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Publicado em número 246 - (pp. 25-30)

Homilia

Por Pe. João Batista Libanio

(O presente artigo reproduz o quinto capítulo do livro de J. B. Libanio Como saborear a celebração eucarística?)

 

“A homilia é um ato litúrgico que faz ponte entre a Palavra anunciada e a Palavra celebrada.” (Paul de Clerck)

 

A homilia é o prolongamento da palavra da Escritura para dentro do momento de hoje e para a comunidade presente em ressonância com o tempo litúrgico e em conexão com a celebração litúrgica com tonalidade espiritual, orante, e não doutrinal ou moralizante. O termo grego homilia reflete uma experiência humana de estar em companhia, de ajuntar-se a, de conversar, de ter e estar num relacionamento profundo, de frequentar as pessoas. A transposição desse termo para dentro da celebração indica o espírito da homilia, que deve criar entre o pregador e a assembleia um relacionamento de proximidade, de companhia, de presença, e não de distância nem de erudição magisterial. Está inserida na ação litúrgica, cercada de oração de contemplação, de mistério, de clima de fé. Essa aura deve envolvê-la.

À primeira vista, a homilia parece um enclave na liturgia. Interrompe-se o ciclo das palavras da tradição litúrgica e da Escritura para inserir o co­mentário vivo, novo, diversificado do pregador. Rompe-se a estrutura de uma celebração hierática para introduzir nela a palavra do cotidiano, imprevisível, desde homilias realmente consoantes com o conjunto litúrgico até aquelas banais e vulgares. A liturgia perde a segurança da tradição para aceitar comentários de hoje.

No entanto, apesar dos riscos de confiar aos limites dos celebrantes a palavra da homilia, ela faz parte desde os inícios da liturgia. É uma das partes mais antigas e remonta aos elementos pré-cristãos vindos da tradição sinagogal. No evangelho, deparamos com a cena de Jesus lendo e comentando uma passagem de Isaías (Mc 6,1-6; Lc 4,16-30). Era um costume no mundo judaico de que Jesus fez uso enquanto membro do povo e piedoso frequentador da sinagoga. O mesmo aconteceu com Paulo, que, estando presente com seus companheiros na sinagoga de Antioquia da pisídia, convidado pelo chefe, tomou a palavra e fez o maravilhoso anúncio da boa-nova da ressurreição de Jesus (At 13,13-43). Eram os antecedentes bíblicos de nossa homilia. Tornou-se natural no mundo cristão que se seguisse à leitura da Escritura, como elemento indispensável da liturgia da palavra, o comentário.

A história da Igreja, especialmente na Antiguidade, conta com maravilhosa tradição de homilias dos Santos Padres. No Oriente, no século IV, em concelebrações, cada um dos celebrantes podia fazer seu comentário sobre as leituras bíblicas, cabendo ao bispo ser o último a falar. No entanto, em Alexandria, por causa dos desvarios teológicos de Ário ou mesmo na África do Norte até Santo Agostinho, era vedada aos sacerdotes a pregação. O mesmo aconteceu em Roma e em outros lugares durante muito tempo. Pregações de Pa­dres da Igreja, bispos ou simples sacerdotes, constituem uma riqueza teológica de insuspeitada beleza e grandeza.

O cristão médio no nosso contexto não se acostumou a ler os Padres da Igreja, seja por falta de traduções em português de fácil acesso, seja por desconhecimento e falta de motivação.

A partir do início da Idade Média, a homilia na liturgia entrou em decadência. Durante algum tempo, ficou restrita aos bispos, tanto para garantir-lhes o poder doutrinal quanto pela falta de preparo dos sacerdotes. Em outros momentos, o descuido pela pregação cresceu, afetando até os bispos que já não pregavam. Houve um ressurgimento da pregação por obra e graça dos frades mendicantes, sobretudo dos dominicanos, cuja ordem se denominou “Ordo Praedicatorum”, a Ordem dos Pregadores. Mas nem sempre os sermões se faziam no quadro da missa. O Concílio de Trento impôs a obrigação aos párocos e bispos de prega­rem aos domingos e dias de festa. E os ventos novos da renovação dos estudos bíblicos do século passado trouxe substancial melhora das pregações, incentivada pelo movimento litúrgico e reforçada pelas orientações do Concílio Vaticano II.

A posição da pregação variou ultimamente. Antigamente o bispo sempre pregava sentado e o povo ficava em pé. É o jogo simbólico do mestre e discípulo, do que ensina (sentado) e do que aprende (de pé). Valia em muitos lugares também para o pregador sacerdote. Os fiéis apoiavam-se em seus bastões para suportarem melhor a posição ereta. Razões pragmáticas — debilidade de certos ouvintes, prolongamento das pregações — levaram a providenciarem-se cadeiras. Mas o atual costume de bancos para os fiéis veio por meio da influência dos templos protestantes na época moderna.

A Igreja de Belo Horizonte, por ocasião do lançamento do Projeto Pastoral Construir a Esperança, encetou esforço singular no aprimoramento das homilias, oferecendo cada domingo subsídios bíblico. Projeto que depois a própria Conferência dos Bispos assumiu em âmbito nacional. Tanto sacerdotes como fiéis hoje já contam com ajudas substanciosas para o aprofundamento dos textos bíblicos selecionados pela liturgia.

Não se leem os textos bíblicos como um livro de História que nos relata o que aconteceu no passado e nos deixa totalmente indiferentes. Quando estudamos a Inconfidência Mineira, não nos sentimos interpelados hoje. Emitimos espontaneamente um juízo histórico sobre o fato, glorificando a Tiradentes e chamando de traidores os que o condenaram à morte. É um sentimento de justiça histórica do passado. A vida de Tiradentes não nos atinge existencialmente. A história faz seu percurso e emite seus julgamentos.

A Bíblia é diferente. Os fatos históricos passados, relatados por ela, têm um significado presente e interpelante para quem a lê e ouve. Sendo Palavra de Deus, encerra um sentido maior que vale para todos os tempos, embora reinterpretados na nova conjuntura. A homilia é uma ajuda para os fiéis fazerem tal releitura da Bíblia para sua vida presente. De toda leitura da Escritura, vale o que Marcos nos diz do início da vida pública de Jesus: “O Reino de Deus está próximo, isto é, ele nos toca por meio da Palavra lida. “Convertei-vos”, a leitura pede que mudemos de vida. Mas em que direção? “Crede na boa-nova”, entendendo, aceitando e vivendo o anúncio de salvação de Jesus. Em que consiste fundamentalmente tal proposta de Jesus? Colocar-nos diante da interpelação de Deus por meio dos acontecimentos da vida, da história, descobrindo neles como podemos amar e ajudar mais e melhor o próximo. Nisso consiste o amor a Deus e de Deus.

Toda leitura da Palavra que nos atinge pede conversão — cum + vertere — mudança de rumo. Em grego, a palavra é mais profunda: metanoia metà + nous — que a nossa mente vá mais além, deixe o seu círculo fechado. A leitura atualizada da Escritura na homilia põe diante de nós o caminho a ser trilhado, abandonando o lugar parado em que estávamos. A homilia é incentivo à mudança de vida, a avançarmos para águas mais profundas, deixando para trás a comodidade e a segurança da margem.

A homilia nasce da inteligência e do coração do pregador. Quanto mais ele penetra o texto, tanto mais tem o que comunicar aos fiéis. Esse trabalho se constrói por meio de uma intimidade com as perícopes. Duas posturas permitem melhor acesso a elas: a intuição e a análise.

À medida que um cristão se familiariza com os textos bíblicos, seja simples fiel ou estudioso erudito, vai adquirindo crescente “sentido bíblico da fé”. É uma espécie de olfato espiritual, de conaturalidade com a revelação de Deus, sem necessidade de recorrer à erudição ou às vestimentas linguísticas.

Como cultivar e ativar tal sentido da fé? Sem ele, nenhuma homilia consegue sair de chavões, de óbvios triviais, de moralismos improvisados e baratos, de mera repetição do texto que se acabou de ler. Perde-se nas palavras sem conteúdo ou em conteúdos sem densidade existencial e humana. Mero ecoar de frases feitas! Como então acordar esse dom do Espírito que dorme em cada um de nós? Segue, à guisa de sugestão, um roteiro didático.

1. Depois de ler o texto, sem nenhum outro instrumento do que a própria vivência de fé, façamos a seguinte pergunta: que ensinamento principal, que verdade fundamental, que lição básica o texto bíblico passa para mim e para a comunidade à qual vou pregar? No silêncio, na solidão meditativa, na espera sem ansiedade ativista, deixemos que tal questão nos penetre e germine até que surja de dentro da experiência de fé uma intuição, uma ideia motriz.

 

2. A intuição nasce de uma matriz existencial. Avançamos a reflexão perguntando-nos pela experiência de fé subjacente à intuição. Mais: com que imagem conseguimos vesti-la para em seguida esgalhar-se em inúmeras alusões?

Vai um exemplo.

Leiamos o evangelho da fuga da Sagrada Família para o Egito. Imaginemos, que nos surja a intuição de que Jesus pequeno começa a história humana mergulhando no mais fundo da história de sofrimento de seu povo: a escravidão do Egito. Depois de compartilhar com seu povo essa história de sofrimento, ouve a voz do anjo: “Volta para Israel, a Terra onde manam leite e mel”. Aí está a intuição. E a partir dela abrem-se inúmeras analogias com os Egitos pessoais, comunitários, sociais, políticos e eclesiais que vivemos para ouvir o chamado: “Deixa tudo isso e vem para Israel!”. E Israel, por sua vez, permite a simbologia da libertação em todos esses níveis. E, em seguida, a referência à celebração litúrgica do memorial de Jesus, para que mergulhemos mais fundo ainda nesse mistério maior de nossa libertação. Assim se constrói uma homilia em torno de uma única intuição espiritual, inspirada pelo texto bíblico, relacionada com a celebração e com a vida dos fiéis.

Um outro exemplo, inspirado em E. Drewermann. Jesus cura o leproso, tocando-o (Mt 8,1-4). Para nós, atualmente, a doença nunca é só orgânica, traduzindo frequentemente uma falsa visão de mundo e de modo de viver. O leproso sofre da terrível ruptura que o penetra profundamente, ao excluí-lo do convívio humano. Ele pertence ao “mundo de fora”. É uma doença da pele, da exterioridade. E Jesus cura, tocando-o. A partir dessa intuição, constrói-se uma homilia original, diferente do óbvio das pregações sobre os milagres.

 

3. Esse tipo de homilia se baseia na conaturalidade com o texto a partir da intuição espiritual, existencial, ao lado da sensibilidade social e vivência litúrgica. Supõe do pregador nível mais elevado de espiritualidade, vida de oração e contemplação, acostumado às moções e luzes nascidas no seu interior. Conjuga mais intimamente a dimensão intelectual — intuição — com a afetiva — percepção existencial e interior. A densidade da pregação atinge mais as pessoas porque surge da vida e se dirige à vida. Apreciam-na as pessoas mais profundas e espirituais, já que sintonizam no Espírito com a experiência transmitida.

 

4. Um percurso mais longo, que não se opõe ao anterior, antes o enriquece e até mesmo o provoca, consiste em trabalhar o texto bíblico com o triângulo hermenêutico: texto, contexto e pré-texto.

 

5. A aproximação ao texto se faz por meio de um aprofundamento com os recursos das ciências bíblicas. Existem à disposição do pregador inúmeras publicações, desde livros de exegese e leitura bíblica até subsídios preparados por exegetas em revistas ou folhetos bíblicos. Uma leitura atenta permite captar o significado do texto em sua complexidade e riqueza. Trabalho nitidamente intelectual. Supõe que se vá realmente ao texto na busca de sua compreensão. Os exegetas desen­olveram verdadeira ciência hermenêutica. Não se tratando de nenhum estudo científico, a homilia necessita simplesmente de alguns marcos gerais importantes para facilitar a compreensão do fiel e assim evitar barbaridades interpretativas.

 

6. O primeiro cuidado do pregador é evitar que uma intelecção literal do texto gere uma imagem de Deus incompatível com o conjunto da revelação. Certos textos passam, à primeira vista, a ideia de um Deus vingativo, cheio de humor, que protege uns e castiga outros, que deixa modificar seu plano pela insistência do pedinte, que age pontual e arbitrariamente sobre a história, que manda Israel matar os adversários indiscriminadamente. Existe uma mentalidade religiosa mágica de Deus. E, se a homilia não for perspicaz, termina por reforçá-la ainda mais.

 

7. A revelação é um todo dentro do qual se entende cada texto. Nem todos os momentos e passagens têm a mesma clareza. Assim a cena da ocupação da Palestina por Israel, em que Deus ordena verdadeiro genocídio, não pode ser entendida nela mesma, mas como um momento que reflete a rudeza da compreensão do povo daquele tempo. Jesus vai mostrar um Deus que ama os estrangeiros, ao repreender os discípulos que queriam pedir fogo do céu contra os samaritanos. “Vós não sabeis de que espírito sois!” (Lc 9,55). A primeira passagem do Antigo Testamento só pode ser entendida a partir dessa do Novo Testamento. É o mesmo Deus, só que um é revelado pela bronquice da mente judaica antiga, e o outro pelo Filho Jesus.

 

8. A homilia não pode desconhecer a diferença de gênero literário. É algo que qualquer pessoa entende. Na experiência diária distinguimos muito bem a descrição de um acidente de automóvel e uma história ou caso pitoresco. O nível de veracidade histórica não é o mesmo. Isso vale para a Escritura. Quando Jesus fala de “fogo e ranger de dentes” do inferno, não faz uma descrição; portanto, não afirma a existência de fogo. Não se trata disso, mas de uma admoestação. E para admoestar recorremos, na linguagem humana, a uma série de imagens condizentes com a cultura e a idade das pessoas. Quando a mãe admoesta o filhinho para não sair à rua sozinho, ela veste a afirmação com imagens e lendas que vão até figuras mitológicas. Não é nenhuma descrição, mas advertência.

Os milagres de Jesus merecem muita atenção para não se reforçar a ideia milagreira popular e incentivar a busca de milagres em vez de se perceber o significado da proximidade do Reino de Deus.

A distância cultural, a diferença das linguagens e das línguas com seu gênero próprio, os problemas da comunidade a que os textos bíblicos foram dirigidos devem ser explicitados toda vez que se torne necessário para não interpretar falsamente a passagem bíblica. Não é questão de erudição, mas de respeito à Palavra de Deus que foi falada em dado momento cultural bem definido, sem o qual ela não é entendida.

 

9. Em se tratando dos Evangelhos, especialmente dos sinópticos, o estudo comparativo da perícope permite descobrir pormenores reais e simbólicos expressivos. Ler o texto numa sinopse faz-nos perceber a originalidade de cada um dos evangelistas e descobrir o toque pessoal que deu, ampliando o significado. À guisa de exemplo, as bem-aventuranças em Mateus são proclamadas na montanha e em Lucas na planície. Só esse pormenor já é significativo. E assim, pouco a pouco, aguçamos a observação do texto, enriquecendo-lhe a compreensão pela simples constatação das diferenças sinópticas.

10. Cada perícope se situa dentro do conjunto de um livro bíblico. Já vimos que a revelação faz um todo e que nenhuma passagem pode ser entendida por ela mesma. As barbaridades que se ouvem em pregações de pastores despreparados vêm especialmente da concepção verbalista da Escritura, como se fosse um ditado de Deus e cada palavra e frase fosse um tijolo completo, e não uma parte da parede. Tal reflexão vale em miniatura para um determinado livro, especialmente os Evangelhos. Assim o texto da homilia dominical é tirado de um dos quatro Evangelhos. Em que lugar do Evangelho tal texto se situa? Sabê-lo é fundamental.

Vai uma dica prática. Tomemos uma boa tradução e copiemos numa folha o esquema do Evangelho proposto pelo tradutor. E assim dos quatro Evangelhos. Tenhamos essas folhas constantemente sob os olhos. Pouco a pouco assimilaremos a estrutura dos Evangelhos. E, quando formos pregar, olhemos em que lugar se situa a perícope em questão, reparando bem o que vem antes imediata e mediatamente e o que vem depois imediata e mediatamente. Só o fato de situar no contexto amplo do Evangelho o pequeno texto dominical já nos sugere relações criativas. Assim, quanto mais conhecermos o texto lá na sua origem, tanto mais possibilidade teremos de interpretá-lo para dentro de nosso contexto e pré-texto.

 

11. Depois dessa aproximação ao texto, segue-se o momento fundamental da interpretação para a comunidade a que se dirige. É o contexto de fé. Não se prega uma verdade em si, abstrata, por ela mesma, mas em vista do bem da comunidade. A homilia visa primeiramente a introduzir os fiéis no mistério da Palavra lida e celebrada a fim de viverem melhor a fé. Ajuda muito o pregador, ao olhar para os fiéis, pensar: que posso dizer que sirva espiritualmente aos fiéis presentes? Um psicanalista comentava, certa vez, a diferença entre dois pregadores. Um estava muito preocupado com o que ia dizer. Preparava-se bem, armava sua pregação com palavras e frases bem-feitas. E, quando falava, gerava uma distância entre ele e os fiéis. Não os atingia. Estava muito autocentrado, preocupado, no fundo, consigo mesmo. Outro, por sua vez, preparava-se bem, sim. Mas, quando ia falar, olhava fundo para as pessoas e dizia-se: que vou pregar para animá-las na vida, na fé? Era outra coisa. Aqui está um segredo fundamental da pregação. É uma questão de interioridade, de subjetividade, de intencionalidade para o outro que se extravasa na pregação. E quando falta, tem-se a impressão de um “bronze que soa”, mesmo que seja um sino de muito valor.

 

12. O pré-texto completa o passo anterior. Pré-texto significa a situação social e cultural que se está vivendo. Quanto mais o pregador capta o momento de vida da comunidade, tanto mais percuciente é sua pregação. Não se trata de nenhum moralismo barato, fácil e que não requer preparação. Muita pregação se perde nesse matagal horroroso de vituperações dos vícios presentes. Antes é uma questão de sensibilidade cultural e social, captando em profundidade as correntes que atravessam a hora atual. Consiste em ir mais fundo do que a simples aparência dos acontecimentos, dos fatos, a modo de Jornal Nacional, para descobrir os vetores culturais e sociais predominantes. Eles movem os fatos, dão-lhes explicação. Numa palavra, é questão de ir além de uma análise conjuntural para atingir o nível estrutural das realidades mais constantes e consistentes.

Temas como droga e violência pedem análises mais profundas do que simples constatação ou indignação contra ações violentas eventualmente acontecidas no seio da comunidade. A análise desmascara uma cultura do vazio, uma substituição crescente do ser pelo aparecer, uma exterioridade midiática que constrói personagens de espuma. E, avançando mais, o vazio e sem sentido pergunta pela estrutura mais profunda do ser humano, como ser-desejo, ser-busca, ser-transcendente. Quando a homilia consegue revelar a pessoa a ela mesma e aí dentro colocar a palavra de Deus e ligá-la ao mistério celebrado, alcançou uma de suas mais importantes finalidades.

 

13. Não somos donos totais de nossa interioridade. Esta jaz em profundidade que não atingimos facilmente no cotidiano. Permanecemos frequentemente no nível das ações, das causalidades externas. Isso vale para o pregador como para qualquer pessoa. Se ele vai direto à homilia, sua pregação revelará essa camada superficial de seu eu. Por isso, ajuda muito alongar o tempo de pre­paração. Não se trata de quantidade material de tempo, mas de deixar que o tema da homilia, antes de ser proferido, penetre. Nesse sentido, ajuda ler o texto com antecedência até de dias e ir ruminando-o até que atinja camadas abissais do inconsciente. A meditação sobre o texto diante de Deus, com o olhar voltado para a comunidade, tem enorme força maiêutica, isto é, de arrancar do profundo de nosso ser considerações e reflexões que ultrapassem o óbvio e a banalidade do cotidiano ou o cientismo pedante do acadêmico.

 

14. Cabe recordar, na condução de uma reflexão bíblica e homilia, a distinção entre o significado central da perícope, a “ponta” da parábola e uma interpretação alegórica. A homilia visa, em primeiro lugar, a mostrar esse núcleo central do texto bíblico. Seguindo os exemplos dos padres e sobretudo dos medievais, uma leitura alegórica, desde que sensata e sem extravagâncias ou distorções, serve para despertar a piedade e a interiorização do mistério que se celebra — finalidade principal da homilia. Ela multiplica os significados, decompõe os símbolos e a parábola em partes e atribui-lhes um significado. Uma parábola contém numerosos pormenores que, de si, a enfeitam e conduzem-na ao sentido principal. No entanto, pode-se trabalhá-los separadamente, desde que não impeçam a compreensão do seu todo.

 

15. No final da homilia, os fiéis, embora tenham entrado sem inteligência e de coração lento para crer, depois que se lhes explicaram as Escrituras, deveriam poder dizer como os discípulos de Emaús: “Não nos ardia o coração quando pelo caminho nos falava e explicava as Escrituras?” (Lc 24,32).

 

 

Pe. João Batista Libanio