficientes para sinalizar algumas balizas de um novo paradigma pastoral a ser ainda plasmado com a paciência das sementes, que sabem esperar pela estação propícia para germinar e pelo tempo de maturação dos frutos.

 Desvencilhar-se do modelo de cristandade

Enquanto a sociedade, em meio a profundas mudanças, avança no processo de construção da modernidade, redimensionando e ampliando seu projeto, em contrapartida a Igreja, apesar da renovação do Vaticano II, ainda não conseguiu se desvencilhar da cristandade. Em tempos de turbulências, que geram insegurança e medo, refugiar-se nas velhas seguranças do passado é armar um guarda-chuva que ficará obsoleto logo que a tempestade passar. Voltar à cristandade ou à neocristandade é enclausurar a Igreja em um castelo e suspender as pontes levadiças que a conectam com o mundo de hoje, reduzindo-a a um gueto ou confinando-a numa subcultura eclesiástica. Urge passar da antiga cultura rural medieval à atual cultura urbana, moderna e pós-moderna, ainda que marcada pela positividade e pela negatividade, inserir-se nela e acolhê-la, para enriquecer-se com ela e redimi-la de suas sombras.

Um novo paradigma pastoral para um tempo de mudanças, capaz de interagir com o mundo de hoje, acena para a passagem: da união entre trono e altar ao respeito pela autonomia do temporal, superando todo tipo de integrismo; dos dualismos corpo-alma, material-espiritual, sagrado-profano a uma antropologia unitária, que une evangelização e promoção humana; da missão entendida como implantação da Igreja à encarnação do evangelho na diversidade das culturas, gerando comunidades eclesiais com rosto próprio; da mera recepção dos sacramentos a processos de iniciação cristã de estilo catecumenal; do ritualismo mágico a uma catequese mistagógica; da Igreja-massa a uma Igreja de pequenas comunidades acolhedoras e aconchegantes; da centralização na matriz paroquial a uma Igreja rede de comunidade de comunidades; do aumento do tamanho dos templos à multiplicação de pequenas comunidades; de comunidades territoriais a comunidades por eleição e afeto; do monopólio clerical ao protagonismo dos leigos, especialmente das mulheres; do catecismo à Bíblia; da doutrinação à formação teológico-pastoral permanente etc.

Voltar às “fontes”, não ao “fundamento”

O Concílio Vaticano II, superando a Igreja da cristandade, que havia se distanciado do modelo eclesial normativo neotestamentário, propôs-se fazer uma “volta às fontes” bíblicas e patrísticas (ad rimini fontes) e, na fidelidade a elas, ressituar-se no contexto da modernidade. Hoje, os segmentos eclesiais alinhados à neocristandade propugnam pela “volta ao fundamento”, que não é volta às fontes bíblicas e patrísticas, mas ao tomismo, à tradição tridentina dos “Papas Pios”, à metafísica pré-moderna, aos manuais e catecismos apologéticos, ao Missal de Pio V, enfim, a uma fé “porto de certezas”. Mas, como advertia santo Agostinho, “a fé está mais próxima da dúvida do que da evidência”. “Volta às fontes” significa não perder de vista o espírito e o carisma da experiência originária, jamais esgotados por qualquer mediação histórica. Já a “volta ao fundamento” é agarrar-se a determinada configuração da tradição, absolutizando as mediações em relação aos fins e gerando fundamentalismos.

Um novo paradigma pastoral, que desvencilhe a Igreja do modelo de neocristandade, acena para a passagem: da volta ao passado como refúgio à revisita do passado como memória, que permite nos ressituarmos no presente; de uma visão da pós-modernidade como relativista a uma relativização de toda verdade identificada; de uma Igreja possuidora da verdade a uma Igreja que se deixa possuir por ela; de uma racionalidade pré-moderna, dedutiva e essencialista a uma racionalidade histórico-existencial, capaz de pôr a Igreja e a teologia em diálogo com o mundo de hoje, especialmente com o mundo urbano; da apologia a uma Igreja em diálogo e serviço ao mundo; dos manuais e catecismos à pesquisa teológica, em diálogo inter e transdisciplinar; do exclusivismo católico ao diálogo ecumênico e inter-religioso; de uma concepção de sagrado, que separa do profano, à santificação de tudo e de todos; de um Deus todo-poderoso, que esmaga os inimigos, a um Deus Amor, impotente diante da liberdade humana, que salva pela cruz, Vítima que perdoa etc.

 Libertar-se do passado, mas guardando preciosa herança

Em tempos de mudanças e de avanços no seio do projeto civilizacional moderno, a Igreja precisa caminhar para a frente. Mas, ao virar páginas caducas de sua história, não pode colocar entre elas o Concílio Vaticano II e a tradição latino-americana, de Medellín a Aparecida. Resultado de penosos processos, esses eventos levaram a Igreja a passar da cristandade à modernidade. E como a modernidade, apesar de sua crise, continua vigente em seus valores e conquistas, também a renovação conciliar, em suas intuições básicas e eixos fundamentais, continua relevante para os dias de hoje. O Concílio Vaticano II tomou distância do eclesiocentrismo medieval e do clericalismo e da romanização do catolicismo tridentino. Elaborou nova autocompreensão da Igreja, em diálogo com o mundo moderno e em espírito de serviço, especialmente aos mais pobres.

Em relação ao Vaticano II, um novo paradigma pastoral para estes tempos de mudanças acena para que se guarde: a distinção entre Igreja e Reino de Deus, sendo este mais amplo do que a Igreja, a qual é uma de suas mediações, ainda que privilegiada; a noção de que em cada Igreja local, porção e não parcela do povo de Deus, está a Igreja toda, ainda que não seja toda a Igreja (não há uma suposta Igreja universal, nem anterior nem exterior às Igrejas locais); o primado da Palavra na vida e na missão da Igreja, que existe para evangelizar e não simplesmente para sacramentar; a afirmação da base laical da Igreja, composta de um único gênero de cristãos – os batizados, um povo todo ele profético, sacerdotal e régio; a unidade da fé tecida em torno do sensus fidei de todo o povo de Deus, no seio do qual se insere também o magistério; o entendimento de que a Igreja não é deste mundo, mas está no mundo e existe para a salvação do mundo, em espírito de diálogo e serviço; a reforma litúrgica, que recolhe a nova eclesiologia e resgata a centralidade do mistério pascal, superando o culto sacrificialista etc.

E, da tradição latino-americana, um novo paradigma pastoral nestes tempos de mudança acena para que se guarde: de Medellín (1968) – a evangélica opção pelos pobres; uma evangelização libertadora, que aterrissa a escatologia na história; a simultaneidade da conversão pessoal e das estruturas como condição à eficácia do amor, num mundo marcado pela injustiça estrutural; um novo modelo de Igreja – pobre e em pequenas comunidades – como sinal e instrumento do Reino de Deus no coração da história; a necessidade de uma reflexão teológica articulada com as práticas, especialmente dos mais pobres etc.; de Puebla (1979) – a importância de uma correta concepção de Jesus Cristo, da Igreja e do ser humano para autêntica evangelização; o protagonismo dos leigos na evangelização; a prioridade da atenção aos jovens; a valorização da religiosidade popular, importante forma de inculturação da fé etc.; de Santo Domingo (1992) – a necessidade de uma conversão pastoral; o protagonismo dos leigos na evangelização; a evangelização enquanto inculturação do evangelho, no respeito à liberdade das pessoas e de sua identidade cultural etc.; de Aparecida (2007) – o propósito de não perder de vista os pobres, hoje supérfluos e descartáveis; uma Igreja toda ela em estado permanente de missão; a missão como irradiação do evangelho e não como proselitismo; o protagonismo das mulheres na Igreja; a disposição de chegar às pessoas por meio de processos de iniciação cristã; a renovação da paróquia etc.

 Fazer do ser humano o caminho da Igreja

Consequente com o mistério da encarnação do Verbo, o cristianismo propõe à humanidade nada mais do que sermos verdadeiramente humanos, humanos em plenitude. Nisso consiste a salvação em Jesus Cristo. A vida em plenitude resume a missão de Jesus de Nazaré: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Pareceu, então, evidente a santo Irineu de Lyon, na aurora do cristianismo, que a “a glória de Deus é o ser humano pleno de vida” (gloria Dei homo vivens). João Paulo II, alinhado a essa tradição, em Redemptor Hominis e em Centesimus Annus, tira as consequências para a ação evangelizadora: “O ser humano é o caminho da Igreja” (RH 13, CA 53). Jesus é o caminho da salvação; o caminho da Igreja é o ser humano, pois ela existe para o serviço da vida plena para todos, a única razão e fim da obra de Jesus.

Por isso, um novo paradigma pastoral para estes tempos de mudança acena hoje, por um lado, a uma Igreja que tire o foco de suas questões internas e sintonize com as grandes aspirações da humanidade. A proposta cristã, enquanto mediação de salvação para todo o gênero humano, descentra a Igreja em relação a si mesma e lança-a numa missão não exclusiva. O espaço intraeclesial não esgota a missão da Igreja. Deus quer salvar a todos e a Igreja, como mediação privilegiada, precisa ser a Igreja de todos, sobretudo daqueles que não são Igreja. Por outro lado, fazer do ser humano o caminho da Igreja implica superar os paradigmas essencialistas e metafísicos da pré-modernidade, que olham para o ser humano de modo genérico e abstrato, desvinculado da concretude da história e das contradições de seu contexto sociocultural. Sobretudo a Igreja na América Latina trouxe à tona a exigência de desvencilhar-se, tanto no âmbito social como eclesial, de óticas e condutas ora de submissão, ora de rejeição ou aniquilamento do outro, a lógica de violência que caracteriza nossa sociedade.

Consequentemente, um novo paradigma pastoral para estes tempos de mudança, que faça do ser humano o caminho da Igreja, acena, antes de tudo, a uma Igreja samaritana, companheira de caminho de toda a humanidade, especialmente dos que sofrem. Uma Igreja cuidadora, que promove e defende a vida e o planeta como sua casa. Uma Igreja acolhedora, solidária, movida pela compaixão, mas também profética, que denuncia os mecanismos de opressão e exclusão e toma a defesa das vítimas, que clamam por justiça nos diferentes rostos do complexo fenômeno da pobreza. Os mártires das causas sociais são a expressão mais genuína da opção pelos pobres, cristãos consequentes com sua fé, assumindo o conflito gerado pela injustiça institucionalizada, para além de uma caridade assistencial, que humilha o excluído e alimenta o cinismo dos satisfeitos.

Pautar-se pela gratuidade e pelo respeito à alteridade

Um novo paradigma pastoral para estes tempos de mudanças acena a uma Igreja que se paute pela gratuidade e pela alteridade. São duas realidades postas em evidência pela modernidade tardia que a pastoral está também desafiada a integrar, contribuindo para a superação da lógica de submissão, rejeição ou aniquilamento do outro ou do diferente.

Em primeiro lugar, dado que nosso mundo é cada vez mais plural e diversificado, apresenta-se a exigência de aprender a se enriquecer com a diversidade e não ver detrás do diferente um herege ou um inimigo em potencial. Para isso, o pluralismo, mais do que mera abertura ao outro, precisa ser um pressuposto, pois, antes de falar de “sujeito”, dado que ele é sempre plural, é necessário referir-se à alteridade. Em segundo lugar, está a exigência de ver o outro não como um imperativo ético ou instância de expiação, mas como dimensão sabática da existência, horizonte de gratuidade, de cujo encontro, numa relação dialógica e horizontal, “eu” e “tu” se enriquecem mutuamente.

Consequentemente, na evangelização, não há destinatários, mas interlocutores. Como Deus não se impõe, mas se propõe, a evangelização só começa quando o outro responde à interpelação do evangelho e só se dá quando o outro, em sua liberdade e autonomia, acolhe livremente a Mensagem. E como o “outro”, na realidade, são “outros”, diversos e diferentes em culturas e religiões, evangelizar implica diálogo intercultural e inter-religioso, implica inculturação do evangelho. Em resumo, um autêntico processo de evangelização é sempre o resultado da cumplicidade de duas liberdades: a liberdade de Deus em comunicar-se, mediado pelo evangelizador, e a liberdade do interlocutor em acolher a proposta do evangelho.

Fazer do presente um tempo messiânico

Um novo paradigma pastoral, em sintonia com o atual contexto de mudanças, acena a uma Igreja que tire as consequências da crise das utopias. Historicamente, estas foram concebidas no seio da modernidade, por um lado, como um fim predeterminado, ao qual a história necessariamente convergiria, e, por outro, como uma dilatação indeterminada do futuro. Ora, se há um lixo da história, o primeiro a ser jogado neste lixo é nossa própria concepção de história (R. Menasse). Trata-se do tempo concebido como chronos, um processo linear, no qual os fins perseguidos se encontram no fim do processo, no fim dos tempos ou, pior, somente na meta-história.

A crise da modernidade pôs em evidência o valor e a urgência do presente, do momentâneo, do agora, provocando um encolhimento da utopia no hoje da história. Isso é mais visível na cultura urbana, fazendo da pastoral urbana grande imperativo para a evangelização hoje. É outra noção de tempo, não como chronos, mas como kairós, no qual os fins perseguidos, se são verdadeiros, precisam ir sendo experimentados no caminho, em experiências de plenitude em meio à precariedade do presente, em momentos de eternidade no tempo. Do contrário, não passa de alienação, de uma esperança vazia, de escapismo da história, de um horizonte sacrificial e enganador.

A pastoral, hoje, também está desafiada a fazer do presente um tempo messiânico – um kairós. O “ainda não” da esperança cristã precisa tocar o “já” de nosso momento presente, na vida pessoal e social do cotidiano. O Reino de Deus só é salvação se for salvação para nós hoje, experimentado e tocado em vivências concretas, mesmo em meio às vicissitudes da vida. É desses momentos de “Tabor”, de transfiguração pontual do real no cotidiano, desses momentos messiânicos que a esperança cristã se alimenta, pois a salvação é um fim que se dá no caminho.

Para concluir

Afirma Medellín que todo compromisso pastoral brota de um discernimento da realidade, pois a finalidade da evangelização é impregnar a história dos mistérios do Reino de Deus e transfigurar em Cristo tudo o que está desfigurado por tantos sinais de morte. Uma vez que a Palavra de Deus quer ser salvação para nós hoje, não há fidelidade ao evangelho sem fidelidade à realidade.

Nosso atual contexto de profundas mudanças, em meio às ambiguidades dos acontecimentos, é também lugar de revelação de novos sinais dos tempos, interpelações do Espírito, que clamam por uma renovação das mediações eclesiais que mantêm viva, na concretude da história, a obra redentora de Jesus Cristo. É preciso, pois, ter a coragem de mudar a roupagem, de abandonar formas de ação e estruturas obsoletas, para que a Mensagem seja, para nós, nova em cada manhã.

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências Teológicas e Religiosas pela Universidade de Louvain (Bélgica), coordenador do Programa de Pós-Graduação em Teologia na PUC de Curitiba, professor visitante na Universidade Pontifícia do México e no Instituto Teológico-Pastoral do Celam. Presidente do Instituto Nacional de Pastoral da CNBB e membro da Equipe de Reflexão Teológica do Celam.