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Publicado em número 139 - (pp. 2-9)

A identidade do negro

Por D. José Maria Pires

Mal me entendi por gente e “já sabia” que não é bom ser Negro. Aprendi essa “verdade” em família. O que se dizia e o que se fazia com relação ao Negro era em tom de brincadeira, sem azedume, sem agressividade, sorrindo. Mas… se dizia e se fazia. Meu pai tinha traços de português, descendente que era dos Pires de Oliveira. Em minha mãe predominava a linhagem africana com sinais de mestiçagem causada pela entrada do elemento cigano duas ou três gerações antes. E nós todos, os cinco filhos, herdamos as características da mãe negra exceto na cor da pele: cabelos crespos, nariz achatado, lábios grossos. Aprendi desde cedo que nosso cabelo é ruim porque é grosso e enrolado; o do branco é bom porque é liso e fino; nosso nariz é feio porque é chato e o do branco é bom porque é afilado; nossos lábios são horrorosos e pesam quilo e meio enquanto os lábios do branco são tão delicados. Meu irmão mais velho gostava de dizer a papai que ele, casando-se com minha mãe, piorou a raça em vez de melhorá-la. Por coincidência, os meus quatro irmãos, dois homens e duas mulheres, casaram-se todos com brancos. Na escola primária e no seminário, branco era sempre tido como melhor do que preto. Mesmo que o preto demonstrasse a mesma capacidade intelectual e, por vezes, até ultrapassasse o branco nos estudos… preto enquanto preto era considerado de raça inferior ao branco. Exceções havia nessa inconsciente discriminação, mas eram exceções. O barbeiro discriminava os Negros pois só usava em nossa cabeça a máquina um ou zero. Para os brancos ele trazia navalha e tesoura. Um velho e piedoso empregado da casa, o Sebastião, que rezava muito pelas vocações sacerdotais, me dizia: “Dê graças a Deus por você ser preto e feio; isso é bom para quem quer ser padre”.

 

1. Origem do preconceito

A pretensa inferioridade do Negro, entre nós, tem sua primeira explicação no fato da escravidão. Reduzidos ao cativeiro em terras de África e vendidos como escravos aos comerciantes que se dedicavam ao tráfico negreiro, para aqui foram trazidos nossos antepassados e tratados como coisas, peças a serem comercializadas em praça pública. Comprados como se adquire um animal de serviço, tornavam-se propriedade do senhor que, sem nenhuma obrigação para com seus escravos, lhes explorava a força de trabalho até mais não poderem. Sem lar que não fosse a desconfortável e promíscua senzala, sem vida de família, sem possibilidades de estudo e devendo acatar com docilidade as ordens e os caprichos de seus senhores, o Negro tinha que parecer mesmo um ser inferior. Para sobreviver era bom que não aparecesse sua inteligência e a grandeza de sua alma a não ser em casos excepcionais que a História se encarregou de registrar. O Negro, em geral, devia ser tido como inferior ao branco. Isso legitimava sua submissão e tranquilizava as consciências mais delicadas: afinal, seres inferiores podiam ser reduzidos à servidão.

 

2. Submissão do Negro

Como o animal que se deixa domesticar e aceita a carga, o Negro se submeteu. Mais do que o animal que não transmite a domesticidade aos descendentes, o Negro fez da submissão uma das marcas de seu ser e a transmitiu a seus filhos. Aparentemente, pelo menos. Porque se poderia alegar contra essa afirmação da docilidade do Negro o exemplo dos quilombos tão numerosos, formando comunidades de Negros que conseguiram fugir do cativeiro; se poderia lembrar o fato várias vezes repetido de Negros que planejaram e executaram a morte de seus senhores; se poderia evocar os milhares de Negros que se mataram ou se deixaram morrer de banzo. A maioria, porém, conseguiu adaptar-se à nova condição mesmo a preço da própria dignidade. Para permanecer vivos renunciaram ao direito de ser livres. Essa opção foi certa. Permitiu salvar o que era salvável: a vida. Enquanto se tem vida permanece a esperança de recuperar os valores perdidos. O sacrifício da vida só tem sentido enquanto testemunho em defesa da própria vida. É o caso dos que tombaram na luta pela libertação. É o caso dos que se deixaram matar em sinal de protesto contra tudo o que fere a vida e os direitos da pessoa humana.

 

 

3. Consequências da submissão do Negro

Perda da identidade

A opção de viver, ainda que privado da liberdade e ferido na sua dignidade, trouxe consequências muito sérias para o Negro cativo. Antes de mais nada ele teve que renunciar à sua identidade: deixar de reconhecer-se como pessoa, sujeito de direitos. O Negro cativo não tem direitos, só tem deveres. Seu senhor, ao invés, não tem obrigações em relação a ele: só tem direitos. O senhor nunca erra em relação a seu escravo, está sempre com a razão. Tudo o que ele fizer em favor do escravo é gesto de pura bondade, e não dever de justiça. Esses “princípios” eram ensinados com a palavra, com a palmatória, com o chicote, com o tronco e com o pelourinho. O Negro “aprendeu” a lição e a foi ensinando aos filhos: “Negro é inferior, Negro tem que obedecer a branco”.

 

Negação da identidade

“Consciente” de sua inferioridade em relação ao branco, o Negro passou a não querer mais sua identidade. Ficou com vergonha de ser Negro e procurou esconder ou disfarçar sua negritude. Negro falou mal de Negro. Negro denunciou, caçou e prendeu Negro. Negro se colocou a serviço de branco contra Negro. E Negro começou a querer parecer-se com branco: espichou os cabelos, pintou o rosto, mudou os trajes e passou a imitar em tudo o branco, tornando-se assim “Negro de alma branca”. Desse modo foi possível chegar à “democracia racial”: o Negro reconheceu o seu lugar. Reconhecendo o seu lugar e procurando aproximar-se docilmente do branco, ele se convencerá sempre mais de que “Negro é feio, de cabelo ruim, negro é sem inteligência, sem caráter, preguiçoso, mentiroso, desordeiro e beberrão”. Aproximando-se do modo de ser e agir do branco, ele poderá subir na vida e um dia, quem sabe, se poderá dizer dele o que foi dito a meu respeito: “Ele pode já ter sido Negro; hoje não é mais”…

 

4. Igreja e Estado na causa do Negro

Tudo isso é realidade experimentada no dia a dia do Negro comum. A discriminação é um fato presente em todos os segmentos da sociedade brasileira. A discriminação só tem sido superada à medida que pessoas e entidades tomam consciência de sua existência e extensão, e iniciam um processo deliberado de combate a ela. Historicamente tanto a Igreja Católica como o Estado Brasileiro têm sua parte de responsabilidade na discriminação preconceituosa contra o Negro.

 

5. “Pecados” da Igreja contra os Negros

Conivência com a escravidão

Com a palavra o abolicionista Joaquim Nabuco: “Entre nós o movimento abolicionista nada deve, infelizmente, à Igreja… Nenhum padre jamais tentou impedir um leilão de escravos nem condenou o regime religioso das senzalas” (citado em História da Igreja no Brasil, Vozes, tomo 2, p. 263). No contexto socioeconômico do Brasil-Colônia, parecia não haver outro caminho para os objetivos de Portugal a não ser o da escravidão. “Sem negros não há Pernambuco”, escreveu o Pe. Antônio Vieira. Os mesmos missionários que não admitiam a escravidão dos indígenas, mostravam-se complacentes diante da escravidão negra. Mais do que complacentes, consideravam-na necessária e legítima. Bispos e padres, colégios e conventos, tinham numerosos escravos. Moralistas e pregadores justificaram a escravidão. E não faltaram documentos do Magistério Supremo autorizando os reis cristãos de Portugal e Espanha a reduzir pagãos ao cativeiro perpétuo. “A abolição teria sido obra de outro alcance moral — escreve ainda Nabuco — se tivesse sido feita do altar, pregada do púlpito, prosseguida de geração em geração pelo clero e pelos educadores de consciência” (op. cit., p. 263). Essa conivência da Igreja com o instituto da escravidão a impediu de superar o preconceito racial. Por muito tempo, mesmo após a abolição, a instituição eclesiástica se comportou como se o Negro fosse realmente inferior. Os seminários estavam praticamente fechados para os descendentes de africanos. Mais ainda os institutos religiosos. Em suas constituições havia proibição expressa de admitir Negros. Essas determinações, sobretudo em algumas congregações femininas, vigoraram até os dias da realização do Concílio Vaticano II. Isso explica o número tão reduzido de Negros no clero e na vida religiosa, apesar da elevada proporção de afro-brasileiros fiéis seguidores da Igreja.

 

 

Menosprezo pela cultura afro

A pretensa inferioridade do Negro, e a suposta menor aptidão para o clero e a vida religiosa, trazem como consequência o descrédito para tudo que procede de sua cultura, principalmente a expressão religiosa. Desde o início a religiosidade do Negro foi proibida de manifestar-se sob suas formas originais. Foram-lhe impostas as formas europeias. E era exatamente pela religião que começava o iníquo processo de destruição da identidade do Negro. Logo ao desembarcar em terras brasileiras, aparecia um sacerdote para “batizá-lo” e dar-lhe um “nome Cristão”. Seu nome de origem, sempre cheio de significado e carregado de densidade afetiva, não valia mais nada nem devia ser pronunciado. Não importava que o novo nome fosse desprovido de qualquer sentido para ele: importava que fosse um nome cristão e que tivesse sentido para quem foi ao mercado comprá-lo como escravo. Se até agora ele era Khumalo poderá chamar-se Joaquim, se Smangaliso será batizado pelo nome de Anastácio, Antônio seria uma boa opção para quem sempre se chamou Souleymane etc. etc. O nome identifica a pessoa. Desrespeitar o nome de alguém é desrespeitar e ofender gravemente quem responde por aquele nome. Apagar o nome é como destruir a pessoa. Foi pela perda do nome próprio que o sistema começou a expressar para o Negro que ele não era mais pessoa, não tinha mais direitos; por isso perdera seu nome próprio e recebera um nome comum, que não tinha significação para ele: o Negro não era mais ele mesmo, não tinha identidade.

 

Imposição de outra cultura

Juntamente com a substituição de um nome “pagão” por nome “cristão”’ vem a imposição de uma nova religião. Não era o Evangelho que se lhe apresentava. O Evangelho não se impõe, se propõe. O que lhe era oferecido sem alternativa era a maneira como a cultura europeia expressava o cristianismo. Não se admitia outra maneira. Era como se a Palavra de Deus não pudesse encarnar-se em nenhuma outra cultura. Isso significava que as expressões religiosas dos Negros trazidos para aqui como escravos eram todas consideradas erradas e pecaminosas. A religião deles se confundia com a mais sórdida superstição. Em meu tempo de criança, éramos proibidos de ver um batuque porque “era pecado”. E até o ano de 1966, quando fui transferido para a Paraíba, os chamados cultos afro-brasileiros eram proibidos por lei. O então capelão da polícia narrava com entusiasmo suas numerosas façanhas noturnas de comandar grupos de soldados para “acabar” com um terreiro de xangô que funcionava clandestinamente.

 

Clandestinidade e sincretismo

E não havia outros caminhos para o Negro salvar o que era possível de sua identidade espiritual: ou entrar na clandestinidade religiosa ou recorrer ao sincretismo. Ou esconder-se nas trevas para praticar o culto ou esconder-se atrás dos símbolos cristãos, enganando os padres e os senhores. As duas opções tiveram seus adeptos no tempo do cativeiro e após a abolição. A primeira, a clandestinidade, tornou-se desnecessária desde que a Lei deixou de proscrever a “religião dos orixás” e a polícia desistiu de “fechar” terreiros.

O sincretismo, ao invés, passou a constituir uma espécie de nova identidade religiosa para milhões de Negros brasileiros. Assim, Nossa Senhora da Conceição é Iemanjá, mas é também Nossa Senhora da Conceição; São Jorge (ou Santo Antônio) é Ogum, mas é também São Jorge. Igualmente para Iansã, que é Santa Bárbara, e São Lázaro, que é Omolu. Já o Senhor do Bonfim é o bom Oxalá. As duas expressões convivem tranquilamente na cabeça e no coração desses milhões de Negros. Eles ficam surpresos e tristes quando percebem que os padres não entendem assim e não os aceitam com as duas expressões religiosas. Julgam que podem perfeitamente praticar tanto o catolicismo como a religião dos Orixás.

Por insistente solicitação do saudoso Cardeal Dom Avelar Brandão Vilela, fui a Salvador participar de um encontro com representantes dos cultos afro-brasileiros. Estavam presentes algumas mães de santo, outros membros ativos de terreiros e agentes de pastoral. As mães de santo — por sinal todas elas gente simples e humilde — queixavam-se amargamente dos padres que desprezavam a religião delas e as injuriavam com palavras descorteses. E explicavam: “No terreiro nós fazemos as obrigações. Depois devemos ir agradecer na igreja. Quando chegamos lá, o padre não nos deixa entrar para agradecer. É claro que esse agradecimento tem também sua expressão bem africana. A São Lázaro, por exemplo, se agradece oferecendo pipocas. Como não podem fazê-lo na igreja, fazem-no do lado de fora, expondo a oferta à “profanação” dos que não creem. O mais surpreendente, porém, foi saber, naquele encontro, que mais de um agente de pastoral é fervoroso militante na Igreja e, simultaneamente, devoto iniciado no terreiro da “mãe Tal”! E não vê nisso nenhum mal. Um deles chegou a confidenciar: “Já faz quatro anos que sou iniciado, e até hoje não encontrei nada na religião dos Orixás que seja incompatível com minha fé cristã e com a minha fidelidade ao Evangelho”.

 

6. “Pecados” da sociedade brasileira contra os Negros

Quebrou as resistências

O ateísmo militante fez enormes estragos na humanidade, mas não conseguiu apagar do coração do homem a imagem de Deus nem a consciência de sua presença. Do mesmo modo a imposição de outra cultura religiosa quebrou as resistências de muitos Negros, mas não foi suficiente para fazer desaparecer os traços mais marcantes da identidade religiosa afro-brasileira. E, ao que parece, foi exatamente a força aglutinadora e sublimadora da religião que permitiu a grande número de Negros permanecer eles mesmos apesar do rolo compressor da sociedade civil brasileira. Essa sociedade tinha um esquema perverso para dobrar as resistências interiores do Negro reduzido ao cativeiro. A primeira providência consistia em separá-lo de quem pudesse dar-lhe qualquer apoio afetivo: língua, família, tribo. Pais eram separados de seus filhos, maridos de suas mulheres, membros de uma tribo deviam ir viver e trabalhar com escravos de outra tribo e língua. A insegurança era total. A isso se juntavam os castigos humilhantes para tornar “dóceis” os escravos.

 

Defender o lucro

Aquilo que, mais tarde, pareceu gesto humanitário, não tinha como finalidade minorar os sofrimentos dos escravos, mas diminuir as despesas dos senhores ou desobrigá-los de responsabilidade financeira por escravos que já não produziam o bastante. A Lei do Sexagenário foi isso. Um escravo, quando chegava aos 60 anos, não tinha mais condições físicas de trabalhar. Torna-se um peso econômico ao invés de gerar lucro. A Lei o Sexagenário obrigava o senhor a dar-lhe carta de alforria, mas ao mesmo tempo o senhor não tinha mais obrigação de sustentar e vestir o escravo alforriado: livrou-se de um peso e apareceu como generoso. O velho Negro forro estava condenado a passar o restante da vida na dependência da caridade pública.

A Lei do Ventre Livre foi isso. Até então, filho de escrava era escravo, ainda que o “pai” fosse livre. Mas o investimento na criação do filho de escrava demorava muitos anos para começar a dar retorno. Começou-se a verificar que, no estágio que a sociedade colonial havia atingido, ficava mais barato contratar mão de obra assalariada do que manter uma criança e esperar que tivesse condições de produzir. Com a Lei do Ventre Livre, o senhor ganhava de dois lados: não precisava gastar com a criação do filho da escrava e podia exigir mais da escrava, uma vez que o filho dela não era mais pertença do senhor dela. Desse modo a Lei do Ventre Livre fez mais órfãos abandonados do que futuros cidadãos. E a tão decantada Lei Áurea não foi outra coisa. No final do século 19 já era bem reduzido o número de escravos. Desde que o tráfico negreiro foi proibido por lei, tornou-se dispendioso adquirir escravos novos, que só entravam no país por contrabando. Os escravos remanescentes caíam cada vez mais em produtividade. Tudo pesado, ficava mais barato pagar salário do que manter escravos. A abolição da escravatura era medida politicamente simpática frente aos outros países, e economicamente vantajosa. O Negro não ganharia casa para morar, não teria terras para trabalhar, não receberia aposentadoria, pensão ou indenização pelo tempo de serviço, não teria nada, mas teria a liberdade! As terras e os incentivos seriam para as famílias de imigrantes vindas da Europa. Para os Negros, nada! Só a liberdade outorgada pela Lei Áurea. E viva a Princesa Isabel, a Redentora!

Esse é um terrível pecado da sociedade brasileira. Ela impediu e continua impedindo o Negro de ser ele mesmo, de recuperar sua identidade. Essa injustiça clamorosa fez do Negro forro um marginalizado social, salvas as poucas exceções dos que conseguiram “remar contra a corrente”.

 

Ideologia do branqueamento

Como se não bastassem essas atitudes pecaminosas, cria-se nova arma contra os Negros. Começa-se a lamentar que o Brasil tenha sé tornado muito escuro com a vinda de tantos milhões de escravos africanos. É necessário clareá-lo de norte a sul porque “nossa etnia é portuguesa”, e nosso tipo deve aproximar-se do europeu, considerado superior aos demais. É a ideologia do branqueamento. Branco é melhor, branco é mais bonito, branco é superior. Das três culturas que entram na formação de nossa nacionalidade, só a branca é destacada e só ela é promovida oficialmente. O que vem de índio é selvagem, o que procede de Negro é atrasado, só o que é branco é civilizado. O Negro deve ajustar-se aos padrões dos brancos. Especialmente a mulher negra é induzida a submeter-se à moda das mulheres brancas. Para isso estica os cabelos e procura disfarçar todas as características africanas.

 

A presença do racismo

Os meios de comunicação social, especialmente a televisão, quase só apresentam o branco. Negro em destaque é exceção. Lugar social do Negro é ser porteiro, faxineiro, doméstico ou criminoso. A ideologia do branqueamento mostra-se evidente na pirâmide social: os Negros, numerosíssimos na base, vão desaparecendo à medida que nos aproximamos do vértice. Essa ideologia mostra-se também no linguajar comum: quando uma publicidade anuncia: “Precisa-se de pessoas de boa aparência” já se sabe que o Negro está sendo excluído. Nos livros religiosos se diz que a graça é branca e o pecado é negro. Deus só é imaginado como branco, os anjos também. Os padres e as freiras que aparecem nas ilustrações dos catecismos e livros de administração dos sacramentos são invariavelmente padres e freiras brancos. E, para significar “a brancura da alma”, se coloca sobre o batizado uma veste branca. O que é mau, desagradável, difícil, se identifica com o negro e se expressa pela cor negra. Por isso, se diz inconscientemente: “a coisa está preta”, “foram momentos negros em minha vida”. Quando, portanto, as normas oficiais do Governo brasileiro determinavam que “os imigrantes serão admitidos de conformidade com a necessidade de preservar e desenvolver o Brasil, na composição de sua ascendência europeia” (Decreto-Lei nº 7.967 de 18/9/1946) não fazia mais do que traduzir legalmente o preconceito racista bem arraigado na mentalidade brasileira e bem vivo ainda hoje. É na percepção crítica desse preconceito que se devem ler fatos históricos como o da Guerra do Paraguai, na qual foi envolvido e exterminado enorme contingente de Negros. Após a guerra, os Negros estavam reduzidos à metade no Brasil. Isso contribuiu para clarear o país. Não se trata de “humor negro”: foi humor branco. Com a mesma intenção, Rui Barbosa mandou apagar o Negro de nossa História, fazendo queimar a documentação referente ao tráfico negreiro, à quantidade de Negros trazidos como escravos para o Brasil, e o preço de cada um no mercado da época. Para nós, Negros, tornou-se quase impossível reconstituir a história e reencontrar nossas raízes: destruíram os documentos de nossa identidade. A decantada “democracia racial” no Brasil só existe à custa da eliminação, de toda forma de organização e reivindicação por parte dos Negros que devem reconhecer seu lugar e não tentar sair dele.

 

7. Eu ouvi o clamor do meu povo (Ex 3,7)

Os quilombos

Bem que a Igreja católica poderia ter sido a primeira voz e a primeira mediação na denúncia e no combate à escravidão negra. Não o foi pelos motivos anteriormente enunciados. Diante de uma escravidão mais dura que a dos hebreus no Egito, a presença do Deus libertador não se mostrou na Igreja, mas nos quilombos. Eles foram o sinal que a Igreja não soube ler. Os quilombos eram comunidades formadas por Negros que conseguiam fugir do cativeiro, comunidades abertas a índios perseguidos e também a brancos que concordassem em aceitar a lei do quilombo, a saber, a fraternidade, o trabalho, a solidariedade. Houve quilombos que chegaram a pedir a designação de um padre para assistir religiosamente os quilombos que o quisessem. Foi negado porque isso corresponderia a apoiar Negros rebeldes que se encontravam em pecado de revolta contra seus legítimos senhores (!). Os quilombos foram perseguidos e destruídos, mas hoje, à luz dos sinais dos tempos e da opção preferencial da Igreja pelos pobres, surgem como o testemunho de que Deus ouve o clamor do povo oprimido. No Egito, foi Moisés o profeta do Senhor. Entre nós, foi Zumbi dos Palmares e tantos outros que comandaram a resistência nas condições mais adversas. Se a Igreja tivesse então entrado a favor da causa dos Negros como hoje se empenha na defesa dos índios, canavieiros, camponeses, sem-terra, a história do Brasil teria tomado outro rumo. As vozes e movimentos em prol da abolição não nasceram na Igreja e não contaram com seu entusiasmo.

 

Tentativas de organização

Outro tanto sucedeu com os Negros que resolveram organizar-se e lutar contra a discriminação que continuou e permanece tantos anos depois da abolição oficial do cativeiro. Eles também não contaram com o apoio da instituição eclesiástica. Foram até acusados (e ainda o são) de estarem fomentando o racismo que, na visão desses acusadores, não existe entre nós. Quando a Igreja do Brasil se preparava para a Conferência Episcopal de Puebla, um grupo de Negros, supondo que eu fosse um dos Delegados do Episcopado Brasileiro à Conferência, dirigiu-me longa carta cheia de amarguras contra a Igreja. Ao final, afirmavam: “O senhor como Negro é nosso irmão, como bispo é nosso adversário”. Aceitei as duas atribuições, a primeira com alegria, a segunda com humildade.

 

A Igreja “se converte” ao Negro

A situação, porém, começou a modificar-se. A Igreja está deixando de ser adversária, de estar do lado oposto. Ela começa a posicionar-se do lado dos Negros como começou a posicionar-se do lado dos pobres. Antes, seu compromisso era com os pobres enquanto desvalidos. Faltava-lhe visão crítica da pobreza e, por isso, não percebia que o pobre entre nós só é desvalido porque é empobrecido. Igualmente o Negro foi despojado de tudo pela injustiça dos colonizadores. Essa injustiça continua exigindo não a comiseração, mas condigna reparação de perdas e danos.

A grande perda, o maior dano, foi o Negro perder sua identidade, ter vergonha de ser Negro, querer ser parecido com o branco. Alertada por João Paulo II sobre os mecanismos que… “produzem em nível internacional ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres” (Discurso inaugural de Puebla, 3.4), a Igreja da América Latina entendeu que não basta criar instrumentos de assistência e de promoção dos pobres; é urgente ajudá-los a se organizar em vista de uma transformação que procure inverter o sentido da tendência indicada pelo papa. Assim teríamos pobres cada vez menos pobres à custa de ricos cada vez menos ricos. Este sentido já fora eloquentemente proclamado pela Virgem Maria em seu hino de louvor ao Deus que “derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes; sacia de bens os famintos e despede os ricos sem nada”.

 

Primeiros encontros

Logo depois de Puebla, a Igreja do Brasil começa a abrir espaço para seus Agentes de Pastoral Negros. Para eles promove um primeiro encontro em Capão Redondo, São Paulo. A principal questão colocada foi esta: “Você, Agente de Pastoral Negro, como se sente na Igreja e na sociedade?” A partir do segundo encontro, realizado em Brasília, os próprios Negros assumiram a responsabilidade total de seus encontros. A CNBB continuava, entretanto, disposta a dar cobertura logística que lhe fosse solicitada. Entrementes a CNBB ia promovendo, através de sua linha missionária, outros encontros de reflexão sobre negritude, para os quais eram convidados teólogos e pastoralistas brancos e negros.

 

União e consciência Negra

O grupo que teve seu início de caminhada no encontro de Capão Redondo passou a denominar-se Grupo de União e Consciência Negra. Ele se desenvolveu e criou seções em diversos Estados do Brasil. Duas “aberturas” foram logo adotadas: O Grupo não seria apenas de Agentes de Pastoral Negros e não seria confessional. O denominador comum seria a negritude. Condição para qualquer Negro pertencer ao Grupo seria sua capacidade de dialogar, isto é, não ser radical, respeitar o direito de o outro ser e manifestar-se diferente. Foi certamente um grande passo que permitiu levar aos Negros do meio popular uma reflexão que, até então, só se processava entre Negros de classe média, portadores de escolaridade de nível médio ou superior.

 

Os novos “quilombos”

Com o passar dos anos, os Agentes de Pastoral Negros sentiram necessidade de espaço que fosse aberto a todos os Negros, mas que fosse confessional, isto é, que abordasse a situação dos Negros à luz da fé e a aprofundasse na ótica da Palavra de Deus. Organizou-se, em consequência, um grupo de Agentes de Pastoral Negros (APN) em São Paulo, ao qual se deu o nome de Quilombo Central. A diversificação correspondia a nova necessidade surgida no percurso, e vinha enriquecer e fortalecer o movimento negro geral. Outros quilombos foram surgindo fora de São Paulo, e a esperança é que aos poucos todos os Agentes de Pastoral Negros, pertençam ao quilombo de sua área ou organizem um quilombo onde ainda não existe. Esses novos “quilombos” guardam dos primitivos a abertura, fraternidade e espírito organizativo, e têm de novo a preocupação de ajudar Igreja e sociedade a descobrirem e extirparem as raízes e manifestações do racismo, ainda tão fortes em nosso meio.

 

Campanha da Fraternidade 1988

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil assumiu conscientemente sua parte de responsabilidade na advertência de Puebla: “O problema dos escravos africanos não mereceu, infelizmente, a devida atenção evangelizadora e libertadora da Igreja”. O tema da Campanha da Fraternidade para o ano de 1988 é sinal desse desejo de reparar o passado criando condições para crescente integração do negro. Houve não pequenas dificuldades para a aceitação do tema “a Fraternidade e o Negro”. Mais difícil foi encontrar a forma adequada de tratá-lo. O texto-base passou por mais de dez redações, no esforço de se chegar a um consenso que, desta vez, não pode ser atingido. É possível que até mesmo essa inegável divergência entre nós contribua para tornar mais perceptíveis as manifestações de racismo que ainda existem na sociedade e na Igreja do Brasil, não por parte dos Negros, mas contra eles. Será ouvindo com atenção e simpatia o clamor desse povo, clamor impregnado de angústia e, por vezes, de indignação, que a Igreja contribuirá para que o Brasil vá se aproximando da chamada “democracia racial”. É uma meta que estamos longe de atingir. Caminhar em sua direção é preciso.

D. José Maria Pires