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Publicado em número 210 - (pp. 17-23)

Desafios aos cristãos do século XXI

Por Pe. José Comblin

A década de 1990, recém-concluída, foi mareada pela exclusão. O conceito de exclusão foi universalmente aceito. No entanto, o conceito de exclusão é puramente negativo e, por conseguinte, pouco operacional. Por outro lado a exclusão não pode ser total. Uma pessoa totalmente excluída de tudo não conseguirá sobreviver nem um mês.

Ora, a maioria dos brasileiros, mesmo os sem-teto ou os meninos de rua, sobrevivem. São excluídos de determinados bens, determinadas relações sociais, mas não são excluídos totais. Estão também incluídos em determinada sociedade. Vivem mal, mas sobrevivem. Fazem parte de uma sociedade.

Já que nenhuma revolução global é previsível, importa saber mais claramente como funciona a nova sociedade que se está implantando. Dessa maneira poderemos imaginar algumas formas de intervir nela.

O século XXI será o século de auge dos Estados Unidos. Chegando ao ano 2000, os norte-americanos já eliminaram os seus mais perigosos competidores: Europa e Japão. Há alguns anos J. Castañeda, o grande jornalista e ensaísta mexicano, no seu livro Utopia desarmada[1] dizia que a América Latina teria pelo menos a liberdade de escolher entre três modelos de capitalismo: o norte-americano, o europeu, ou o japonês. Os dois últimos estão em via de desintegração, condenados a entrar pouco a pouco no modelo de sociedade dos Estados Unidos.

Quanto ao Terceiro Mundo, os Estados Unidos conseguiram impedir qualquer forma de associação entre as nações que o compõem. Cada país encontra-se sozinho diante da potência norte-americana.

Já começou a implantação do modelo de sociedade dos Estados Unidos no mundo inteiro, com mais ou menos êxito, mais ou menos rapidez, de acordo com as condições de cada nação. Há muitas forças que ainda se opõem a essa penetração. No entanto, com o decorrer do tempo, as resistências vão cedendo. Acontece que em cada país as elites, antigas e novas, estão entusiasmadas com o modelo norte-americano. Não é necessário que os norte-americanos conquistem as nações por meio da força. As elites convidam, insistem, suplicam para que os elementos da sociedade norte-americana sejam implantados em seu país.

Um símbolo dessa atitude das elites foi a instalação da Ford na Bahia. As elites brasileiras ofereceram a uma das empresas mais ricas do mundo centenas de milhões para que essa companhia automobilística se dignasse explorar os trabalhadores e os cidadãos brasileiros.

Antigamente os teólogos diziam que servir a Deus é a maior glória “cui servire regnare est”. Hoje, a maior glória é tornar-se escravo da única superpotência. É uma honra que invejam ostentar todos os líderes do mundo.

No Terceiro Mundo a nova sociedade deve adaptar-se ao que vem do passado, estruturas arcaicas, e massas humanas que ainda estão na pré-modernidade. No entanto, esta situação não impede a implantação do novo modelo social, ainda que com variações locais.

É verdade que os intelectuais protestam e condenam o novo modelo. São a voz da consciência humana. Porém, os intelectuais não têm influência na sociedade. Podem falar e escrever à medida que a sociedade estabelecida está segura de si mesma. Caso retornemos dias de insegurança, as elites poderão recorrer ao meio que sempre está à sua disposição: o golpe militar.

No Brasil o atual governo dedicou-se à implantação do novo modelo de sociedade, inspirado na sociedade norte-americana. Dedicou-se a desfazer a sociedade que se tinha tratado de construir depois da segunda guerra mundial, de acordo com o modelo europeu daquele tempo. As elites brasileiras querem o modelo norte-americano porque descobriram que este é o modelo que melhor lhes assegura a continuidade dos próprios privilégios históricos.

 

1. O novo modelo de sociedade

Os Estados Unidos transformaram-se numa sociedade aristocrática. Não se trata de uma aristocracia militar, mas de uma aristocracia econômica e financeira. O modo de viver da classe superior diferencia-se cada vez mais do modo de viver da maioria.

As novas elites não se misturam com o povo. Moram em áreas paradisíacas, longe dos problemas das cidades. Praticam consumo suntuoso e gastam de cem a mil vezes mais do que os pobres. São as elites do poder econômico.

Essas elites são bem diferentes da antiga burguesia e os seus ideais também são diferentes. Os antigos burgueses cultivavam o trabalho, sobretudo o trabalho produtivo. Colocavam a sua glória e a sua honra na produção. Eram econômicos. Gastavam pouco, acumulando para aumentar o capital e aumentar os investimentos. Eram sóbrios, duros no trabalho. Tinham sentimento de responsabilidade política e social.

A nova classe dirigente é mais parecida com as aristocracias de sempre. Não valorizam o trabalho. Valorizam a especulação financeira. São cada vez mais rentistas. Gastam muito e fazem questão de mostrar que são superiores.

Quem são os membros da aristocracia do dinheiro que se instalam para governar o mundo e, sobretudo, para gozar dele?

Seu perfil aproximado enquadra-se nas categorias mencionadas pelo sociólogo e político norte-americano Robert Reich, no seu livro O trabalho das nações: todos os que estão ligados ao mundo financeiro, os gerentes das grandes multinacionais, advogados, consultores ou os que a esses se assemelham constituem o segundo escalão do poder[2].

Pessoas de classe baixa podem um dia ter acesso a essa aristocracia? Somente alguns jogadores de futebol que se destacam, alguns campeões de outros esportes, rainhas de beleza ou modelos de nível mundial, alguns atores ou atrizes de novela e de cinema. Sempre são algumas raras exceções.

A antiga aristocracia é cooptada pela nova, que se sente promovida pela sua companhia. As duas aristocracias formam um só mundo. Os antigos adaptam o seu modo de consumir às novas modas que caracterizam a nova classe. Para todos, um homem como Bill Gales é um modelo e uma norma.

A nova aristocracia é parasitária como sempre foram todas as aristocracias. Não produz, só investe o dinheiro dos pobres, não assume responsabilidades sociais, coloca a política a serviço dos seus interesses, não tem solidariedade nacional, pois é uma classe cosmopolita, ou, dizendo melhor, uma classe que vive mentalmente em Nova Iorque.

As classes tradicionais estão num processo de recessão. Os antigos camponeses irão desaparecendo inevitavelmente. Não têm condições para sobreviver. O trabalho é duro demais e não compensa. As mulheres não aguentam mais essa vida num deserto cultural e social. Além disso os governos investem na grande propriedade rural e abandonam os pequenos à própria sorte. Não há nenhum sinal de que esta situação possa mudar.

A classe operária está diminuindo e diminuirá mais ainda, assim como todos os empregados da indústria. Os computadores permitem substituir não somente muitos empregados, mas também muitos quadros intermediários. Num país industrializado, a indústria não ocupará mais do que 10% de sua mão de obra.

Os funcionários públicos estão destinados a uma vida cada vez mais medíocre. A mesma coisa vale para os professores e atendentes hospitalares e da saúde. A privatização tende a diminuir muito o número de funcionários públicos. A terceirização contribui também e a ameaça de demissão desestimula as reivindicações.

As antigas classes médias vão perder prestígio e categoria social diante da ascensão da nova aristocracia. As antigas profissões liberais dividem-se. Alguns médicos famosos e advogados que trabalham no mundo financeiro têm acesso à aristocracia. Por outro lado, a maioria desses profissionais tende a formar um proletariado intelectual que deve manter as aparências, mas vive de modo constrangido.

 

2. A nova classe baixa

As aristocracias sempre tiveram ao seu serviço uma multidão de empregados domésticos para lhes facilitar as comodidades da vida. No Brasil, esse número de empregados e empregadas sempre foi grande. No entanto, hoje assistimos a um novo crescimento dos serviços pessoais, o que confirma que a nova classe dirigente é uma nova aristocracia.

No mundo inteiro a classe que mais cresce é a dos serviços pessoais, ou seja, de empregados particulares. No Brasil a maior parte da força de trabalho está a serviço de pessoas. Quais são esses serviços pessoais?

Em primeiro lugar, continuam existindo e estão em desenvolvimento as empregadas domésticas de sempre: cozinheiras, lavadeiras, babás e enfermeiras particulares.

Aumenta o número de motoristas, taxistas, pilotos de aviação ou navegação. Cresce o número de zeladores de edifícios, caseiros de sítios e chácaras, jardineiros, encarregados da limpeza ou da manutenção de máquinas e instrumentos domésticos.

Outro setor em expansão é o de segurança, que reúne guarda-costas, policiais e detetives particulares, guardas-noturnos, e guardas armados para proteger edifícios comerciais, bancos e residências. Correlativamente aumenta o número de ladrões. O aumento da criminalidade promove a contratação de mais empregados dedicados à segurança pessoal.

O turismo também é outro setor em expansão. Agências de turismo, guias, hotéis, motéis, pousadas e parques de diversão absorvem muita mão de obra. O mesmo ocorre com exposições, concursos, festas, congressos, cerimônias, eventos folclóricos, representações artísticas, carnaval — sem esquecer os “serviços sexuais”. Neste sentido, ao lado da prostituição tradicional, está em desenvolvimento a prostituição mais refinada e profissional de homens e mulheres à disposição das e dos turistas.

Muito ativo encontra-se também o setor que serve comida e bebida. No Terceiro Mundo, especialmente, vem crescendo o número de vendedores de comida e bebida. Ao lado de restaurantes e bares, há muitas pessoas que se dedicam a vender comida e bebida na rua, nas estradas, nas praias, nos lugares turísticos e de recreação.

Nesse nível encontram-se também as inúmeras secretárias. Trabalhar para um patrão aproxima-as da aristocracia, todavia nunca serão parte dela.

Além disso, no setor dos serviços da indústria e do comércio, o trabalho torna-se cada vez mais precário e parcial. Trabalhar com contrato permanente, o que confere garantia de estabilidade, é coisa cada vez mais excepcional.

Hoje as pessoas trabalham cada vez menos com máquinas ou ferramentas. Trabalham relacionando-se com outras pessoas. Formam uma categoria que depende totalmente de outras pessoas às quais devem agradar. O essencial do seu serviço é agradar e convencer o outro de que o seu serviço vale.

A característica de todos esses empregos é que não oferecem segurança nem garantia para o futuro. Estamos chegando a uma época em que poucas pessoas têm futuro garantido — entre essas estão os padres e os(as) religiosos(as). A secretária contratada por seis meses, o vendedor que percorre a praia, o taxista, o guarda-costas do gerente de banco, entre inúmeros outros, não têm garantia. Além disso, são ameaçados por concorrentes. Há necessidade de permanente luta para vencer ou, ao menos, para não serem vencidos. Essa luta permanente é justamente o que a sociedade norte-americana mais aprecia e quer impor ao mundo inteiro.

Essa sociedade estimula relações pessoais de dependência, falta de estabilidade, incessante competição. Não é de estranhar que o estresse ameace a quase todos. Além disso, os jovens ficam angustiados porque ninguém confia nos seus serviços. Todos querem servidores com experiência. Os menos jovens ficam angustiados porque, se perdem o emprego ou o seu “ganha-pão”, como irão conseguir outro? Daí a luta desesperada contra a velhice.

Eis aí como será a sociedade no século XXI. Todos esses fatores já estão atuando. Não há surpresas possíveis fora disso. Não há forças sociais para mudar sensivelmente essa evolução a curto prazo. Teremos de conviver com esse modelo de sociedade. Já passou o tempo em que se pensava bastar boa vontade para mudar a sociedade.

No século XX tentou-se mudar o mundo, confluindo na queda do império soviético e da sociedade que pretendia ser socialista. Uma coisa é certa: no século XXI não haverá outra tentativa dessa envergadura. Talvez no século XXII, quando outras potências se levantarão para desafiar a atual. Talvez a China ou a Índia, ou um bloco muçulmano. Até o presente o Brasil não mostrou nenhuma veleidade de desafiar o poder dominante. Pelo contrário, está numa fase de entrega total. As elites brasileiras põem a sua glória na dominação dos Estados Unidos.

Como, então, viver no meio de tal desafio? Não podemos unicamente imaginar utopias. Precisamos agir numa sociedade histórica. Quais são os desafios para os cristãos?

 

3. A dignidade humana

Na sociedade industrial em que ainda estamos — mas que está sendo substituída por outra aristocrática e de serviços —, o que confere a dignidade é o trabalho. É por isso que as mulheres lutam tanto para ter acesso ao trabalho. O trabalho é a fonte, ou ao menos a garantia, de autonomia.

Uma vez que o trabalho torna-se problemático, muitos entram em estado de depressão. Os jovens que não conseguem trabalho tornam-se inseguros e violentos; os idosos deixam-se abater pelo desânimo. Todos estão angustiados pelo fantasma do desemprego. Tudo indica que a perspectiva sempre ameaçadora do desemprego será a condição da grande maioria no século que vai começar.

A situação de instabilidade faz com que as pessoas se sintam sem valor, tal qual peças que são tiradas sem problema quando não servem mais. Sentem-se supérfluas e inúteis.

Por outro lado, os novos empregos colocam numa situação de dependência pessoal. Acabaram-se as convenções coletivas, que mostravam a força dos trabalhadores, que eram capazes de defender os seus direitos. Agora os contratos são individuais, precários, muitas vezes puramente orais. O trabalhador não tem segurança. Se é vendedor de rua, depende não só dos fregueses, mas também da polícia e do vereador que cobram propina.

Desse modo, as pessoas aprendem que é preciso ser muito humilde, saber engolir as humilhações e suportar as injustiças em silêncio. O contexto global do início do século XXI exalta as capacidades e as virtudes da nova aristocracia, mas deprime a consciência de si das grandes maiorias condenadas a viver na dependência da classe superior.

No meio de tal situação, a religião pode desempenhar um papel importante: ela pode estimular a consciência da dignidade pessoal. As pessoas podem pensar assim: neste mundo não sou nada, mas sou filha ou filho de Deus. Neste mundo ninguém se preocupa comigo, mas Deus sim. Numerosos milagres comprovam que Deus se preocupa constantemente comigo. Se não for Deus, serão os orixás ou outro princípio espiritual.

Por isso, a religião estará muito presente no século XXI. Nela abrigar-se-á o refúgio e o consolo dos dependentes, a verdadeira fonte de dignidade humana.

O problema estará na grande variedade de religiões. Um verdadeiro mercado religioso já está aí, em que todos querem competir. A competição é perigosa, pois tende a rebaixar todas as religiões. Para melhor concorrer e aumentar a audiência, todas as religiões deixam-se orientar pelos desejos das massas. Todas as religiões são atraídas pelo nível mais baixo. Acontece na religião o que vem caracterizando a TV: para ganhar audiência, precisa “baixar o nível”, aceitando a vulgaridade.

A Igreja católica não está imunizada dessa tentação. Há grupos católicos seduzidos pelo sucesso da Igreja Universal, que pretendem competir com ela, mediante a simples exploração dos sentimentos religiosos mais primitivos: excitar o medo dos demônios e o desejo da saúde, como fim de fazer sucesso (também financeiro).

Em certos estados de extrema angústia, as pessoas entregam-se a qualquer feiticeiro que lhes promete a libertação dos seus males. Vem o momento em que a religião se reduz a um tranquilizante, um refúgio num mundo imaginário para fugir de uma vida insuportável.

A dignidade humana assim recuperada é frágil, superficial, transitória. O ser humano não conquista a dignidade por meio de emoções subjetivas, por métodos de autossugestão, nem por meio de terapias de autoestima.

O que confere dignidade a uma pessoa são as suas obras. É o agir que confere valor à pessoa. Seja qual for o agir: manual ou intelectual, produção de bens ou de serviços. O importante é que esse agir expresse a personalidade de quem o pratica, e que seja livre, ao mesmo tempo expressão e a própria realidade da dignidade humana. Desse modo, a vocação cristã confere dignidade à medida que liberta a pessoa e a torna capaz de agir a serviço do próximo.

Para a classe dos servidores, a liberdade de agir é limitada. No entanto, a Igreja pode oferecer um mundo alternativo em que se pode criar comunidade, produzir obras e conquistar dignidade. A sociedade global oferece pouco espaço. Porém, há o mundo paralelo. Esse mundo é, por exemplo, o das organizações não governamentais (ONGs) e de tantas iniciativas sociais pelas quais os homens e as mulheres, que formam o mundo dos excluídos, podem reconstruir nova realidade, com a esperança de que esta venha um dia a influenciar a sociedade estabelecida (mesmo que seja no século XXII).

A educação para a liberdade é educação para agir. Ainda está no ponto inicial. A grande maioria dos excluídos não está agindo em organização alguma. A tradição latino-americana não é favorável, já que as massas rurais se conformaram com o fato de que quem decide, quem age, quem faz, são “eles” — os donos, os doutores, os poderosos.

A educação para a ação é a verdadeira maneira de se chegar a uma autêntica consciência da dignidade humana.

 

4. A família

A nova sociedade não é absolutamente favorável à família. O regime de insegurança e instabilidade é fator que dissolve a família, até mesmo impedindo a sua formação. Muitos jovens dependem ainda dos pais e não têm condições para pensar numa família. O nervosismo e o estresse provenientes da instabilidade fragilizam a família, o casal e a relação entre pais e filhos.

A instabilidade do trabalho do pai e da mãe diminui-lhes a autoridade. De que modo os filhos confiariam em pais tão fracos, que não têm nenhuma segurança no dia de amanhã?

A desintegração da família é, antes de mais nada, o resultado da evolução social. O resultado é que, cada vez mais, homens e mulheres moram sozinhos. Às vezes, mesmo sendo casados, moram cada um no seu apartamento. No mundo popular, o número de mulheres que vivem sozinhas com os filhos aumenta e não se prevê nada que possa inverter essa tendência. Não adianta pregar a responsabilidade aos pais. Para assumir a própria responsabilidade, precisam ter um mínimo de condições de estabilidade. Sem isso, fogem para longe de qualquer responsabilidade. O sexo desvincula-se não somente da família, mas também do casal. Transforma-se em pura função transitória.

Para fundar e manter uma família, hoje, é preciso ter um suplemento de lucidez e de coragem. Outrora, homem e mulher sentiam-se complementares na vida diária. Um homem só não podia dedicar-se ao trabalho. Uma mulher só não tinha existência social. Hoje essa complementaridade não existe mais. É preciso que haja o reconhecimento de um enriquecimento mútuo, no diálogo e na convivência entre dois seres humanos de polos opostos. Isso supõe uma profunda educação.

Está claro que a nova sociedade não prepara as pessoas para o reconhecimento mútuo numa vida em comum. A sociedade educa para a competitividade, para a luta individual pela vida, para o êxito, contra a precariedade. Em momento algum, no modelo novo de sociedade, intervém a relação interpessoal, a busca de igualdade. Pelo contrário, tudo leva a querer ser superior e dominar os demais. O prestígio pertence aos vencedores, aos campeões.

A religião pode contribuir na educação da família, mostrando-lhe a importância da igualdade e da complementaridade entre homens e mulheres. Seguindo a dinâmica da sociedade atual, em que os mais fortes são os vencedores, é pouco provável que as mulheres consigam vencer os homens. A solução estaria na busca de outra dinâmica.

 

5. A segurança pelos bens necessários

Durante os últimos séculos, o trabalho foi a forma encontrada pelos seres humanos para garantir sua subsistência. Hoje, o trabalho torna-se uma meta inalcançável para muitos. Ou, então, a retribuição do trabalho é tão baixa, que não permite comprar os bens necessários para viver. A ameaça de desemprego desmoraliza um povo. É o sinal mais evidente da ausência absoluta de solidariedade. A propósito, o neoliberalismo ignora a solidariedade — para ele, palavra sem sentido. A regra é cada um para si, e todos os problemas sociais serão resolvidos.

No presente, os governos não darão satisfação a nenhuma reivindicação dos pobres. O atual presidente brasileiro dizia algum tempo atrás: o Brasil é um país injusto. De lá para cá as injustiças não só não foram corrigidas, como estão se aprofundando.

No entanto, a longo prazo, as lutas sociais terão de recomeçar. Será preciso lutar para que cada cidadão tenha garantido o necessário para viver, com ou sem trabalho. Trata-se de assegurar salário básico a todos, com ou sem trabalho.

Em segundo lugar, há muitas necessidades populares não satisfeitas e tarefas que não são realizadas. Há trabalhos possíveis para muitos trabalhadores que deveriam estar a cargo da sociedade. Um Estado que pode distribuir bilhões a bancos e companhias multinacionais, poderia criar esses empregos.

É claro que uma condição prévia seria a luta pela democracia. No mundo inteiro a democracia morreu e subsiste somente nos seus aspectos formais. As formas exteriores ainda são democráticas. Porém, concretamente, o Estado está nas mãos da aristocracia dirigente. O regime atual é uma aristocracia econômica.

As eleições são sempre manipuladas pelos meios de comunicação e pelos que os podem pagar. As decisões são tomadas pela aristocracia econômica. A função do poder executivo consiste em comprar os votos dos congressistas, para que aceitem as decisões tomadas pelas instâncias do poder econômico.

Democracia quer dizer participação do povo no exercício do poder político. Isso desapareceu em todos os Estados, a começar pelos Estados Unidos, em que a maioria dos eleitores nem sequer vota, porque sabe muito bem que é tempo perdido.

A curto prazo a democracia está derrotada e nada poderá refazê-la. A longo prazo, digamos daqui a cem anos, é possível lutar para que se instale uma democracia efetiva. O início precisa ser feito nos municípios. Só aqui há trabalho para cinquenta anos. Depois virá a conquista dos Estados e da Federação. A única maneira é a educação política das massas populares.

 

6. O sentido do serviço

A nova sociedade aristocrática é uma sociedade de serviços, sobretudo de serviços pessoais. Ora, a mensagem cristã é serviço. A única meta da vida cristã, o único valor que subsiste deste mundo é o amor. Esse amor é serviço: “coloquem-se a serviço uns dos outros através do amor” (Gl 5,13). Então será que a sociedade atual tende para a perfeição cristã?

No fundo, em todas as civilizações, o serviço pessoal sempre foi a atividade dominante. Foi a atividade de todas as mulheres e de grande número de homens, apesar de, em algumas épocas, a agricultura e a indústria terem requerido muitos braços.

O problema é a reciprocidade. Quando domina a desigualdade, são sempre os mesmos que prestam serviços, e também são sempre os mesmos que recebem ou exigem serviços.

Quando o cristianismo entrou no império romano, este formava uma sociedade extremamente aristocrática e desigual. Uma minoria de famílias romanas dominava um império de 60 milhões de habitantes, dos quais talvez a metade eram escravos. Toda a vida doméstica e os serviços necessários ao império eram feitos por escravos. Embora, em alguns casos, alguns escravos fossem tratados com humanidade, globalmente a sua situação era de dependência total, sem direito algum.

Na breve epístola a Filemon, Paulo exorta Filemon a tratar como irmão o seu antigo escravo Onésimo — fugitivo e depois enviado de volta pelo próprio Paulo.

Essa instrução não era aplicada em todos os casos. Os discípulos que redigiram as epístolas aos Colossenses e aos Efésios, trataram dos escravos nos chamados códigos domésticos (cf. Cl 3,22-24; Ef 6,5-9). Aí os autores não exigem que os escravos sejam tratados como irmãos. Os autores não estão sonhando com uma nova sociedade sem escravos — o que naquela época era impensável. A mensagem procura humanizar as relações entre senhores e escravos. A mensagem também ensina os escravos a superar a sua condição de escravos, para que não tenham consciência de escravos, mas de homens e mulheres livres. Os serviços que tinham de prestar, fossem prestados a Deus, e não aos seus senhores humanos.

Hoje os escravos são minoria. O que prevalece são servidores juridicamente livres, mas totalmente dependentes daqueles que lhes podem dar subsistência. A primeira tarefa, então, consiste em manter a consciência livre de toda dependência. Ainda que haja subordinação mediante o serviço a alguma pessoa da aristocracia, que não haja sentimento de humilhação, inferioridade, e que não se perca o sentido de dignidade humana. Nisso a religião pode ajudar.

A educação cristã terá por tarefa humanizar as relações humanas desiguais. Nos séculos IV a VIII, o cristianismo fez desaparecer pouco a pouco a escravidão graças a uma educação constante. Não estabeleceu uma sociedade de relações iguais, mas suavizou a dureza sofrida pelas gerações anteriores.

Como são tratados os subordinados, desde as empregadas domésticas até os meninos de rua que vendem drogas? Aí também há muito que fazer para humanizar as relações desiguais. Não faltará trabalho. Há muito que fazer ao longo de todo o século XXI.

As novas tecnologias lançaram nova classe dominante que forma nova aristocracia. As conquistas sociais do século XX ficaram anuladas ou estão desaparecendo. Teremos de refazer na nova sociedade o que foi feito no século XX, e da melhor maneira possível. Já sabemos que as mudanças esperadas não se farão por meio de uma revolução. Esse tempo passou. Elas vão exigir lenta e longa conversão do modo de ser e de viver das próprias vítimas das novas mudanças.



[1] Cf. Jorge G. Castañeda, Utopia desarmada, Companhia das Letras, São Paulo, 1994, pp. 356-366.

[2] Cf. Robert B. Reich, El trabajo de Ias raciones, Vergara, Buenos Aires, 1993, pp. 171-237.

Pe. José Comblin