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Publicado em novembro-dezembro de 2014 - ano 54 - número 299

Evangelização, educação e universidade hoje

Por Pe. Johan Konings, sj

Reconhecemos os ganhos da socialização de bens materiais, as possibilidades culturais criadas pela informática etc. e não aceitamos o pessimismo mórbido de quem proclama que tudo está perdido. Mas convém admitir que a situação cultural e psicoafetiva dos jovens causa preocupação. As novas gerações são impelidas aos valores materiais e não a ideias ou valores humanos.

Ao ver as multidões, Jesus encheu-se de compaixão por elas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor (Evangelho de Mateus, 9,36).

1. Olhar global

Em comparação com o mundo de meio século atrás, observamos enormes mudanças na sociedade, a ponto de podermos falar numa ruptura, ou melhor, numa mutação civilizatória.

1.1. Em nível macro

Por volta de 1960, o mundo vivia a euforia do progresso, fruto do desenvolvimento da sociedade tecnológico-industrial, a qual prometia bem-estar generalizado e paz política em nível mundial. Os dois blocos, Ocidente e Oriente, viviam ainda a Guerra Fria, mas havia sinais de descongelamento. As forças políticas acentuavam a democracia, com leve colorido socialista. Completava-se a descolonização na Ásia e na África. Esse otimismo constituiu o pano de fundo para a encíclica Mater et Magistra, de João XXIII, para a constituição Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, e depois para a encíclica Populorum Progressio, de Paulo VI. Sonhava-se com um mundo baseado na força do trabalho justamente remunerado, com aprimoradas leis trabalhistas, com eficientes políticas e instituições sociais, como se reflete na Laborem Exercens, de João Paulo II. Acreditava-se num mundo organizado democraticamente e comprometido com a paz internacional. Fenômenos destoantes, como as ditaduras latino-americanas, eram considerados obstáculos passageiros ou fase inerente à dialética histórica. Mas havia quem duvidasse. Os ecologistas começavam a lançar suas advertências. O paraíso técnico-industrial socialista ou social-democrata teria de enfrentar, logo mais, as graves dificuldades que já se anunciavam a partir da primeira crise do petróleo. Não só as matérias-primas, mas o próprio ambiente natural começava a dar sinais de esgotamento…

E sem que a grande maioria o percebesse, estava-se criando nova estrutura, que se revelava na explosão dos meios de comunicação de massa, na mundialização das imagens pela televisão, na aparição dos computadores pessoais, na aceleração das comunicações, na internet, na telefonia celular… A comunicação em tempo real acelerou os movimentos financeiros, provocou o inchaço do capital especulativo, a superconcentração de capitais. A cibernetização da indústria provocou desemprego, trabalho informal e insegurança social. As conquistas trabalhistas do século XX foram postas em xeque. O bloco do socialismo real se desintegrou e se entregou ao capitalismo neoliberal, que, no mundo inteiro, mas sobretudo nos países economicamente fracos, tomou ares de capitalismo selvagem. O mundo sonhado como grande confraternização mostrou-se esfacelado. Forças marginais apareceram no primeiro plano: o terrorismo internacional, o narcotráfico, aliando-se amiúde a movimentos políticos regionais. As oposições que no fim do século passado pareciam amainar-se recrudesceram – por vezes, com a ajuda do fundamentalismo religioso. E, então, o capital desregrado provocou a crise…

1.2. Em nível micro

Falamos anteriormente do aspecto sociopolítico “macro”. Mais importante, talvez, seja aquilo que pouco aparece nas manchetes dos jornais: o aspecto humano, cultural. Num modo bem diferente do que previa a utopia marxista, está surgindo um “homem novo”, novo paradigma, nova constelação de valores. A revolução cibernética modificou profundamente as relações humanas e a percepção do mundo. As novas gerações nasceram num mundo em que tudo está à mostra e à venda e em que tudo parece possível e adquirível… virtualmente, enquanto, de fato, tudo está mais engessado do que nunca. As relações sociais e psicoafetivas – amizade, família, namoro – sofrem a concorrência das relações virtuais, que não deixam de ser reais também. Já antes, os laços familiares estavam enfraquecidos pela concentração urbana industrial, que transformara as mães em operárias e provocara, com a bênção da agroindústria, o êxodo rural; agora, com a invasão da informática, os filhos são entregues não aos cuidados dos pais, mas da tela. Entretanto, os filhos do êxodo rural, crescidos na favela, mesmo se inscritos na escola pública, ficam praticamente excluídos de um ensino que ofereça oportunidades promissoras. Encontram outro tipo de oportunidade: o tráfico de drogas, a prostituição. Criam sua sociedade em forma de gangues. Mesmo os filhos das classes A, B e C, muitas vezes carentes da afetividade estruturadora proveniente dos pais – em decorrência de ausência, desunião, guarda compartilhada etc. –, acabam criando sua sociedade paralela, suas tribos, com valores ecléticos ou, muitas vezes, desvalores alimentados pelos instintos da violência e da sexualidade bruta, o instinto básico.

Reconhecemos os ganhos da socialização de bens materiais, as possibilidades culturais criadas pela informática, o acesso aos tesouros da literatura mundial, das artes picturais etc. e não aceitamos o pessimismo mórbido de quem proclama que tudo está perdido, eximindo-se de qualquer engajamento. Mas convém admitir que a situação cultural e psicoafetiva dos jovens causa preocupação. Há ainda transmissão de valores? E o que se transmite não necessita atenção? Ademais, se parte dos jovens, por algum atavismo – já que são educados pelos avós no lugar dos pais –, sentem saudades dos valores tradicionais, tendem a apegar-se desesperadamente a uma religiosidade difusa ou às formas mais sentimentais, devocionais, individualistas e alienantes, as que o Concílio Vaticano II queria precisamente remover do centro do cristianismo. Cada um inventa a religião a seu jeito, sem compromisso comunitário. A comunidade, preocupada com a participação efetiva de todos, especialmente dos pobres, como sujeitos em verdadeira fraternidade, fica abandonada, enquanto se formam grupos particulares em torno de determinada devoção, determinada mística, determinada música. A solidariedade e a participação organizada de todos cedem novamente lugar ao assistencialismo (que, devemos admitir, é melhor do que nada no contexto que se criou…).

Os valores tradicionalmente prezados esvaziaram-se com a cumplicidade dos verdadeiros agentes educadores da sociedade, entre os quais estão os meios de comunicação. Os programas de televisão de maior audiência não suscitam grandes arroubos de idealismo humano. Toda noite, conforme avançam as horas, sucedem-se a insignificância, a violência e a volúpia – e não se sabe qual das três é mais perniciosa… Mesmo os programas ditos religiosos ficam, muitas vezes, na superficialidade do instinto religioso sentimental. E poucos são os que assistem aos programas realmente formativos que algumas redes, mormente de instâncias públicas e/ou educativas, veiculam.

O esvaziamento da educação em geral atinge também as escolas. Na escola pública, a qualidade do ensino fundamental é muito precária. Isso, em parte, por causa dos baixos salários dos professores, que assumem dois ou até três turnos e carecem de incentivo. Mas em parte também pelo excesso de experimentos educacionais, não levados até o ponto desejado com o devido profissionalismo ou não adaptados às circunstâncias reais, como no caso do Projeto Escola Plural de Belo Horizonte, que não dispunha de educadores plurais e, implantado sem a devida participação e envolvimento dos professores e educadores, caiu na burocracia. A presença de grande número de alunos desmotivados na sala de aula dificulta a aprendizagem dos outros, que acabam igualmente desmotivados. Além disso, as licenciaturas não preparam os professores para a realidade, por exemplo, para a escola inclusiva, a violência escolar e outros problemas.

Mesmo admitindo que, no ensino particular, a situação didática talvez seja melhor, não se pode fechar os olhos para outro problema que aí se percebe: muitos pais das classes A, B e C “depositam” seus filhos na escola, “terceirizam” a educação que eles mesmos não são capazes de dar, quer em razão do trabalho excessivo, quer do vazio interior causado por seu modo materialista de viver e pensar. Ora, se a família não fornece a base da educação, a escola não consegue construir o andar de cima. De forma semelhante, há o problema de as escolas, mesmo as particulares, voltarem-se apenas para a formação para o mercado ou para o vestibular, em vista de uma carreira promissora, sem ênfase nos valores humanos, na solidariedade. As novas gerações são estimuladas em todos os âmbitos a ter valores materiais, e não ideias ou valores humanos.

Consideremos agora o âmbito da universidade, que não é somente o ambiente universitário, mas a estrutura do saber acadêmico-científico. É para entrar nessa estrutura que os universitários se preparam, embora muitos nunca cheguem a ocupar um cargo de decisão na sociedade e acabem se tornando apenas operários especializados. Nossas observações tocam, portanto, em algo mais amplo que os alunos tomados individualmente. Devemos ter em mente toda a estrutura do saber científico, bem como seu papel na sociedade.

Na Modernidade, podia-se falar de um mundo acadêmico, que, ao lado da Corte e da Igreja, exercia um papel importante na sociedade e produziu tanto a Ilustração do século XVIII quanto o crescimento das ciências nos séculos XIX e XX. Entretanto, as acima apontadas mutações civilizatórias atuais transformam profundamente o âmbito da universidade. Sinais disso são os cursos a distância, o conceito de megacampus, a vinculação das universidades à indústria e ao comércio, o registro mais quantitativo que qualitativo de pesquisa e produções por agências como a Capes, a Plataforma Lattes etc. Parece uma indústria.

Ora, o papel da universidade não se esgota na estrutura sociocultural. Sua vocação última está na verdade. O pragmatismo vulgar que domina nossa sociedade nos leva a esquecer a existência de algo como a paixão pela verdade, a qual impeliu Sócrates e Platão à busca da epistēmē e da alētheia como reação contra o predomínio da doxa sofista. A paixão pela verdade é pássaro raro em nosso céu. Algum jornal sério talvez dedique umas linhas a quem se empenha pelo que se pode chamar de verdade política, posta a serviço da justiça, da transparência, das necessárias transformações na sociedade, mas pouca atenção se dedica a quem procura a compreensão honesta do mundo e de tudo o que existe – a verdade pura e simples. Contudo, é esta a atitude que mais contribui para a vocação do ser humano: buscar dentro de nós a verdade que nos remete à verdade que nos transcende.

Hoje cresce a tendência de os estudantes irem para a universidade mais por necessidade, em busca de saída profissional, que em busca de saber. Podem até granjear certo conhecimento científico e domínio técnico, mas sua formação humana integral fica aquém do desejado. Não estão acostumados com o estudo sistemático, voltado para a vida e não apenas para o resultado imediato. Além disso, devido à pouca idade, ao desenraizamento e a outros fatores, muitas vezes são emocionalmente instáveis. Muitos chegam à universidade sem saber direito o que querem estudar. Podem até ter uma inteligência bastante estimulada, mas sem projeto definido: uma inteligência ainda a ser estruturada, quando já deveria estar integrada num projeto de vida pessoal. A universidade não se apresenta, na realidade, como instância educativa, mas como prestadora de serviço com base no contrato assinado na hora da matrícula. O estudante, sobretudo o que não mora com a família, está entregue às exigências da sobrevivência individual. A diversão cultural de boa qualidade é pouco aproveitada. Os que vêm do interior perdem o contato com suas tradições familiares e religiosas. De forma geral, o ambiente da universidade é um convite a abandonar a fé religiosa.

Quanto aos docentes, percebem-se mudanças análogas. Já não constituem uma elite de “catedráticos”, antes, parecem operários ou, em certas instituições, quase escravos. E apesar da dialética hegeliana ensinar que o escravo, por seu trabalho, acaba conquistando o saber até tornar o senhor dependente de si, muitos dos atuais docentes, confinados na perspectiva estreita de sua tese e de sua hiperespecialização, não brilham pela cultura geral e continuam meros escravos.

2. Olhar cristão

Olhando com os olhos da fé cristã, podemos dizer que os universitários na sociedade pós-industrial parecem ovelhas sem pastor. Constituem uma preocupação pastoral prioritária, porque não se trata apenas da vida pessoal e espiritual de alguns indivíduos, mas de toda uma geração destinada a levar aos ombros graves responsabilidades para com a sociedade e a cultura.

2.1. Evangelho, cultura e sociedade

A comunidade cristã e os outros grupos religiosos devem tomar consciência de sua urgente responsabilidade com a cultura. Não apenas com as culturas reprimidas, como a afro e a indígena, mas também com a cultura global, da sociedade toda e da humanidade toda. Não que a evangelização seja um serviço cultural, mas o Reino de Deus que ela anuncia encarna-se e manifesta-se concretamente na cultura. Entre cultura e evangelho existe uma dialética inextrincável. A efetivação do “Reino”, ou seja, de uma sociedade que supere o arbitrário, o imediato e instintivo e, sobretudo, o egoísmo e a soberba que espreitam o ser humano desde o jardim do Éden, é também uma questão de cultura. Como a personalidade humana se encarna num corpo e encontra no equilíbrio psicofisiológico firme aliado para sua atuação eficaz, o espírito do Reino de Deus se encarna numa sociedade permeada por uma cultura, que é como que sua alma. E se essa cultura não é cultivada, mas fica entregue a forças devastadoras, não será possível criar, em nível de sociedade, condições profícuas para uma comunhão humana condizente com o Reino anunciado pelo evangelho.

Não digo isso por nostalgia da cristandade, da cultura cristã, da sociedade cristã. Meio século depois que Emmanuel Mounier anunciou a morte da cristandade, autores recentes, como Danielle Hervieu-Léger, afirmam a “exculturação” do cristianismo da cultura pós-moderna, que desconstruiu o cristianismo e a religiosidade em geral, para que cada um construa seu próprio mundo simbólico. Mas o atestado de óbito da cristandade não nos deve impedir de sonhar com um mundo em que as coisas se deem conforme o que Cristo sugeriu e pregou! Mesmo sem que a Igreja represente uma potência sociopolítica, o Reino de Deus, confiado a uma comunidade pequena e de pequenos (cf. Mateus 11,25), é para todos e não se estabelece pela imposição do poder, mas pelo amor. O erro da cristandade não tem sido sonhar com um Reino de paz, justiça e amor para toda a humanidade, mas aliar-se de modo confuso e antievangélico aos poderes desta terra e/ou deixar-se cooptar por eles. Nós, cristãos, hoje, reconhecemos os direitos da sociedade civil, mas não desistimos de esperar que esses direitos se tornem sempre mais conformes aos valores do evangelho, ao que cremos ser o projeto de Deus para a humanidade toda. Só para dar um exemplo: admitimos que, em função da boa ordem na sociedade, se protejam os direitos de cônjuges que se separam e contratam novo casamento. Mas, à luz do que Cristo nos ensina e seu Espírito nos inspira, acreditamos que seria melhor se tal coisa não fosse necessária.

A atuação cristã no âmbito da cultura é feita de sabedoria e profetismo. Profetismo no sentido de apontar o que – segundo cremos – Deus deseja para toda a humanidade e de censurar o que trai os compromissos assumidos com esse projeto. E sabedoria no sentido do “saber e sabor” da vida humana, com todos os seus aspectos, possibilidades e impossibilidades históricas, virtudes e vícios – que são às vezes os exageros das virtudes…

Pergunta-se então qual será a atitude cristã, evangélica e evangelizadora, no âmbito da educação das novas gerações, laboratório da cultura da sociedade de amanhã. E pergunta-se como a comunidade cristã atenderá à realização daquilo que, no fundo do coração e diante do Absoluto, cada um deseja – o Desejo que só descansa nele.

2.2. Missão eclesial

Tampouco quanto em outros âmbitos, a missão da Igreja na Educação e na universidade hoje não deve ser mero serviço de manutenção, mas missão evangelizadora. A universidade é terra de missão como era, na chegada dos missionários, a Terra da Santa Cruz. Missão que, no espírito do papa João XXIII e do Concílio Vaticano II, seja ecumênica e assumida em diálogo com todas as religiões honestas. Ora, sem diminuir em nada essa aspiração, o realismo nos ensina que, para uma expressão eficaz da fé cristã e uma ação evangelizadora bem articulada, é preciso respeitar a coerência confessional interna das comunidades cristãs. É-se cristão, concretamente, em uma das confissões cristãs. Portanto, os membros de cada confissão devem assumir sua missão segundo as regras de fé e prática que sustentam a vida de suas comunidades, enquanto procuram a unidade na diversidade, o verdadeiro ecumenismo.

Quatro décadas atrás, o termo preferido para falar da missão da Igreja era “pastoral”. Esse termo, porém, evocava antes os pastores que o povo laical, o laós. Por isso, foi sendo substituído pelos termos “ação” ou “missão evangelizadora”, bem mais adequados porque evocam a missão – confiada pelo próprio Jesus tanto aos Doze como aos setenta e dois – de levar o evangelho ou boa-nova do Reino de Deus a todos e, em primeiro lugar, aos pobres, pois para atingir a todos é bom começar com aqueles que são sempre postergados: os últimos serão os primeiros. Esse anúncio da boa-nova não se dá só em palavras, mas também em ações que sejam sinais do Reino, como o próprio Jesus os realizava na sua missão junto a seu povo e no seu tempo.

2.3. Missão evangelizadora, espiritualidade e compromisso ético

Chamamos esta missão de evangelizadora porque, no mundo de hoje, e também no Brasil, se deve partir do pressuposto de que todos precisam ser evangelizados, até que se prove o contrário. O pressuposto cristão já não existe; a hipótese de uma sociedade evangelizada não se verifica. Da tradicional cristandade, que confundia a Igreja com a sociedade, sobra só uma casquinha. Não vivemos num mundo cristão, mas numa terra de missão.

Na missão evangelizadora, não se trata de catequizar ou moralizar as pessoas ligadas à Educação, mas de pô-las em contato com a proposta de Jesus Cristo, apresentada como boa notícia. Não se trata, em primeiro lugar, de incentivar a participação nos sacramentos, mas de algo muito anterior a isso: o anúncio de um novo ser humano e de uma nova comunidade, em nome de Cristo e com base em seu ensinamento e exemplo de doação radical. A evangelização não quer, em primeiro lugar, levar as pessoas à missa, mas a Cristo e ao Reino que ele anuncia. Depois, poderão celebrar a palavra e o memorial de Cristo na eucaristia, participada com convicção e verdadeira fé. Mas antes disso, as pessoas precisam ser confrontadas com uma vida nova, aquela que lhes foi prometida no ato batismal e muitas vezes não foi conscientemente assumida. E uma vez que se tiverem, livre e conscientemente, decidido por essa “opção cristã”, poderão aprofundá-la na mística que consiste em ter Jesus diante dos olhos e no empenho ético ao qual ele as convida.

A mística de que falamos é o olhar dirigido para Cristo, no qual vemos o Pai (cf. Jo 14,9), Deus que se manifesta no amor (cf. 1Jo 4,8.16) e nos dirige o apelo do amor fraterno radical. Por um lado, já em nível pré-evangélico, a espiritualidade contribuirá para que no mundo do som ensurdecedor, da visualidade ofuscante e do erotismo despudorado haja espaço para o silêncio, a contemplação, a modéstia e a gratuita amorosidade nas relações humanas e afetivas. Também o cultivo do belo pode ser considerado como pré-evangelização. Nesse nível cultivar-se-á, até com a contribuição de outras religiões e mundivisões, a percepção da dimensão transcendente, misteriosamente presente no universo e na existência pessoal. Por outro lado, a evangelização no sentido estrito – a apresentação do anúncio de Cristo e do Reino de seu Pai – fará surgir uma espiritualidade baseada no encontro com Deus na oração segundo o espírito de Cristo, cuja expressão básica é o Pai-nosso, a “oração que rezamos em todas as nossas orações” (santo Agostinho). Essa prática espiritual é coroada pela eucaristia e exige momentos de contemplação e de oração, de leitura orante da Bíblia, de estudo e aprofundamento da tradição espiritual e da vida cristã hoje. Antes de tudo isso, porém, urge a iniciação cristã, que muitos batizados nunca conheceram num modo condizente com a fé adulta.

Ora, a mística cristã é inseparável da impostação ética; o encontro com Cristo suscita, de imediato, um apelo ético. Contemplando o Servo Padecente, fitamos o rosto do outro, nosso irmão, que de modo incondicional interpela nossa solidariedade com a preferência que ele recebe na qualidade de outro. Como sugere Levinas, serei um “eu ético” porque me deixo “sequestrar” pelo apelo do outro e responderei a esse apelo com todo o envolvimento de minhas capacidades humanas, exercendo o senso crítico e criando a articulação política que uma resposta honesta exige. Por isso, os estudantes e universitários, em particular, precisam tomar conhecimento das injustiças que os rodeiam, da miséria material e moral de grandes porções da humanidade, bem como das possíveis articulações para que a justiça e a solidariedade se tornem mais eficazes – a outra sociedade possível. Dos docentes e profissionais, de modo especial, exige-se o exercício de sua profissão na linha de tal projeto, sem negligenciar seu testemunho de vida ética pessoal. A melhor prova de compreensão é a prática. A inspiração cristã se comprova pela prática: “amar com ações e em verdade” (1Jo 3,16).

2.4. Missão do Povo de Deus

A missão da formação e a missão universitária são missão do Povo de Deus, do laós, ou seja, de todos os que vivem autenticamente a fé cristã. Lembremos que todos, incluindo os ministros ordenados, estabelecidos em função hierárquica, exercem sua missão evangelizadora em primeiro lugar por serem membros do Povo de Deus, povo ao mesmo tempo laical e sacerdotal, eleito por Deus para que seu amor seja conhecido por todos. Todos são evangelizadores em decorrência da vocação cristã geral, como acentuou o papa Paulo VI na Evangelii Nuntiandi. A hierarquia tem, decerto, o papel específico de acompanhar e incentivar a missão de todos, mas quem partilha a vida dos destinatários os atingirá de modo mais concreto, como dizia o fundador da Juventude Operária Católica, Joseph Cardijn: o apóstolo dos operários será o operário. A missão universitária não é mero projeto da hierarquia, mas missão do Povo de Deus, no qual os ministros (servos!) ordenados não substituem o testemunho do companheiro, do irmão de lida e luta.

2.5. Missão universitária no contexto sociocultural concreto

Essa missão evangelizadora e ação comprometida com o Reino anunciado por Jesus, na qual incluímos tanto as instituições de ensino e pesquisa quanto a vida e atuação dos acadêmicos, docentes e discentes, deverá focalizar em primeiro lugar o ensino superior como tal, no seu contexto sociocultural. Sem essa atenção pelo ensino superior como tal, a missão junto aos acadêmicos, docentes e discentes fica abstrata, limitada a aspectos que não atingem seu envolvimento profissional, seja em nível pessoal, seja em nível estrutural.

Nesse sentido, os profissionais, na sua área de atuação, os gestores e administradores, nas suas instituições, e todos, no nível da política educacional e da construção da sociedade, encontrarão amplas oportunidades para traduzir em atitudes e gestos aquilo que o anúncio do Reino de Deus e a memória de Jesus na comunidade cristã, guiada por seu Espírito, lhes ensinarem. Os ainda não formados encontrarão semelhantes apelos em primeiro lugar no estudo e no preparo do exercício profissional. A missão evangelizadora não se exerce fora do envolvimento principal do estudante, o estudo, que lhe mostra os desafios éticos da sociedade e de sua responsabilidade profissional.

O estudo não deve somente visar à qualificação técnica, mas inscrever-se numa “sabedoria” humana e cristã que concerne à sua vida inteira, bem como ao mundo no qual ele vive agora e no qual viverá na hora da atuação profissional. Conceba o universitário esse mundo com a devida lucidez, com “sabedoria” humana e cristã, providenciando para que sua cultura geral e sua formação humana acompanhem passo a passo sua qualificação profissional. Está aí um chamado para aquilatar o estudo acadêmico com aquele supplément d’âme de que falava o filósofo Bergson. E isso não só nas universidades confessionais, mediante disciplinas proporcionadas pela instituição, mas em todas as universidades e faculdades, mediante atividades extracurriculares ou de extensão, iniciativas das agremiações estudantis, convênios etc. E sem esquecer as muitas possibilidades da prática da solidariedade, na entreajuda individual, nos serviços comunitários organizados a partir da universidade, na presença em conflitos de ordem social, na assessoria e elaboração de estudos ou projetos sociais e políticos em prol da população ou em vista de estruturas e práticas públicas mais justas.

2.6. Missão de qualidade universitária e diálogo autêntico

Como dissemos, o âmbito universitário inclui o papel estrutural da universidade, os programas de pesquisa e formação universitária, a vida dos seus agentes, docentes e discentes, especialmente em sua dimensão acadêmica. A missão evangelizadora nesse âmbito deve ser de qualidade universitária, deve participar do amor à verdade e do olhar investigador que caracterizam o autêntico empenho científico e intelectual. O evangelizador que, ao dirigir-se a esse campo, ficar alheio ao genuíno espírito acadêmico será como um missionário que fica alheio à cultura e à linguagem do povo no meio do qual pretende exercer sua missão. Por outro lado, a missão universitária cristã procurará confrontar o âmbito e o espírito universitário com o que a missão do próprio Cristo trouxe de específico à humanidade. Com esse “específico” apontamos, sobretudo, a experiência de Deus como Pai, no sentido transcendente que esse termo simbólico tem no evangelho, bem como as exigências da fraternidade humana que se resumem no mandamento do amor, com aquela incidência na realidade objetiva que o termo “Reino de Deus” evoca.

Esse encontro do evangelho com o mundo universitário é um diálogo. Não uma inócua conversa em busca de conformismo, mas – mesmo quando encaminhado num boteco, show ou cinema – um diálogo em busca de verdade e autenticidade. Exige encarnação universitária, presença existencial e histórica, participativa e ao mesmo tempo crítica, solidariedade sincera, bem como a coragem de ser diferente por causa do que se percebe a mais em Cristo: a diferença cristã, que não exclui, mas completa os valores autênticos existentes também fora da comunidade cristã.

Todas as áreas e dimensões da vida universitária e acadêmica estão na mira dessa missão e diálogo: a honestidade científica e a dedicação ao estudo; a ética profissional de pesquisadores, docentes e discentes, e até do corpo administrativo e técnico; o valor humanitário, social e ecológico da pesquisa científica e de sua aplicação; a adequação da própria instituição à sua vocação científico-didático-comunitária; as condições de vida, a cultura e a percepção de vida dos acadêmicos; os valores e desvalores cultivados no meio deles etc.

A enorme diversidade do campo universitário-acadêmico exige uma articulação perspicaz, para que a missão evangelizadora seja como a dos discípulos de Jesus: “cordeiros no meio de lobos, […] simples como as pombas e prudentes como as serpentes” (Mt 10,16). Onde mais se adensa a inteligência, mais pode concentrar-se a malícia. Cabe aí o dom da inteligência divina, que se traduz em organização humana.

Dependendo das circunstâncias, essa organização e articulação podem ser atribuição de grupos espontâneos, de movimentos de vida cristã atuantes em determinado ambiente ou instituição, de um serviço da própria instituição de ensino superior (especialmente se cristã), da organização pastoral de determinada igreja ou de um organismo ecumênico.

3. Linhas de ação

Entre a multidão de tarefas concretas que se apresentam na evangelização universitária, devem ser priorizadas, pelo menos no atual momento, as que se podem chamar de teóricas: o estudo da mentalidade contemporânea, da visão de mundo em tempo de crise econômica, ecológica e ética; também o estudo propriamente teológico, ou seja, do significado de Deus e do Transcendente, ou da mensagem e teologia cristã em relação especial com o mundo da cultura e da universidade; a pesquisa sociorreligiosa; o estudo e avaliação crítica de projetos, programas e prioridades das instituições universitárias ou científicas, incluindo as orientações da SBPC, da Capes, dos programas de pós-graduação etc.; o estudo das modalidades da educação e do ensino e de seu impacto nas pessoas e na estrutura sociocultural e política; as exigências da formação humana integral das pessoas.

Ao mesmo tempo, apresentam-se como tarefas práticas urgentes: a iniciação na fé (ainda que “atrasada”) dos acadêmicos que querem ser cristãos de verdade; a formação de núcleos ou comunidades cristãs, permitindo um relacionamento pessoal, pois cada cristão tem direito a uma comunidade de relações diretas, de intercâmbio, diálogo e apoio pessoal; o diálogo da fé, tanto com os estudantes quanto com os docentes, os administradores, os funcionários; celebrações religiosas autênticas e prática sacramental consciente; formação de agentes para a missão universitária e de grupos de estudo e conscientização; ações de solidariedade para com pessoas do âmbito universitário ou a partir da universidade; iniciativas de ajuda, especialmente aos candidatos ou universitários iniciantes, em termos didáticos, culturais, psicológicos e socioeconômicos; promoção ou divulgação de programas culturais humanizadores e, por isso, evangelizadores; iniciativas junto às agremiações estudantis; cursos curriculares ou atividades extracurriculares e de extensão, oficinas e cursos de curta duração sobre temas específicos etc.; envolvimento dos estudantes no ensino, na pesquisa e na extensão universitária; quando necessárias, ações políticas dentro e fora da universidade, em entendimento com instâncias qualificadas e competentes, e isso sempre com uma consciência histórica unida à sabedoria humana e cristã.

4. Conclusão

À guisa de conclusão, ressaltamos, em primeiro lugar, a preocupação de situar a missão evangelizadora universitária no contexto amplo da cultura atual, que está em comunicação com o mundo inteiro e tem características novas e inéditas, proibindo a mera reprodução do passado. Destacamos ainda a dialética entre o individual e o comunitário, entre o profissional e o humanístico, entre o campus da universidade e o campo da sociedade, entre a mística e a ética. Mas acentuamos, sobretudo, a necessidade de verdadeira ação evangelizadora, comparável à dos primeiros cristãos no mundo não cristão. E essa ação deverá ser sustentada pelas comunidades cristãs, em sinergia com todos aqueles que compartilham os mesmos valores humanos, os quais, se verdadeiramente humanos, são também cristãos.

Pe. Johan Konings, sj

Padre jesuíta, doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje (BH). Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje. E-mail: [email protected]