Artigos

Publicado em número 227 - (pp. 3-11)

“Deus escreve certo por linhas tortas” — e outras interpretações teológicas do escândalo da exclusão —

Por Maria Paula Rodrigues

Deus se interessa, de modo geral ou particular, pelas pessoas com necessidades especiais? Para as primeiras comunidades cristãs, não restaram dúvidas: os evangelhos estão abarrotados da presença de cegos, surdos, psicóticos, paralíticos, leprosos, sempre no centro da ação de Jesus, como coprotagonistas da boa notícia. Nas narrativas neotestamentárias, cristãos e cristãs da primeira geração aparecem constantemente envolvidos com vítimas do isolamento motivado por deficiências e enfermidades. A solidariedade com os excluídos foi apontada pelo próprio Jesus, segundo a narrativa de Lucas, como o cerne da boa notícia, em continuidade com a melhor tradição profética (cf. Lc 4,18-21). Contudo, ao dirigirmos o olhar para as nossas comunidades cristãs, somos levados a reconhecer que alguma coisa se perdeu no caminho.

O que explica a quase total ausência de pessoas com necessidades especiais nas comunidades de hoje, se é verdade que o Deus de Jesus Cristo tem interesse particular por elas? Como entender a indiferença, tanto pessoal como sistêmica, de muitos entre os mais comprometidos cristãos pelo anátema social e religioso que pesa sobre tais pessoas? Por que, para tantos cristãos e cristãs, continua bastando que as pessoas com deficiências permaneçam como meras clientes da ação benemérita da Igreja, alijadas de qualquer tipo de protagonismo na evangelização? E, acima de tudo, por que algumas lideranças cristãs vão além da simples indiferença e se opõem positivamente às iniciativas pastorais em prol dessas pessoas?

Assim como, ao longo da história, inúmeras atitudes equivocadas por parte de cristãos foram justificadas com raciocínios de ordem teológica, não será absurdo reconhecer que o mesmo se dá com relação a tão surpreendente posicionamento por parte das comunidades de hoje. De fato, não é possível crer que qualquer cristão minimamente informado ignore o fato de que Deus tem realmente algum tipo de interesse particular pelas pessoas portadoras de deficiências. É preciso, pois, perguntar sobre as justificativas que sustentam a indiferença e o isolamento; e, indo mais além, sobre que tipo de interesse Deus realmente teria pela pessoa portadora de deficiências. Porque a palavra interesse diz muito e, ao mesmo tempo, muito pouco. E cada significado aponta para uma diferente “teologia da deficiência”, cada qual com suas luzes ou sombras. Explorando um pouco essa área, poderemos, quem sabe, compreender a postura no mínimo ambígua das comunidades cristãs atuais a respeito dos portadores de deficiências e convidá-las a uma atitude mais propriamente evangélica.

 

1. Teologias da deficiência

O que chamarei de “teologias da deficiência” são, na verdade, tentativas de explicar ou, antes, de justificar a existência de pessoas portadoras de deficiências na perspectiva da providência divina, bem como o apartheid ou isolamento sistemático a que são destinadas em nossa sociedade. Essas teologias partem do princípio de que Deus decidiu que algumas pessoas em particular deveriam portar algum tipo de deficiência ou incapacidade, enquanto outras não. Em alguns casos, apontam a própria pessoa portadora como culpada por sua condição, tendo Deus apenas autorizado o fato. Noutros casos, Deus aparece como o responsável direto, mas tendo em vista algum tipo de bem para a comunidade — aqui, a deficiência pode até ser vista como uma condição boa ou positiva, mas não por si mesma; apenas pela suposição de que é fruto do desígnio salvador do Altíssimo. De qualquer forma, parece difícil, para algum adepto de tais teologias, imaginar que a pessoa com necessidades especiais seja querida por Deus como pessoa, e não por causa desta ou daquela característica. Aqui, mais do que nunca, antropologia e teologia andam juntas: o juízo que se faz do humano revela o juízo que se faz de Deus, e vice-versa. E ambos os juízos sustentam atitudes de consequências dramáticas, por vezes desumanizadoras.

 

1.1. A deficiência como maldição

O binômio bênção-maldição é a característica fundamental da teologia bíblica da retribuição: Deus premia os fiéis com riqueza e saúde, enquanto castiga os infiéis com miséria e enfermidades (cf. Jó 11,13-20). A bênção funciona como testemunho da fidelidade da pessoa e de sua família, enquanto a maldição é um verdadeiro atestado de idolatria (cf. Dt 28,45-46; Jó 22,4-10). São catalogadas como bênçãos as situações de normalidade; bem-estar, saúde, longevidade, fecundidade, boa fama e prosperidade; são consideradas maldições as situações de anormalidade, desconforto, enfermidade, empobrecimento, humilhação, morte prematura, esterilidade, angústia (cf. Dt 7,9-10; 28,1ss). As deficiências, à medida que são encaradas como situações anormais e/ou geradoras de sofrimento, entram na lista das maldições (cf. Dt 28,28).

No Novo Testamento, o dogma da retribuição transparece claramente na pergunta dos discípulos de Jesus sobre o cego de nascença (cf. Jo 9,1-2). Eis uma expressão lapidar do status da pessoa portadora de deficiência no contexto ideológico da retribuição: era alguém que carregava sobre seus ombros uma culpa religiosa, de infidelidade à Aliança ou idolatria (cf. Sl 115,4-8). Mesmo que seu pecado de idolatria não estivesse à vista ou fosse anterior a seu nascimento, a prova de sua existência estava presente, e isso bastava para a condenação social. Porém, a pergunta dos discípulos de Jesus leva-nos a mais descobertas. Sugere que a pessoa poderia ter sido infiel à Aliança quando era apenas um feto, ainda dentro do seio materno! E se o pecado não fosse do feto, então seria de sua família. Naquele contexto cultural de forte predominância do coletivo, não era difícil aceitar a ideia de que um membro da família devesse pagar pelos erros de seus antepassados. Tanto bênção como maldição faziam naturalmente parte da herança. A família inteira respondia pelo pecado de um de seus membros.

Se a deficiência era vista como maldição, como castigo divino pela infidelidade, não é difícil imaginar em que situação ficavam as pessoas “amaldiçoadas”. Eram o sinal verídico da desgraça familiar, a prova de sua culpa, o motivo de sua vergonha. Não é por outra razão que, em diversos textos bíblicos, as categorias “cego”, “surdo” e “paralítico” assumiram sentidos alegóricos extremamente pejorativos: tornaram-se imagens para falar dos infiéis e dos ímpios (cf. Is 29,18; 35,5); o povo infiel era chamado de “cego” às ações de Deus na história, “surdo” à Lei e aos Profetas, “paralítico” diante de uma realidade que exigia mudanças ágeis. Portar uma deficiência ou ter um parente nessa condição trazia mais do que dificuldades de ordem cultural ou econômica: era o próprio sacramento da desgraça.

O dogma da retribuição recebeu severas críticas na tradição bíblica, desde o Livro de Jó até Jesus e seus discípulos (cf. Jó 21,7ss; Jo 9,3). Todavia, nem o fato de o próprio Jesus ter rompido explicitamente com essa teologia impediu-a de entrar no cristianismo. E não são poucos os cristãos que veem a deficiência como uma maldição, uma sentença divina sobre a criatura, para castigá-la por uma infidelidade passada. A dificuldade cresce à medida que se trata de um sentimento inconsciente, reprimido talvez pela retórica do amor ao próximo. Em outras palavras, vive-se de acordo com o dogma da retribuição, mesmo quando o discurso já foi ajustado aos valores do evangelho.

Mesmo hoje, com toda a valorização da individualidade e com o enfraquecimento dos laços familiares, os filhos continuam herdando as dívidas (financeiras ou não) de seus pais. E isso é considerado perfeitamente normal na cultura popular. Não é incomum, pois, que o nascimento de uma criança portadora de deficiência seja compreendido como castigo por alguma falta dos pais — de caráter religioso ou não. Frequentemente, o sentimento de culpa acompanha a família por longo tempo, gerando vergonha e medo de expor a pessoa que encarnou a maldição familiar. Na cultura brasileira, a situação é mais delicada: o espiritismo popularizou a ideia de que os sofrimentos atuais podem ser explicados como castigos para erros cometidos em vidas passadas, unindo no conceito de carma as crenças na retribuição e na individualidade da culpa. Assim, a retribuição ganhou uma roupagem moderna.

Por tudo isso, é muito comum que se encare a deficiência como maldição, um castigo divino por alguma culpa conhecida ou desconhecida, da pessoa e/ou de sua família. A família, envergonhada pela prova material da culpa invisível, literalmente esconde a pessoa dentro de casa, quando não a encaminha a instituições que funcionam como verdadeiros depósitos humanos. E a comunidade cristã, à medida que comungue da mesma compreensão, assume vários tipos de atitude. Uma delas é a de ignorar a existência da pessoa, abandonando-a e à sua família, o que revela talvez o medo das pessoas de ser atingidas pela mesma ira divina, como se a solidariedade pudesse ser confundida com cumplicidade no “crime oculto” do portador de deficiência. Outra atitude comum é a de assumir o sentimento de culpa da família e participar dele, que se revela no mal-estar e na emotividade exagerada ao tratar do assunto, bem como na compulsão da compensação: são abundantes as atitudes paternalistas e compensatórias que visam tão somente aliviar o próprio sentimento de culpa em relação ao isolamento do portador de deficiência e de sua família. Uma terceira atitude, menos comum, porém mais radical, é a de reafirmar a culpa da pessoa, numa atitude moralista. É talvez uma postura mais própria de comunidades fundamentalistas, porém subjacente à opinião de quem exige da pessoa portadora de deficiência uma integridade moral superior a de qualquer outra pessoa.

 

1.2. A deficiência como impureza

O binômio bíblico do puro-impuro ajudou a sustentar o isolamento das pessoas portadoras de deficiências.

A partir da época do segundo Templo (século IV a.C.), a legislação ritual em Israel sofreu grande incremento, em virtude da acentuação da centralidade do Templo e da função sacerdotal, bem como da dependência política; que exigiu um remodelamento da identidade hebraica em termos mais propriamente religiosos. Por outro lado, a compreensão de Iahweh como Deus único, universal e transcendente pôs o povo de Israel a uma distância dramática daquele Iahweh que antes era guerreiro e familiar, que marchava junto nas guerras e junto festejava a vida. Acentuar a absoluta transcendência de Deus era outra forma de explicar por que ele só poderia ser encontrado no Templo, e não em qualquer encruzilhada. E a pureza é o código apropriado para manter o status do lugar sagrado: tratava-se de deixar literalmente do lado de fora tudo o que pertencesse à vida profana. Em vista desse novo quadro teológico-litúrgico, a pureza passou a ser o tema central da lei litúrgica e o grande critério para a participação na assembleia do povo de Deus.

A pureza não consistia somente num estilo de vida mais higiênico, embora tenha nascido dessa necessidade. Tratava-se, antes de tudo, de uma categoria litúrgica, que indicava a possibilidade de convivência social e de acesso ao culto. Implicava preencher as exigências legais relativas à purificação, normalidade, moralidade, linhagem, higiene corporal, saúde, aparência, hábitos alimentares, ausência de defeitos físicos e sinais na pele, comportamento sexual e diversas outras prescrições. A manutenção da pureza implicava também o não contato com sangue, cadáveres e tudo o que não estivesse ritualmente puro, fosse coisa, animal ou pessoa. Em outras palavras, a pureza empenhava a existência humana em todas as suas dimensões, mas, particularmente, naquelas mais íntimas dos processos de manutenção e geração da vida. Somente corpos sadios e saudáveis (na perspectiva semítica, sem dúvida) eram considerados aptos ao louvor do Deus da Vida.

Em contrapartida, a impureza consistia em eventos como quebra da normalidade, imoralidade, mistura de raças, sujeira, doença, deficiências, castração, sinais na pele, comportamento sexual ilícito e diversas outras “abominações”. Manchas e anormalidades físicas de qualquer tipo eram vistas como impureza, sujeira, incapacidade para o culto, ainda mais no caso de um sacerdote (cf. Lv 21,16-23). Da mesma forma, um animal com defeito não podia ser oferecido a Javé (cf. Lv 22,17-25; Dt 15,21). Tudo com o agravante de que a impureza podia ser adquirida por “contágio”. O impuro tinha poder de contaminar o puro, e não o contrário, como a sujeira em relação à limpeza. Portanto, a pessoa declarada impura não só não podia participar do culto e da comunidade, como também estava proibida de ter qualquer tipo de contato com uma pessoa pura (cf. Lv 13,45-46). E o puro que tivesse contato com o impuro não só adquiria seu estado de impureza, mas também era considerado culpado de um pecado contra a santidade de Deus (cf. Lv 5,2-3.5-6). Pureza e santidade são conceitos estreitamente relacionados.

Nesse contexto, nascer com uma deficiência, adquiri-la ou simplesmente conviver intimamente com seu portador inabilitava automaticamente a pessoa para o culto pleno. Deus e a deficiência se encontravam em margens opostas. Naturalmente, à imagem do impuro juntava-se a do maldito, com todas as consequências possíveis para a pessoa e sua família: vergonha, humilhação, culpa, isolamento, exclusão. Mesmo as leis que obrigavam ao não abuso da limitação do outro (cf. Dt 27,18; e é algo para pensar por que seria necessária uma lei desse gênero!) não tinham força para eliminar os outros aspectos de sua dor, certamente mais desumanos e difíceis de contornar.

Hoje, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, as deficiências conservam certo status de impureza, não só na cultura de um modo geral, mas também no âmbito religioso cristão. No mundo medieval o nascimento de uma criança com deformações físicas era considerado como manifestação satânica. Até recentemente, homens portadores de deficiências eram simplesmente desencorajados de se tornar presbíteros, sob a justificativa da inaptidão. É verdade que essa realidade está se transformando, e hoje se podem encontrar membros do clero portadores de deficiências. Contudo, a mentalidade da impureza continua agindo em outros setores. Um deles é o da pastoral dos sacramentos. Vemos continuamente fiéis portadores de deficiência mental ser rejeitados (ou simplesmente ignorados) na mesa da comunhão, sob a justificativa de serem incapazes de compreender o mistério da fé. Para evitar a ameaça do sacrilégio, tem sido prática comum padres e ministros oferecerem hóstias não consagradas a portadores de deficiência mental, com o objetivo de “acalmá-los” em seu desejo de comungar e de afastar sua incômoda presença. É a mais nova versão da antiga crença de que deficiência e sagrado não se misturam.

Em resumo, nas comunidades em geral não se vive e não se pensa o sagrado na perspectiva da pessoa portadora de deficiência, a não ser talvez para justificar a divina providência. E não é só. Não são poucos os cristãos que, por medo ou aversão, evitam a todo o custo o contato físico com aqueles e até incentivam redes marginais de “solidariedade” que aliviem a comunidade da tarefa de acolhê-los. Se, no caso da retribuição, a culpa é pela deficiência em si, aqui a culpa é por não acolher o deficiente — mas continua sendo culpa, e não solidariedade inclusiva.

Outro sinal característico de que portador de deficiência e comunidade cristã são realidades distantes entre si é a própria arquitetura das igrejas e centros comunitários. Contra toda a legislação vigente no país, os construtores de espaços sagrados insistem em ignorar solenemente as necessidades especiais de acesso dos portadores de deficiências físicas e idosos; interessante notar que o mesmo não se dá quando a questão é construir rampas de acesso para carros (de noivas). Ao se pensar o espaço sagrado, quando se pensa, não são levadas em conta as dificuldades de quem depende de uma cadeira de rodas para se locomover. Portas estreitas e escadas são claro sinal de que o portador de deficiência física não foi convidado para a festa. O mesmo se diga dos subsídios litúrgicos e catequéticos, que ignoram as necessidades especiais dos cegos e portadores de escassa visão.

 

1.3. A deficiência como vocação

Nem todas as interpretações teológicas da deficiência são desabonadoras. Algumas buscam na vontade divina explicações de outra natureza para o fenômeno: a deficiência, às vezes, é vista como marca de uma vocação divina.

Consideremos uma teologia não bíblica, a do culto aos orixás. Nela, as pessoas albinas são consideradas filhas de Oxalá, pois tudo o que é branco remete ao orixá criador dos humanos; o mesmo ocorre com pessoas portadoras de outros tipos de diferença. Tais pessoas teriam sido marcadas, não com maldição ou impureza, mas, sim com a preferência de Oxalá. São consideradas eleitas, especiais no sentido mais positivo, queridas da comunidade e sacerdotisas natas. A deficiência, aqui, torna-se sacramento de uma vocação. Porém essa teologia não se baseia na noção de privilégio. De fato, se uns são escolhidos de Oxalá, outros são escolhidos de Ogum, de Oxum ou de qualquer outro orixá (isso quando dois ou mais orixás não disputam a mesma cabeça), de forma que não há privilégio em ser escolhido por este ou aquele: todas as pessoas são escolhidas de uma forma ou de outra e há dignidade em todas as vocações. A pessoa portadora de deficiência é eleita, mas não é uma privilegiada nem vista como um ser superior — está no mesmo nível dos demais seres humanos, e seu destino será determinado por suas escolhas tanto quanto o de qualquer outra pessoa.

Na teologia iorubá, a deficiência parece ser em si mesma um sinal sagrado e, na medida em que não é privilégio, não justifica nenhum tipo de isolamento. Todavia, ao que parece, tal interpretação não influenciou nossa sociedade de forma determinante. A compreensão da deficiência como mal, não tendo sido abalada até hoje nas culturas ocidentais, tem constituído ainda o critério mais importante para a consideração da pessoa portadora de deficiência em sua relação com Deus. Sua influência continuou até mesmo durante e após a emergência de uma nova consciência em relação às pessoas com necessidades especiais, no século XX; tornou-se necessário afirmar a dignidade da pessoa, sem contudo romper com a compreensão da deficiência como condição intrinsecamente má. O casamento entre as duas mentalidades é o contexto ideal para compreendermos a idealização moral da pessoa portadora de deficiência e a reedição do milenar isolamento, porém dessa vez pela via da canonização, em vez do exorcismo. É o que acontece quando uma pessoa portadora de deficiência é tratada como um ser superior, enviado do céu, manifestação visível da ação divina. Essa maneira de ver as coisas é, no mínimo, uma idealização da pessoa, que deixa de ser simplesmente humana e se transforma na solução de todos os problemas da parcela estatisticamente “normal” da humanidade. Não posso deixar de citar aqui a síntese de um texto que exprime perfeitamente a crença na “origem divina das deficiências” (grifos meus).

 

Deus estava no céu olhando como estavam os homens na terra. Entre eles reinava o desconsolo. Por isso, reuniu um exército de anjos e lhes disse: “Estão vendo os seres humanos? Necessitam de ajuda! Como se esqueceram que os fiz diferentes para que se completassem uns aos outros, descerão vocês (à terra) com notáveis diferenças”. E deu a cada um uma tarefa. “Tu terás memória e concentração: serás cego. Tu serás eloquente com seu corpo e muito criativo para se expressar: serás surdo-mudo (sic). Tu terás pensamentos profundos, escreverás livros, serás poeta: terás paralisia cerebral. Tu viverás na terra, porém tua mente se manterá no céu, preferirás escutar minha voz à voz dos homens: terás autismo. (…)”

Os anjos se sentiram felizes com os encargos do Senhor. E desceram à terra emocionados. Ao nascer, todos foram recebidos com profunda dor. Alguns pais recusaram a tarefa, outros se sentiram culpados e outros choraram com amor e aceitaram o dever.

Os anjos sabiam de sua missão e suas virtudes eram a fé, a esperança e a caridade. Sabiam perdoar e com paciência passaram a vida iluminando a todos aqueles que os haviam querido amar. Seguem descendo os anjos à terra com espíritos superiores em corpos limitados…

 

(Trata-se de um texto aparentemente anônimo que vem circulando pela internet, em espanhol, e foi traduzido por lideranças comunitárias no Brasil para “motivar” agentes de pastoral ao trabalho inclusivo com pessoas portadoras de deficiências.)

 

Como vemos, a idealização da pessoa portadora de deficiência se faz aliando a culpa dos humanos “normais” pervertidos, as disposições salvíficas de um Deus criador, a perfeição literalmente angélica dos “enviados” e as compensações positivas para suas diferenças (subliminarmente afirmadas como negativas). É assim que o ser humano se transforma, num passe de mágica, em um anjo do céu revestido de carne fraca, porém dotada de raras habilidades sensoriais e artísticas, enviado para despertar a misericórdia nos duros corações humanos. Assim, o portador de deficiência deixa de ser um ser humano que também precisa aprender a amar e é obrigado a se comportar como um mestre na arte do amor, para tornar suportável aos humanos “normais” a convivência consigo.

Considerar uma pessoa portadora de deficiência como superior aos mortais comuns acaba conduzindo ao mesmo caminho que as teologias da retribuição e da pureza: ao isolamento e ao preconceito. A pessoa tem de deixar de pertencer a si mesma e de ser o que realmente é para se encaixar num modelo que a tornaria aceitável para os padrões da comunidade. Quando não consegue, perde sua aura mística e é reconduzida rapidamente aos porões da humanidade, de onde nunca chegou a sair. Fenômeno semelhante acontece com os “pobres”, que, pela idealização teológica de sua condição socioeconômica, são automaticamente obrigados pela comunidade cristã a se tornar mestres de virtude — e acabam se tornando vítimas de um desprezo ainda maior, quando comprovam que são simplesmente humanos, com toda a carga de ambiguidade que tal condição carrega. Elevar teologicamente a pessoa acima de si mesma tem o mesmo efeito que rebaixá-la: trata-se sempre de compensar de forma mítica aquilo cuja falta a sociedade é incapaz de tolerar.

A questão não é dizer se o portador de deficiência pode ou não ser mensageiro de uma boa nova. O protagonismo de muitos deles com relação ao evangelho não permite dúvida. A questão que permanece é: será o portador de deficiência uma manifestação de Deus por sua própria natureza? Não será ele, antes, um ser humano como qualquer outro, capaz de Deus e carente de salvação, capaz e incapaz de amar e de ser amado? A deficiência será mesmo uma condição diretamente querida por Deus?

Há outras “teologias da deficiência” presentes na tradição judaico-cristã. Uma das mais importantes, fartamente documentada nos Sinóticos, interpreta a deficiência como sinal de possessão demoníaca. Sem dúvida, uma compreensão bastante presente em algumas comunidades neopentecostais de nossa época, certamente em razão de leitura fundamentalista do Novo Testamento, mas também em consequência da sobrevivência, no inconsciente cristão, da antiga mentalidade grega. Anjo ou demônio, a diferença é de polo: sua consequência, como sempre, é a exclusão.

 

2. O Deus cristão em face da pessoa portadora de deficiência

Não se podem esquecer as mentalidades da retribuição e da santidade-pureza para interpretar a pessoa portadora de deficiência no contexto do cristianismo. Porém, essa mesma tradição indica-nos outras possibilidades de compreensão do interesse de Deus pela pessoa com necessidades especiais.

 

2.1. A dignidade da criatura

Uma delas, em grande parte gerada desde o processo de crise da mentalidade retributiva em Israel (século IV a.C.), está baseada na ideia de criação. O Deus da Aliança torna-se o Deus de todo o cosmo, incluindo passado, presente e futuro, geração e aniquilação, e adquire assim uma transcendência radical (cf. Jó 38,1ss). Ele é anterior até mesmo ao mundo, à vida, ao ser da criatura. Nele se encontra a base de toda a existência. É o Criador. E a anterioridade radical de Deus não é simplesmente cronológica. Ela é também o fundamento de toda realidade entre o céu e a terra, sua dimensão mais profunda, o eixo da criatura (cf. Sl 139). Nessa perspectiva, a fala de Iahweh ao gago Moisés adquire um sentido novo: como qualquer outra realidade humana, a deficiência está sob o controle da Providência (cf. Ex 4,11). Não se deve ao mérito nem ao demérito da pessoa, nem tem como objetivo converter a sociedade humana: sua origem é totalmente transcendente.

À medida que se interpreta a deficiência como sofrimento, necessariamente segue a pergunta sobre a responsabilidade de Deus: por que permite as deficiências, que provocam dor e sofrimento em suas criaturas? A ela muitos vão responder, no decorrer dos séculos, recorrendo mais uma vez à retribuição, mal podendo se equilibrar sobre a contradição entre um Criador que tudo controla e uma criatura incontrolável. Alguns dirão que o sofrimento nasce da rejeição, por parte da criatura, de sua condição intrinsecamente limitada, da qual a deficiência seria apenas mais uma manifestação. Em termos propriamente teológicos, novamente se atribui o sofrimento à culpa humana por um pecado de idolatria: a rejeição da realidade. Mantém-se o dogma de que o sofrimento resulta da culpa por um pecado. Contudo, será que deficiência necessariamente devera ser traduzida por sofrimento?

 

2.2. O desarme da retribuição

O questionamento definitivo da interpretação da deficiência com base na mentalidade da retribuição deve-se à tradição profética, culminada em Jesus de Nazaré, que vincula diretamente a ação de Deus à mediação da pessoa maldita/ impura e a liberta do estigma de rejeição. É possível destacar, nas Escrituras, duas dramáticas manifestações dessa virada teológica, ainda não suficientemente assimilada pelo mundo judaico-cristão.

A primeira está encarnada na figura do Servo Sofredor: Deus escolhe o ser mais desprezado da sociedade para desmascarar os verdadeiros traidores da Aliança (cf. Is 52,13ss). O Servo não parece ser, tecnicamente, uma pessoa portadora de deficiência, mas sua situação é paradigmática e estende-se a todo o povo que amarga o peso de injusta culpa pelo próprio sofrimento. À medida que o Servo assume uma atitude profética (cf. Is 50,4ss) e não se dobra à mentalidade excludente da sociedade dos puros, torna-se o instrumento da justiça de Iahweh para a salvação de todos (cf. Is 53,10). Aquele que exclui será salvo pela coragem profética do Servo.

Na mesma linha foi Jesus de Nazaré, que provocativamente tocava os impuros, deixando-se contagiar — aos olhos dos que participavam dessa mentalidade — pela impureza e pela condenação (cf. Mt 8,3). É um ato de declarada ruptura com a ideia sacerdotal de impureza, pois o próprio Jesus diz, ao tocar o leproso: “Fique puro!”, invertendo assim o sentido do contágio. Aos olhos de Jesus e de seus discípulos, o sagrado manifestava-se claramente no contato físico com um impuro; era preciso lançar essa evidência no rosto dos “puros”, para desarmar seus argumentos (Mt 8,4)! O resultado dessa política de enfrentamento foi, além da conversão de alguns sacerdotes (cf. At 6,7), a condenação objetiva de Jesus como amaldiçoado.

Paulo compreendeu claramente a posição de Jesus e exprimiu com clareza o escândalo da escolha divina de um amaldiçoado (cf. Gl 3,13; Fl 2,6-8). Para ele e outros discípulos, Jesus foi a encarnação da figura do Servo. Em sua prática inclusiva, manifestou historicamente a escolha de Deus por aqueles que foram condenados ao esquecimento. Igualmente, sua prática de solidariedade para com as pessoas portadoras de deficiências, em pleno contexto mental do puro-impuro, fez de Jesus um impuro por excelência; a cruz foi tão somente a culminância de uma vida inteira na contramão da teologia da época, em benefício da vida dos malditos e impuros. E os discípulos de Jesus deverão identificar-se com sua figura de maldito-impuro, se quiserem levar o discipulado às últimas consequências (cf. Gl 2,19-20; 3,28­-29). Não porque a maldição-impureza-crucificação sejam desejáveis por si mesmas: apenas porque assim se desmonta a armadilha das teologias oficiais justificadoras da exclusão.

Nas figuras do Servo Sofredor e de Jesus crucificado, transparece a crença de que Deus escolheu o que foi rejeitado pela sociedade — incluindo-se, por analogia, as pessoas portadoras de deficiências — para cancelar a rejeição, o isolamento, a exclusão. Essa teologia não nega a condição desfavorável da pessoa com deficiência no contexto da cultura semítica; ao contrário, parte dela para ressaltar ainda mais o poder salvador de Deus e seu amor preferencial pelos destituídos da vida. No entanto, para além disso, essa fé une-se à fé no Deus criador e abre caminho para outros significados. Aquele que foi criado diferente não deverá ser rejeitado por isso, uma vez que sua própria existência é sinal de que é radicalmente aceito por Deus e, ainda mais, porque foi escolhido por Deus para comunicar sua bondade inclusiva.

A fé na criação já aponta para a aceitação da criatura em sua própria condição, mas a fé na preferência de Deus pela pessoa portadora de deficiência indica algo mais. Irrompe aqui a compreensão de que a deficiência carrega consigo um valor essencial. Em nossa época, esse valor vem sendo interpretado no horizonte da alteridade. A diferença (e não a identidade) como mediação para as relações humanas: eis o valor intrínseco às necessidades especiais dos indivíduos.

De acordo, portanto, com o significado do fenômeno na vida concreta do crente, certamente interpretará de forma distinta a ação da Providência. Se deficiência significa sempre dor, então será preciso voltar à teodiceia. Se significa às vezes dor, às vezes prazer, mas sempre novidade, desafio à inclusão, diferença que supre carências, então não é mais preciso perguntar o porquê de Deus criar e sustentar a vida da pessoa portadora de deficiência. Aliás, já não se trata de perguntar o porquê (origem), mas sim o para quê (finalidade) de uma humanidade, toda ela intrinsecamente deficiente, existir assim, tal como ela é, com indivíduos em suas diferenças e necessidades especiais. Pois o que é visado pela Providência não é o sofrimento da pessoa, mas a pessoa em si, em sua diferença que funciona como mediadora da relação com o cosmo.

Vista assim, a pessoa portadora de deficiência é um sacramento da humanidade. Ela manifesta, em suas diferenças específicas, a condição mais humana do humano: a incompletude, a carência radical, a necessidade sempre renovada do outro, em sua originalidade irrepetível. De fato, a deficiência define-se pela falta de algo — e a quem não falta algo de dimensão vital? Não será a não confissão, a não aceitação da própria carência radical o elo perdido, o que separa a prática inclusiva de Jesus da atitude excludente das comunidades cristãs de hoje?

 

3. De volta às raízes

Penso que a acolhida e o ressurgimento do protagonismo evangelizador das pessoas portadoras de deficiências passarão pelo questionamento profundo da consciência das pessoas e das comunidades. Fundamentalmente, é o desafio de acolher a pessoa por si mesma e reconhecer-lhe o direito à plena cidadania no Reino de Deus, sem reduzir-lhe a humanidade por meio de subcategorias estigmatizadoras. Quando os indivíduos e as comunidades desistirem de se considerar abençoados ou culpados, puros ou vítimas e, acima de tudo, “normais” (não deficiente ou não radicalmente carentes), então não haverá o que nos possa separar. Em outras palavras, a nova atitude das comunidades será a superação das dicotomias teológicas, marginalizadoras (maldito-abençoado; puro-impuro; espiritual-carnal; normal-anormal…) ou não será.

A emergência dessas e de outras questões não deixará de produzir seus frutos na vida da Igreja do século XXI: as comunidades cristãs retomarão suas mais profundas raízes e despertarão do sono da indiferença, pois desde já se sentem chamadas a uma nova atitude para com as pessoas portadoras de deficiências e começam a desenvolver o que podemos chamar de uma espiritualidade inclusiva. Todavia, o caminho de volta está apenas começando. Enquanto não se enfrentarem positivamente as teologias discriminatórias e excludentes que dominam a prática do povo cristão, especialmente pela via de uma evangelização não fundamentalista, inclusiva e orientada para a vida em abundância, não se concretizará a superação do isolamento e da maldição que pesam sobre as pessoas com necessidades especiais

Maria Paula Rodrigues