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Publicado em número 192 - (pp. 7-11)

Anunciar aos aprisionados a libertação

Por Pe. José Comblin

O anúncio que serve de título ao presente artigo faz parte do discurso programático de Jesus, pronunciado, segundo a tradição de Lucas, na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4,18). Faz parte de uma enumeração de benefícios tirada de Is 61,1-2. Na profecia de Isaías, o anúncio de libertação feito aos cativos refere-se ao povo de Israel cativo na Babilônia.

Jesus dirige-se a um povo que voltou da Babilônia quatro séculos antes, mas ainda não está realmente livre. Continua numa situação semelhante à vivida no cativeiro de Israel. Embora não sendo mais cativo do rei estrangeiro, continua cativo de todas as estruturas sociais e religiosas em que as próprias autoridades mantêm o seu povo.

Na mente de Jesus, o problema não é tanto a presença das legiões romanas ou a dominação política exercida por Roma. O problema é a escravidão do ser dos israelitas à corrupção da religião da qual são autores as autoridades, os sacerdotes, os anciãos, os fariseus e os doutores da lei. A redenção de Israel começa pela subversão dessa falsa ordem, mantida pelas elites e imposta aos pobres.

O anúncio de Jesus não se refere diretamente aos encarcerados do seu tempo. Por sinal, naquele tempo, em Israel, a prisão não era castigo previsto pelas leis. Os castigos legais eram a morte (muito mais frequente do que se pode pensar — basta ler os códigos que estão na Bíblia), a flagelação, a escravidão e as multas. Outros povos contemporâneos mencionam também a mutilação, a tortura e outros castigos corporais.

No tempo de Jesus o encarceramento é a condição de quem está à espera do castigo. Não é castigo em si. Os apóstolos foram encarcerados várias vezes, e o próprio Jesus foi preso a fim de ser condenado à morte.

Será que, por isso, não há relação nenhuma entre o povo de Israel escravizado pelas suas elites e os presos que estão nas nossas prisões? Partindo daí, não haveria nenhum anúncio para os presos que foram condenados e hoje se encontram nos cárceres?

A seguir veremos que as relações são várias.

 

1. Os encarcerados por abuso de poder

Há uma primeira categoria de presos, cuja situação parece bem clara: são homens ou mulheres que estão na cadeia sem ter infringido nenhuma lei ou sem ter sido condenados. Estão aí porque foram presos por engano, confundidos com outros, ou porque estavam perto de outros que cometeram um delito, ou foram denunciados sem provas, ou simplesmente foram esquecidos. São pessoas muito pobres, que não podem pagar um advogado, e não têm acesso às instâncias do poder judiciário. Estão na prisão porque não sabem provar que são inocentes. É o caso da pessoa que é considerada culpada até que possa mostrar que é inocente. Ora, ninguém no mundo é capaz de provar que nunca cometeu um delito. Acontece que, quando se trata de pessoas de boa condição, bem vestidas e instruídas, as autoridades não insistem e não exigem que forneçam as provas de sua inocência.

Para as pessoas que estão na prisão injustamente, vale o anúncio de Jesus. Os verdadeiros discípulos vão empenhar-se para que os que foram injustamente encarcerados sejam libertos. O evangelho é anúncio de libertação, pelo menos no sentido de que a causa deles será defendida.

 

2. O perdão

O perdão dos pecados, das culpas, das dívidas — no sentido mais amplo — é básico no cristianismo. Jesus anuncia o perdão. Não somente anuncia que Deus perdoa e suprime todas as penas, mas pede que os seus discípulos façam a mesma coisa: subordina o perdão de Deus ao perdão aos irmãos. Este perdão é de modo particular o núcleo central do evangelho segundo Mateus. Jesus anuncia, proclama, provoca, exige: não tem poder para fazer com que as pessoas sigam as suas instruções. No entanto, para quem quer seguir o caminho de Jesus, o perdão é indispensável. Os evangelhos não permitem que se faça uma distinção entre os pecados pessoais ou sociais, entre a culpa e as penas devidas legalmente pelas culpas, entre perdão dado por indivíduos ou pelas autoridades em nome da sociedade. O pedido de perdão é universal e cobre a totalidade o mal cometido.

A questão é: como esse perdão vai poder entrar nas sociedades concretas que conhecemos? Como vai ser aceito por indivíduos impregnados pelo desejo de vingança, ou pelo medo dos criminosos? Esse é outro problema. Jesus estava bem consciente da sua pretensão exorbitante. No seu tempo, a vingança era até exigência da lei, sendo atribuída a uma revelação do próprio Deus: quem se vingava, obedecia a Deus. E o medo não era menor do que é hoje em dia. Daí a crueldade dos castigos diretamente infligidos aos delinquentes.

A pena de prisão é considerada uma forma mais leve de castigo do que a pena de morte. Nas civilizações antigas, a pena de morte era muito mais habitual e muito mais frequente, mesmo em casos de delitos hoje em dia considerados leves, tais como o roubo e o adultério.

Atribui-se frequentemente ao cristianismo a evolução da pena de morte para castigos mais leves como as penas de prisão. Pode ser. Porém, está claro que o encarceramento, sobretudo quando dura anos, constitui um castigo tremendo. Atinge o ser humano no que tem de mais valioso: a liberdade, na sua forma mais radical — que é a liberdade de poder ir e vir.

É legítimo e moral condenar uma pessoa a anos de prisão? Há razões que possam justificar tal prejuízo infligido a uma pessoa? No caso da pena de morte ou de mutilação, não há possibilidade de perdão. Há, sim, possibilidade de perdão no caso de penas de prisão.

Lembremos que, na América Latina, os governos militares decretaram anistias gerais que favoreceram membros das forças armadas ou das polícias que mataram, torturaram, roubaram e mutilaram cidadãos. Milhares de delinquentes foram assim dispensados das penas de prisão, previstas nos códigos penais.

Isso aconteceu no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Chile e em outros países. A anistia foi julgada benéfica para a paz pública e para a ordem social.

Portanto, a dispensa das penas de prisão não foi considerada um perigo para a cidadania. A nação não se sentiu em perigo embora milhares de delinquentes tenham ficado soltos, livres de qualquer castigo.

Notemos que esses delinquentes, assim dispensados, não estavam arrependidos. Foram perdoados sem conversão, sem penitência. O caso mais famoso — e, talvez, mais incompreensível — foi o dos generais argentinos condenados por tribunais do seu país e anistiados pelo presidente Menem, sem que tenham dado o mínimo sinal de arrependimento. Pelo contrário, nada tinham perdido da sua arrogância.

Por sinal, em quase todas as nações os chefes de Estado têm poder para conceder anistia aos presos escolhidos por eles. É outro sinal de que a ideia de perdão não é nem absurda, nem perigosa, nem louca. A questão é: por que não poderíamos estender muito mais a anistia, isto é, o perdão?

Uma primeira situação seria a dos presos que estão arrependidos do mal que fizeram, e estão com sérias disposições de mudança. O caso não é utópico. São milhares e milhares os presos que querem recomeçar. Por que não perdoar?

Sempre se cita um caso que se tomou famoso na Itália nos anos 80. Milhares de terroristas das Brigadas Vermelhas (mais de cinco mil) foram parar nas cadeias na Itália. A grande maioria entrou num processo de autocrítica e acabou reconhecendo que tinha cometido grande erro — levando-os a cometer verdadeiros crimes. Arrependeram-se. Houve todo um processo de conversações entre as autoridades e as entidades religiosas. Foram feitos muitos processos de revisão de penas. A própria opinião pública italiana acabou convencendo-se de que uma ampla redução de penas era a melhor solução para os arrependidos.

Podemos presumir que, em muitos casos, se produz uma evolução semelhante a essa. Muitos arrepender-se-iam do que fizeram se soubessem que há caminhos de redenção e de perdão, e não se chocassem contra um sistema judiciário implacável.

O perdão parte da convicção de que o pecador é a primeira vítima do seu pecado. Fazendo o mal, corrompe-se a si próprio. O perdão tende a ajudá-lo a se arrepender, isto é, a se libertar do pecado que o aprisionava. É verdade que, em certos casos, como no dos terroristas italianos, uma temporada na prisão ajudou a fazer a autocrítica e a revisar o modo de agir. No entanto, essa temporada não pode ser interminável, sem perspectiva de perdão.

O caso dos que estão decididos a recomeçar é diferente. Além disso, para os pequenos delinquentes, o encarceramento custa mais à coletividade do que o mal que fizeram. Seria mais econômico para a comunidade indenizar as vítimas.

A situação é mais grave quando o ambiente da cadeia torna os presos mais corrompidos, mais perigosos e mais enraizados nos delitos do que antes. Muitos afirmam que esse é o caso de muitas prisões brasileiras, por várias razões — que especialistas no assunto pode­rão enumerar e comentar.

 

3. O perdão pela revisão das leis penais

A maior parte dos presos está na cadeia por motivos de drogas. Se não existisse a legislação que reprime o comércio e o consumo das drogas, milhares e milhares estariam fora dos cárceres, onde estão se degradando.

Décadas de experiência de repressão das drogas mostram que é impossível suprimir, ou mesmo reduzir, o consumo das drogas pela repressão policial. Quer nos parecer que, na atualidade, quem luta para manter as leis repressivas são as máfias de traficantes.

Quem está nas prisões são os pequenos vendedores, entregues pelos próprios traficantes, para dar satisfação aos policiais. Graças à penalização das drogas é às leis repressivas, o narcotráfico é hoje o maior negócio do mundo, superando o petróleo. As máfias de narcotraficantes detêm um poder econômico superior ao das maiores companhias do mundo, o que lhes permite controlar os poderes políticos e manter na sujeição cidades inteiras. Nenhum poder político, exército ou polícia do mundo é capaz de enfrentar com êxito as máfias de narcotraficantes. Por sua vez, essas máfias podem corromper todos os poderes, em primeiro lugar o poder da polícia ou do exército. Se os Estados Unidos fracassaram rotundamente, qual é o país que terá êxito?

Por outro lado, o álcool e o fumo fazem enormes estragos à saúde da população, provocando muitas doenças e vultosos gastos sociais. No entanto, ninguém está na cadeia por vender cigarros ou cachaça. Prejudicam profundamente a população, mas gozam de cobertura de fortes grupos econômicos. Forças econômicas e tradições culturais tornam impossível a proibição do álcool e do fumo.

No entanto, há um paradoxo. Não faz sentido tirar a liberdade de milhares de pessoas que, afinal de contas, prejudicaram muito menos os seus concidadãos. No Brasil — embora haja tentativas de aplicar nova legislação, mais rigorosa — até o momento, o motorista que mata acidentalmente por estar embriagado não vai para a prisão. Mas o revendedor que é pego com algumas gramas de droga, este é preso.

Em semelhante caso, o perdão seria apenas aplicar a certas categorias o que já se tolera em outras categorias semelhantes. Seria tolerar o equivalente daquilo que, desde sempre, se tolera. O dinheiro que se gasta na repressão poderia ser mais bem investido na educação ou na reeducação dos cidadãos. Não é realmente um caso de perdão, e sim de equidade.

 

4. A substituição por penas mais leves

Já houve muitas experiências de substituição da prisão por penas mais leves, que não tiram o condenado de seu ambiente. Anos de cadeia, muitas vezes, tornam o condenado irrecuperável para a convivência civil. Existem formas alternativas de, mediante vigilância, corrigir por meio da prestação de serviços comunitários. Trata-se de encontrar atividades que possam reeducar o delinquente de modo adaptado à sua condição.

Em muitos casos se aplica a liberdade condicional. Muitos delegados sabem também levar em conta as circunstâncias e deixar livre a pessoa que não é realmente perigosa para a sociedade.

Em países como o Brasil, que não têm condições para fazer com que as penitenciárias tenham tratamento humano, o remédio é pior do que a doença. As penitenciárias corrompem os presos de tal modo que a recuperação se torna muito mais difícil. Com essas condições o encarceramento não garante a segurança dos cidadãos. É preferível aceitar certos riscos do que preparar riscos maiores.

 

5. A privatização da segurança e da justiça

O que nos ameaça, na onda da privatização da vida pública, é a privatização das funções reservadas à polícia. Há muitas polícias particulares encarregadas da segurança dos bancos, das indústrias, das residências ou dos bairros residenciais. Há também os que se especializam na segurança pessoal.

Uma vez que se instala uma polícia particular, a serviço dos privilegiados, corre-se o risco de que apareça uma justiça clandestina, um poder judiciário clandestino que decreta penas e castigos, notadamente a pena de morte. Na prática já se sabe que, nas cidades, certos grupos decidem quem deve morrer e quem pode viver. Contratam pistoleiros profissionais para aplicar as penas decretadas.

Por sinal, essa privatização da justiça nas cidades é a continuação de uma velha tradição do mundo rural. Ali, desde sempre, fazendeiros e senhores de engenho decidem sobre a vida e a morte, decretam penas de morte e as aplicam graças à contribuição de pistoleiros profissionais que andam soltos à procura de serviço.

Se houver privatização completa da justiça e da segurança, todas as tentativas de humanização serão nulas. A justiça privada não precisa de prisões. Realiza o que dizia um delegado há algum tempo: “Não quero que me tragam aqui delinquentes. Os delinquentes serão simplesmente executados ninguém saberá quem foi que decretou sua morte”.

Pior do que a prisão é a eliminação pura e simples dos indesejáveis. Na privatização, a evolução atual tende a um retrocesso.

É verdade que, na atualidade, as polícias existentes não conseguem reprimir a delinquência e garantir a segurança. Todavia, a solução não está na privatização, mas na organização popular feita nos bairros, para garantir e manter uma polícia pública verdadeira, controlada pela população. É a população organizada que cuida da segurança. Da mesma maneira, os juízes podem ser eleitos pela população local em lugar de ser designados por políticos que servem os interesses dos grandes. A única maneira de se chegar a humanizar a polícia e a justiça consiste em entregá-las à população local. Somente assim a população será capaz de vencer a sua angústia e de controlar as forças que levam à delinquência. Realizar a privatização da polícia e da justiça seria o pior caminho.

 

6. Legalismo e tolerância

No Brasil as leis raramente foram aplicadas com rigor. Sempre houve ampla tolerância. As infrações são toleradas ou escondidas. As sanções judiciárias não são aplicadas e a maior parte dos delinquentes encontram-se soltos. Evita-se, dessa maneira, o legalismo, que torna as sociedades neuróticas. É bom que as autoridades saibam levar em conta as situações humanas reais antes de aplicar as leis, sobretudo as leis penais.

Desafortunadamente a tolerância e a flexibilidade jogam quase sempre para favorecer os privilegiados. Quem consegue evitar a prisão são sempre os privilegiados. Quem goza de impunidade são sempre os responsáveis pelos maiores crimes e delitos. A tolerância não se deve somente, nem principalmente, a uma sensibilidade moral mais atenciosa às pessoas, e sim à corrupção das relações sociais.

A solução não está num legalismo estrito, mas na extensão da flexibilidade até os limites que a sociedade possa suportar. A garantia da impunidade dos grandes desestimula o povo inteiro. Alguns exemplos são necessários. Porém, muitos pequenos delinquentes são suscetíveis de recuperação e se recuperariam se a temporada passada na cadeia não os tivesse pervertido.

 

7. A aspiração à liberdade

Em lugar nenhum a aspiração à liberdade é vivida com tanta intensidade quanto nas prisões. É verdade que alguns acham melhores as condições de vida dentro das prisões do que fora delas: “Aqui pelo menos temos comida e lugar para dormir. É melhor aqui do que na rua”. No entanto, a maioria acha melhor a rua, mesmo com a insegurança que esta traz. A liberdade tem mais valor do que a segurança. A reação dos presos confirma que o apelo à liberdade está enraizado no mais profundo do ser humano.

Por outro lado é também verdade que o ser humano pode preservar um nível mais profundo de liberdade mesmo no cativeiro das prisões. Embora não contando com a liberdade de movimento, mesmo assim é possível salvar a liberdade de pensamento e de expressão. Obras literárias e científicas de grande valor foram escritas no cativeiro. Religiões ou ideologias foram divulgadas e espalhadas dentro do cativeiro. Certos presos podem adquirir mais personalidade e convicções mais firmes no cativeiro. Todavia, são casos excepcionais. De modo geral, o cativeiro destrói.

A partir de certo nível de concentração da população carcerária, as autoridades públicas não logram mais controlar o ambiente. Não conseguem impedir o tráfico de drogas, de armas ou explosivos. Não conseguem sequer controlar a corrupção em que incorrem os próprios encarregados da disciplina. A prisão, então, torna-se um fator de desintegração da sociedade em geral. Contamina os povos e destrói a aspiração à liberdade. Inocula os vícios de tal modo que a população desanima de poder um dia libertar-se, entregando-se às máfias. É o que está acontecendo hoje em dia em favelas e bairros marginais das grandes cidades.

Atualmente certas áreas das grandes cidades vivem em permanente estado de cativeiro. Narcotraficantes ou traficantes de armas, de mulheres e de crianças dominam de tal modo o bairro que ninguém se atreve a desobedecer-lhes. O exército pode se instalar durante alguns meses nesses bairros, mas não permanece e acaba entregando de novo o território aos criminosos. Inverte-se a relação carcerária. Doravante não são os cidadãos que mantêm os delinquentes sob vigilância nas prisões. São os criminosos e delinquentes que mantêm a população e os cidadãos sob vigilância nos seus bairros. Os delinquentes transformam as cidades em prisões controladas por eles.

Tais situações ainda não são consideradas alarmantes, uma vez que afetam mais os pobres, enquanto os ricos se defendem com as suas polícias particulares nos seus santuários. Este é o sinal mais visível da irresponsabilidade das classes dirigentes: entregaram as cidades dos pobres aos delinquentes, comprando-lhes, dessa maneira, a sua própria segurança.

O grito pela liberdade levanta-se dos bairros e das favelas transformadas em prisões. Pior, são prisões das quais não se pode fugir: para onde ir se os donos estão em todas as partes?

Jesus anuncia a libertação aos aprisionados. Não quer dizer com isso que a libertação virá por milagre sem a colaboração dos próprios cativos. Estes precisam primeiro manter e alimentar a esperança da liberdade, e, depois, aproveitar todas as brechas que a história abre para conquistar essa liberdade. Deus ajudará!

Pe. José Comblin