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Publicado em número 168 - (pp. 13-18)

A moradia e os cristãos

Por Pe. José Comblin

Introdução

A moradia, como todas as realidades humanas precisa ser entendida dentro de uma concepção escatológica do mundo. A vida humana é caminhada e peregrinação. No cristianismo esse caráter de movimento, caminhada, provisoriedade, foi muito desenvolvido.

Na Bíblia, por um lado, há uma insistência muito forte na aspiração do povo de Deus para conquistar uma residência permanente. Mas, ao mesmo tempo, esse mesmo povo é chamado a deixar a sua residência. Toda residência é provisória e o povo de Deus é chamado a retomar seu caminho e, sempre de novo, voltar a andar.

Abraão foi forçado a deixar a sua casa. Deus prometeu-lhe uma terra onde morar. De fato, Deus deu a seus descendentes a terra de Canaã. Mesmo assim, o povo teve que recomeçar a caminhada. Teve que voltar para o deserto: foi para o cativeiro e se dispersou na diáspora.

Sempre se renovam as promessas de uma morada fixa e definitiva, mas sempre volta a necessidade de deixar a sua casa, de não se incrustar e não se apegar a ela.

Jesus renova as promessas de uma morada definitiva junto com ele na casa do seu Pai, onde há muitas moradas (Jo 14,2). Mas antes de chegar lá, os discípulos terão que andar muito: “Caminhai enquanto tendes luz” (Jo 12,35).

O próprio Jesus aparece como um profeta que vai andando e não para nunca. Os evangelhos mostram-no caminhando sem cessar. Ele próprio expressou a sua condição num dito muito radical: “As raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20).

Por isso não é de estranhar que ele peça aos discípulos que deixem “casa, irmãos e irmãs, mãe, filhos e terras” por sua causa (Mc 10,29). Ele não pediu nada mais do que aquilo mesmo que exigiu de si próprio.

Os primeiros cristãos foram escolhidos entre os peregrinos, aqueles que não têm morada permanente, que são migrantes. A primeira epístola de são Pedro exalta essa condição de pessoas sem residência permanente nesta terra. Nessa carta não se trata de uma condição de itinerante puramente espiritual, de pessoas que vivem caminhando espiritualmente para o céu, porque de alguma maneira já não se sentiram mais desta terra. Mostra que se trata de pessoas expulsas de sua pátria por qualquer tipo de necessidade e que estão de certo modo acampando nas cidades romanas. Naquela época as cidades estavam cheias de tais refugiados que procediam do campo ou de regiões afastadas e não tinham os direitos de cidadania[1].

Esses primeiros cristãos realizavam o modelo itinerante, provisório e precário de viver que Jesus tinha escolhido por vocação e tinha proposto aos discípulos, impondo-o de certo modo aos apóstolos.

Os escritos mais antigos mostram, como na Didaqué, que houve muitos profetas itinerantes nos primeiros tempos, sobretudo nas regiões da Palestina e da Síria. Formaram e animaram o que alguns chamaram “movimento de Jesus”[2].

Cada vez que se renovou na Igreja o espírito missionário, reapareceu o modelo de homens e às vezes mulheres percorrendo estradas e rios, cruzando montanhas e desertos à procura das ovelhas dispersas. Houve os missionários irlandeses e ingleses que evangelizaram os povos bárbaros. Vieram os missionários franciscanos e dominicanos que penetraram em todos os continentes quando os meios de viagem ainda eram muito precários.

O próprio são Francisco não aceitava que os irmãos tivessem casas. Ele viveu pelas estradas e campos, indo ao encontro das pessoas que esperavam sua palavra e, sobretudo, sua presença.

Mesmo quando monges ou ermitãos construíram para si humildes casas, quiseram que fossem as mais pobres possíveis. Suas moradias eram extremamente frágeis[3]. Tinham moradias, mas era quase como se não as tivessem.

 

2. Na cidade nova haverá casa para todos

Dessa rápida retrospectiva histórica não se pode concluir que a mensagem cristã não atribui valor à moradia, procurando desestimular os cristãos que quisessem trabalhar para construir ou melhorar sua habitação. Com muito menos razão poderíamos usar o argumento da Bíblia e da história cristã para consolar os desabrigados, ou pregar a paciência e a resignação aos que não têm casa, como se essa condição fosse um bem, uma imitação de Jesus, uma melhor participação no Reino de Deus. Muito pelo contrário.

Com efeito, os patriarcas e profetas desde Abraão até João Batista; Jesus e os apóstolos, desde os primeiros seguidores de Jesus até são Francisco; e os apóstolos modernos dos favelados e dos sem-teto, deixam suas casas partindo para a luta em vista da construção de uma sociedade melhor, na qual todos possam ter casa. Eles caminharam em direção à terra habitável para todos. Caminharam para a cidade de Deus, onde Jesus preparou uma morada para todos. Não se trata apenas da cidade celestial, mas aqui mesmo os discípulos vão construindo cidades terrestres, em que todas as pessoas tenham onde morar.

Jesus e os seus precursores e seguidores deixaram suas casas para preparar uma casa para todos; não para que doravante todos vivessem sem casa, como se esta condição fosse condição superior.

Deixar é um ato escatológico, isto é, um ato em vista de anunciar e preparar uma cidade nova em que haverá casa para todos. Eles não desprezam a casa, mas querem casa para todos. Deixam esta casa como sinal de denúncia e rejeição da sociedade no seu estado presente, em vista da preparação de outra sociedade em que a casa não seja sinal de discriminação e sim de fraternidade.

 

3. Testemunhar que a moradia é direito humano para todos

O problema da moradia nunca se colocou com tanta urgência como na época atual. A população atual é uma população migrante: bilhões de pessoas, a metade da humanidade, estão migrando do campo para a cidade numa geração. Na América Latina, a metade da população emigrou nos últimos 30 anos e outra grande parte do resto dos camponeses também se prepara para emigrar.

Ora, nas cidades, nada ou quase nada se faz para recebê-los. Os programas de construção de casas populares são irrisórios, praticamente nulos. Os novos moradores têm que resolver o problema da moradia por conta própria, sem ajuda, sem apoio, sem legalidade. Calcula-se que no Terceiro Mundo entre 70% e 95% das habitações construídas são ilegais, feitas sem autorização, por ocupação ilegal de terrenos e construção sem licença[4]. A sociedade mostra-se tão indiferente que os condena a viver fora da lei. A sociedade ignora-os.

No entanto a moradia é um direito humano, proclamou João XXIII na Pacem in Terris (nº 4). A moradia é uma tarefa gigantesca. Ela questiona em primeiro lugar toda a política urbana das sociedades e os princípios que constituem o modelo de sociedade da humanidade contemporânea.

A Igreja pode e deve levantar uma voz profética. Ela não terá credibilidade se os próprios cristãos não abrem o caminho, começando eles próprios a fazer os sacrifícios necessários e a experimentar uma nova forma de convivência humana que torne possível a solução do problema urbano da moradia.

De modo geral as pessoas que representam a Igreja gozam de condições privilegiadas de moradia. Dificilmente podem pedir sacrifícios ou poderiam contestar o modelo de sociedade que lhes é tão favorável. Aqui também o grande problema da evangelização é a falta de credibilidade. A doutrina social da Igreja será sem efeito se a Igreja não tem credibilidade. Para adquirir credibilidade, ela deve primeiro praticar o que ensina, e viver o evangelho que pretende anunciar.

Hoje em dia também, para que um dia todos tenham uma habitação digna, será necessário que os evangelizadores deixem a sua casa e aceitem viver em condições precárias.

Medellín já tinha dito algo semelhante. Depois de Medellín vários agentes de pastoral, mais religiosas do que religiosos ou sacerdotes, deixaram condições mais confortáveis de moradia para morar no meio das massas marginalizadas e abandonadas que vivem em condições precárias e realmente desumanas.

A mensagem cristã não despreza a moradia como se fosse uma realidade puramente material, indigna das preocupações humanas. Muito ao contrário, ela sabe quanto a moradia está ligada à vivência espiritual. Segue breve resumo dos sentidos da moradia que se manifestam à consciência humana e que o cristianismo reconhece, valoriza, promove e pretende realizar juntamente com todos os seres humanos de boa vontade, estimulada pela sua caminhada rumo ao Reino de Deus, que é uma cidade em que há morada para todos (Jo 14,2).

 

4. As funções da casa

4.1. Os seres vivos precisam de abrigo

A primeira função é a mais simples. Ela é compartilhada por todos os animais que vivem na superfície da terra. Todos os animais, e os seres humanos com eles, precisam de um abrigo para se proteger contra o calor e o frio, a chuva, a neve e o vento, e também contra as depredações de outros animais ou de outros seres humanos. Nas origens parece que a espécie humana encontrou refúgio em grutas e cavernas. As puras mãos humanas não ofereciam ferramentas necessárias para construir moradias. No entanto essas moradias preparadas pela natureza geralmente ofereciam poucas vantagens. Houve e ainda há exceções. Em algumas regiões ainda há habitantes de cavernas e grutas, mas se trata de condições excepcionais. Na medida em que os seres humanos descobriram na natureza objetos que podiam fornecer instrumentos de ação, procuraram melhorar as suas habitações.

Procuraram melhorar em dois sentidos: mais conforto e mais segurança. Melhor defesa contra invasores animais ou humanos, e melhor proteção contra as ameaças do clima. Os melhoramentos acompanham a evolução da cultura.

Ora, a moradia é um dos setores em que, desde as primeiras civilizações neolíticas, mais diferenciou a condição dos ricos e dos pobres, dos poderosos e dos dominados. A arqueologia quase nada nos diz das habitações dos pobres, porque estas eram tão frágeis que não resistiram às condições climáticas ou às destruições feitas pelos homens. Os estudos arqueológicos, ao invés, nos mostram muitos palácios antigos e residências dos reis ou das castas dominantes. Com o decorrer dos tempos a distância vai crescendo entre as vantagens que oferecem as residências dos grandes e o atraso das casas dos pequenos.

Hoje, novas tecnologias permitem aumentar quase sem limite o conforto e a segurança das residências dos privilegiados. Ora, essas tecnologias, como todas as tecnologias pós-modernas, são cada vez mais caras. As classes dominantes precisam reservar para as suas habitações uma porção cada vez mais importante dos recursos da nação. No Terceiro Mundo essa situação é ainda mais grave. Muitos recursos que deveriam ser orientados para o desenvolvimento de todos, são desviados para o consumo luxuoso das residências das castas superiores. Aí o escândalo é maior. A presença lado a lado, na mesma cidade, de bairros luxuosos e de zonas de favelas, cortiços, habitações populares precárias, constitui um contraste que clama ao céu. Ora, a miséria das áreas de favelas e cortiços deve-se justamente à existência dos bairros residenciais. Se estes não monopolizassem todos os recursos disponíveis da nação, seria possível realizar uma política de habitação para todos.

 

4.2. Guardar objetos

A segunda função da casa é guardar objetos. Os seres humanos necessitam de objetos e precisam guardá-los. O conselho dado por Jesus para viver como os lírios do campo e os passarinhos do céu que não guardam nada e vivem daquilo que Deus lhes dá cada dia, tem também um sentido escatológico. Para que um dia todos tenham o necessário é preciso que os profetas e apóstolos, anunciadores do Reino de Deus, deixem as suas seguranças, os seus celeiros, as suas reservas e arrisquem uma condição de insegurança. Não porque a insegurança seja melhor do que a segurança, mas porque é o preço da liberdade da Palavra para denunciar e anunciar. Quem levanta a voz, vê que outros lhe cortam todos os recursos, achando-se sem outra proteção a não ser aquela que Jesus dá aos seus apóstolos (mediante a ajuda dos outros discípulos também).

Os seres humanos precisam conservar primeiro o fogo. Durante milênios o fogo foi o objeto mais precioso, porque era difícil acender o fogo. Durante séculos, casa foi sinônimo de fogo. Na idade média contavam o número de fogos em cada povoado ou cidade. Hoje há novas técnicas que permitem dispensar essa função.

É preciso guardar também as ferramentas, as sementes, a produção a ser consumida mais tarde. Tudo isso antigamente se guardava nas casas. Hoje há outras maneiras de guardar as ferramentas e os alimentos. No entanto, àqueles objetos, outros mais sofisticados vieram juntar-se, ocupando lugares mais específicos em residências mais sofisticadas: objetos para cozinha, quarto de dormir, refeitório, banheiro etc. Aqui também a distância vai crescendo entre os objetos que se acham nas casas dos ricos e nas dos pobres. Com o desenvolvimento da cultura, os objetos possíveis aumentam sem cessar e os ricos precisam de muito espaço para colocar todos os objetos que acham necessários. Qualitativamente também o custo dos objetos dos ricos vai ficando cada vez mais distante do custo dos objetos dos pobres. O valor dos objetos que se acham numa casa burguesa pode ser mil, dez mil ou até cem mil vezes superior ao valor dos objetos que se acham nas casas dos favelados. A função de guardar pode ter realizações muito diferentes.

 

4.3. Localização da pessoa no espaço

A terceira função da casa consiste em situar a pessoa no espaço. Trata-se de uma segurança psicológica. Todo ser humano precisa situar-se no mundo. Esse mundo deve ter um centro a partir do qual o resto se organiza. Para cada pessoa, a sua casa é o centro geográfico do mundo. A partir da casa tudo recebe colocação e lugar: escola, fábrica, escritório, edifícios públicos, comércio, bancos, espaços de lazer, campos de esporte, e assim por diante. Da casa saem vários caminhos que levam a esses diferentes lugares. As distâncias são apreciadas a partir da casa. Um lugar fica perto ou longe, um bairro é distante ou vizinho, conforme a referência à casa. Claro está que nada fica perto ou longe no absoluto. No entanto, todos os lugares são vividos como estando perto ou longe. Cada um vai definindo dessa maneira um mundo familiar, conhecido. As crianças, sobretudo, precisam sentir-se no meio de um mundo bem organizado, em que cada coisa tem o seu lugar. Mas os adultos nunca se emancipam totalmente da criança.

A casa define também um espaço social: a partir da casa sabe-se quais são os vizinhos, as pessoas habitualmente situadas no mundo: comerciantes, distribuidores, carteiro… Hoje o espaço é muito menos definido porque o bairro se tornou mais impessoal: menos comércio local, serviços públicos mais afastados (policiais de carro); a mecanização afasta as pessoas e torna o espaço mais despersonalizado. O espaço burguês é mais despersonalizado ainda.

A casa está no meio de outras casas: ela define os vizinhos e abre contatos com os vizinhos. A casa pertence a um conjunto social típico, selecionando as relações sociais. Por conseguinte, a sua localização define uma cultura. A casa desenha também um espaço social. A casa vai formar os jovens porque ela estabelece muitas relações sociais.

Ora, a casa que pode abrir para os vizinhos, pode também fechar. No mundo cultural burguês, a casa serve mais para fechar do que para abrir. Os burgueses situam a sua residência de tal modo que possam evitar toda vizinhança. Nos grandes conjuntos, os habitantes dos apartamentos desconhecem os seus vizinhos. Os vizinhos nunca se visitam.

A moradia consolida as classes sociais. Por isso mesmo Jesus convida a deixar a casa quando esta cria apego a uma classe social, sobretudo a uma classe acomodada, porque ninguém se apega à pobreza. Às vezes é preciso livrar-se de um espaço que prende, para conquistar a liberdade indo ao encontro de outros e encontrando-os no seu espaço.

 

4.4. Vida privada

A quarta função da casa é a vida privada. A vida privada é uma conquista da cultura moderna ocidental. Ela tem aspectos positivos e negativos, mas há uma tendência universal para criar um espaço de vida privada, um espaço em que a pessoa pode estar livre dos olhares, da observação de outros, da intromissão de outras pessoas. A vida privada é a parte da vida em que a pessoa se recolhe na solidão ou na conversa com pessoas selecionadas.

A vida privada tem por primeiro objeto a sexualidade. Os casais tendem a certo isolamento. Outrora havia pouca conversa entre os casais, mas com a civilização moderna o intercâmbio entre os casais aumentou e estes procuraram cada vez mais tempos de isolamento. A casa é o lugar em que o casal se encontra a sós. E, na casa, o quarto ocupa lugar especial na vida do casal. O quarto do casal era novidade reservada à aristocracia até o século XVIII e à burguesia até o presente século, mas é o local cada vez mais buscado por todos hoje. Os casais sofrem quando não dispõem de um quarto somente para eles.

À medida que a cultura se desenvolve, cria novas exigências de privacidade: ela cria o desejo de um espaço isolado para pensar, refletir, ler, escrever, dedicar-se à arte, e também para conversar, informar-se, trocar impressões e experiências.

A vida privada tem também uma extensão religiosa. Durante milênios a vida religiosa dos povos foi antes de qualquer coisa pública e coletiva. Sempre houve almas místicas que viviam uma vida religiosa íntima e pessoal. Todavia, foram exceções até a Idade Moderna, quando começou a aparecer um número maior de pessoas alfabetizadas. Então estas quiseram fazer uma leitura pessoal da Bíblia, fazer leituras espirituais, exercícios de meditação ou oração pessoal. Tudo isso exige silêncio e solidão. Essas pessoas procuraram também nas suas casas um lugar de silêncio e recolhimento.

Na prática, poucas pessoas dispõem nas suas casas de um espaço de silêncio e de recolhimento. No entanto, há uma grande aspiração para uma religião mais personalizada, e este ponto de vista precisa ser também levado em conta na previsão das casas.

Jesus recomendou a oração feita no segredo da casa. No tempo de Jesus, embora as casas fossem muito simples, prestavam-se mais ao silêncio do que as casas dos bairros populares das cidades atuais.

Ainda antes do cristianismo, a casa já era também santuário da família. O cristianismo construiu sobre o fundamento das antigas religiões e criou a igreja da casa ou doméstica. A casa virou santuário da Santíssima Trindade.

Como sinais visíveis desse santuário, as famílias tinham nas suas casas oratórios, imagens de santos, imagens de Jesus crucificado ou o Sagrado Coração. As imagens e os oratórios eram o centro das orações da família. A tradição da oração em família é muito mais antiga do que a oração personalizada.

 

5. Construir a própria casa

O direito à moradia não quer dizer que todos tenham o direito de receber da sociedade, isto é, dos outros, uma moradia já feita e acabada. Tal direito seria uma imposição insuportável para os cidadãos que “recebem a oferta”. Aliás, tradicionalmente sempre foi considerado uma honra o jovem casal construir a sua própria casa. Quando as casas eram muito simples, não era difícil aos jovens reunir o material necessário e com a ajuda de parentes e amigos levantar as paredes e cobrir a moradia com palha ou folhas.

Uma vez que as casas se tornaram mais elaboradas, exigiram maior variedade de materiais. No entanto até hoje, no mundo popular, se os jovens tivessem acesso a um terreno, poderiam construir a sua casa partindo dos próprios recursos e de seus familiares. Pouco a pouco, no entanto, os jovens também precisam, e vão precisar cada vez mais, da ajuda de toda a coletividade. Esta pode emprestar o que for necessário para comprar ou construir uma moradia simples. Somando-se a isso, uma legislação realmente social pode prever um reembolso a longo prazo, entre 20 e 30 anos. Com o decorrer dos tempos, os casais vão melhorando a sua “moradia”.

A sociedade não pode comprometer-se a ajudar na construção de mansões luxuosas. Todavia, hoje acontece exatamente isso. Os ricos encontram grandes facilidades de financiamento a prazo para a construção de residências caras e sofisticadas, enquanto os pobres não encontram ajuda nenhuma.

 

6. Política urbana residencial

Na realidade a construção de moradias é um problema de modelo de sociedade. Na América Latina prevalece realmente um capitalismo selvagem e exorbitante. Permite-se a especulação quase sem limites de terrenos e imóveis. A valorização rápida dos terrenos e edifícios permite acumular fortunas que são puros roubos, pois a valorização é por justiça devida a toda a coletividade. Todos contribuíram para essa valorização e é injusto que ela caia nas mãos de alguns especuladores. Dessa maneira, por causa da especulação, as municipalidades são paupérrimas e não podem assumir as tarefas mínimas de urbanização, muito menos de construção. Os seus limitados recursos são reservados de antemão para a urbanização dos bairros burgueses.

A injustiça da atual política habitacional urbana clama ao céu e pede vingança a Deus, pois deixa milhões de famílias pobres apodrecendo em condições infra-humanas. Defende-se um pseudodireito de propriedade que é um direito não de possuir e sim de confiscar a valorização, isto é, o fruto do trabalho de todos. Infelizmente os que cometem essa clamorosa injustiça enganam o povo, deixando-o na ignorância dos seus direitos, e conseguem manipular as forças políticas para que estas definam leis injustas. A atual situação urbana é um exemplo típico e evidente de “violência institucionalizada”, porque se trata de leis que levam a praticar roubos de tamanho colossal.

A CNBB já lembrou a esse respeito a doutrina social da Igreja, mas nada mudou, e a nova Constituição não mudou nada nas injustiças urbanas.

É provável que a Igreja não tenha levantado ainda com energia suficiente a sua voz profética. A pastoral urbana está insuficientemente articulada, não existindo plano de ação constante e prolongado.

O ano de 1987 foi proclamado pelas Nações Unidas o Ano Internacional das pessoas sem-teto. A Santa Sé associou-se a esse ano com um documento especial da Comissão Justiça e Paz: “Que fizeste do teu irmão sem-teto? — A Igreja perante a falta de habitações” (27 de dezembro de 1987).

Na encíclica Sollicitudo Rei Socialis (30 de dezembro de 1987), o Papa João Paulo II evocou alguns temas desse documento. Diz o Papa:

“A falta de habitações, que é um problema de per si muito grave, deve ser considerada como sinal e síntese de uma série de insuficiências econômicas, sociais, culturais ou simplesmente humanas; e tendo em conta a extensão do fenômeno, não deveria ser difícil convencermo-nos de quanto estamos longe do autêntico desenvolvimento dos povos” (nº 17).

 

Conclusão

Na realidade, os jovens de hoje são capazes de imensos sacrifícios e de enorme esforço quando se trata de construir a sua moradia. Sacrificam todos os seus recursos, limitam a comida e a roupa, sacrificam seus dias e suas horas de descanso, trabalham gratuitamente para ajudar parentes ou vizinhos durante meses e até anos para levantarem uma casinha muito simples e pobre. Tiram de um salário, que não permite sequer comer de modo decente, escassos recursos para comprar os materiais, tijolo por tijolo, telha por telha, até que depois de tantos esforços conseguem finalmente ter seu próprio lar. Ficam felizes quando conseguem conquistar um terreno menos insalubre, distante de todos os serviços. O povo faz grandes sacrifícios para ter uma habitação digna ou menos indigna. A sociedade, porém, ignora-o e permanece indiferente. Até quando?



[1] Cf. Elliott, John H., Um lar para quem não tem casa. Interpretação sociológica da primeira carta de Pedro, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985.

[2] Cf. Theissen, G., Sociologia del movimiento de Jesus, Sal Terrae, Santander, 1979.

[3] Cf. Regnault, Lucien, La vie quotidienne des Pères du désert en Egypte au IV siècle, Hachette,Paris, 1990, pp. 53-64.

[4] Brown, Lester R., L’état de Ia Planète. 1992, Economica, Paris, 1992, p. 182.

Pe. José Comblin