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Publicado em número 204 - (pp. 2-9)

Desigualdade social e desemprego

Por Pe. Luiz Roberto Benedetti

Os consumidores exigem produtos cada vez mais baratos e de melhor qualidade. Os Estados nacionais provocam a abertura de suas economias e o mesmo consumidor acaba impedido de comprar o produto que quer. Ele é trabalhador, e a empresa onde está, para reduzir gastos e aumentar a produtividade, fecha a fábrica estabelecida no país desse trabalhador, transferindo a produção para outro lugar — ou então demite funcionários.

No momento em que redigíamos este artigo, uma nota de revista semanal de grande circulação nacional dizia que uma grande cervejaria acabava de fechar sua fábrica em Ribeirão Preto (SP). Em cinco anos essa cervejaria havia aumentado sua produção em 30%. O número de empregos, no mesmo período, havia passado de 27.000 para 8.000.

É preciso debruçar-se sobre esse quadro, analisar os vários elementos do processo para poder situar o desemprego. No interior desse processo passa-se da exploração para a exclusão do trabalho. Independentemente do que se pense sobre o fato — há quem veja nisso um processo irreversível, e quem conteste dizendo tratar-se de uma “exclusão” cíclica, passageira —, um dado fica claro: as vítimas são as mesmas. São sempre os pobres, no sentido socioeconômico do termo, que pagam a conta.

 

1. Um exemplo

Partindo-se de um exemplo concreto entende-se melhor a realidade. Todo o mundo já viu a logomarca da Nike e, talvez mesmo sem entender o significado, já decorou o slogan “just do it”. A Nike não tem fábricas, empregados ou máquinas. Nada. Outras empresas fabricam seus calçados sob encomenda. Especialistas em desenho industrial mandam os modelos para o Vietnã, a Coreia do Sul, Taiwan, China e Indonésia, onde se fabrica 80% de sua produção. O lugar muda de acordo com as vantagens que possa tirar. Não tendo fábricas e equipamentos instalados, não tem “patrimônio” (investimento) para defender e se “locomove” pelo mundo afora. Assim, a Nike desistiu de produzir em 20 fábricas na Coreia e Taiwan, quando os salários subiram, e passou a operar em outras 35 novas fábricas na China, Indonésia e Tailândia, onde o preço da mão de obra oferecia mais vantagens.

A Nike é apenas uma empresa de marketing e design. É exemplo de empresa global ou globalizada. Opera mundialmente, seguindo a mesma lógica de obter benefícios máximos e minimizar custos, não importando onde esteja a base de produção e com estratégia de marketing única para o mundo todo.

Hoje há imensa facilidade para identificar onde estão as melhores condições para operar. Com o serviço de informações operando mundialmente, em tempo “simultâneo”, os empresários sabem na hora como estão as taxas de juros (que aumentam os custos de produção). Ao mesmo tempo há uma desregulamentação geral do mercado financeiro — e também da legislação trabalhista (“salvar o emprego, não importando a que preço”, do lado do trabalhador, e “preservar o lucro”, por parte do empresário). Dessa forma, capital, trabalho e bens movimentam-se livremente entre os países. Se o custo de produção fica mais caro num país — ou numa região de um mesmo país — a empresa pode trocar sem mais o local de produção.

Todavia, para não ficar desalentados, é importante ter presente que também há movimentos, ONGs e grupos que se levantam para proteger os direitos do trabalhador. A própria Nike foi alvo de um movimento muito forte de boicote aos seus produtos, por conta da exploração do trabalho infantil. Uma reportagem do Wall Street Journal mostrou o efeito: a empresa literalmente despencou. Ela própria encomendou à Goodworks International (ONG independente) um levantamento sobre as condições de trabalho nas fábricas que contratava na Ásia. A conclusão foi a de que as condições de trabalho nas fábricas eram adequadas; o conceito de “direitos trabalhistas” é que não estava sendo bem compreendido e adotado nesses países. Ou seja, as fábricas podem estar dentro da lei, todavia não se têm parâmetros definidos se essa lei é justa ou não.

 

2. Os números

Dados do IBGE, divulgados em 28 de agosto de 1998, mostram que o desemprego continua subindo, sobretudo no setor de transformação (indústria) — mesmo na região metropolitana de São Paulo, até pouco tempo um dos pólos de convergência para quem buscava ocupação. Em junho de 98 a taxa de desemprego foi de 7,90%, passando a 8,02% em julho, terceiro pior índice desde 1983, ano em que o Instituto começou a pesquisa sistemática mês a mês. Ao longo de 1998 a taxa média de desemprego (até agosto) foi de 7,84%, o índice médio mais alto nesse período. O índice de julho mostrava que nas seis regiões metropolitanas onde a pesquisa havia sido feita — Recife, Salvador, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro — 1,4 milhão de pessoas aptas ao trabalho estavam desempregadas ou procurando trabalho. Nessas regiões, o número de ocupados na indústria (setor com índice de desemprego de 10,50%) havia diminuído em 91.000 pessoas de junho para julho. De julho de 97 para julho de 98 foram 208.000. O fato é preocupante, afinal, em um só mês, em números brutos, a diminuição de pessoas ocupadas na indústria equivale a quase metade de um ano inteiro.

Até a década de 90, o Brasil mostrou uma capacidade relativa de produzir empregos suficientes para as gerações que entravam no mercado de trabalho. As oscilações, com momentos críticos nada desprezíveis, eram conjunturais. Após 90, não só desaparece essa capacidade, como diminuem vagas na indústria e na agricultura. Entre 1989 e 1996 o número de desempregados triplicou, atingindo 5,1 milhões, o equivalente a 7,2% da PEA (População Economicamente Ativa). Os neodesempregados dos anos 90 (até 96) eram 3,3 milhões de pessoas. Estes últimos dados são da PNDA (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) — mais precisos do que os do IBGE, pois são coletados em todas as regiões do país. O economista Márcio Pochmann, da UNICAMP, mostra que “incapaz de produzir 2,7 empregos por minuto, como precisava, o país gerou um excedente de 466.000 trabalhadores por ano em média. Em outras palavras, o Brasil criou um desempregado a cada 68 segundos, ao longo dos anos 90[1]. Além de não criar os empregos à medida do crescimento populacional, o desenvolvimento econômico nos moldes em que se dá restringe-se a demanda por novos trabalhadores. Ou seja, o crescimento econômico, ao invés de expandir, tende a restringir o número de trabalhadores empregados. Mesmo que o país cresça economicamente, isso não significa necessariamente que o desemprego caia.

 

3. Razões

As explicações para esse fenômeno são variadas, mas todas estão “situadas” no interior do sistema capitalista de produção. Ocorre a poucos perguntar se a liberação do trabalho pesado, da fadiga, não é um benefício, um bem. Só que, num sistema fundado sobre a exploração do trabalho, isso equivale a ficar excluído de qualquer tipo de participação na riqueza produzida socialmente. O problema não é, assim, a tecnologia ser poupadora de mão de obra, mas, sim, a distribuição desigual dos resultados do trabalho.

“O desemprego é uma doença de muitas causas. Todas estão presentes no Brasil: concorrência internacional, revolução tecnológica, mudanças nos métodos de produção, juros altos, crescimento anêmico e abertura comercial desordenada. A má educação e uma legislação trabalhista ultrapassada completam o quadro”[2].

A abertura indiscriminada da economia a produtos importados desestrutura até a raiz a indústria nacional. As empresas só sobrevivem se melhoram sua produtividade e criam condições para competir com produtos importados. A concorrência da porcelana chinesa pode destruir todo o parque industrial de uma cidade como Pedreira (SP); o tecido chinês e o coreano deixam em crise uma cidade como Americana (SP). Mas isso não vale apenas para “pontos” localizados no mapa produtivo. No caso do vestuário e indústria têxtil em geral, foram eliminados 142.000 postos de trabalho entre 1994 e 1997.

É interessante notar que as prefeituras e governos estaduais fazem as concessões possíveis e imagináveis para trazer empresas, sobretudo de grande porte, para seus territórios. Concessões que acabam tirando verbas de serviços essenciais como educação, saúde e saneamento básico. Essas indústrias utilizam tecnologia de ponta, com profissionais altamente especializados e em número muito reduzido. Como a presença dessas indústrias atrai população em busca de oportunidade de trabalho e esta nem sempre é qualificada (pelo contrário), o problema social se agrava. As condições de vida, já precárias, deterioram-se ainda mais.

Aqui entra a questão da tecnologia. Não é tão simples discutir o problema. O argumento central é que a tecnologia, tomada no conjunto do sistema produtivo, fecha um posto de serviço, mas abre outros três. As vagas fechadas na indústria podem levar à abertura de outras, em número maior, no setor de comércio e serviços.

Como exemplos mais abrangentes do impacto “positivo” da tecnologia são citados dois: o setor que mais investiu em tecnologia, entre 1992 e 1996, foi o de telecomunicações. Investiu 40,6% da sua receita: No mesmo período foi o que menos desempregou — “apenas” 1%. No lado oposto está o setor da construção civil, o que menos investiu (5% da renda operacional líquida) e o que mais cortou empregos (33,8%). Um exemplo mais “situado” é o da Volkswagen, em Taubaté (SP). Em 1994 tinha 60 robôs e 6.403 funcionários. Em 1997, com 137 robôs, empregava 7.471 pessoas. A velocidade com que o robô opera na soldagem obriga a contratar mais metalúrgicos para cuidar da carroçaria.

O que não se sustenta é que a tecnologia, por si só, gera automaticamente desemprego. Na realidade ela destrói e cria empregos ao mesmo tempo, de acordo com o local e ambiente econômico. Assim, o desenvolvimento tecnológico cria empregos quando aumenta a produtividade. Esse aumento barateia o produto, levando à expansão do mercado e faz crescer as oportunidades de emprego. Se a economia cresce pouco, o ganho da produtividade não leva à queda de preços. Vem o desemprego.

Entra aqui outro fator: a questão das taxas de juros e do câmbio. Quando os juros estão altos, rende mais deixar o dinheiro aplicado. Não comprar e não pedir emprestado. Com isso cai o consumo. Não há investimentos, e o país para de crescer. O juro alto atrai especuladores internacionais que tornam o país refém de seu dinheiro para acertar suas contas — que, no plano internacional, são cada vez mais pesadas, pois o governo também toma dinheiro emprestado. O governo segura o câmbio, sobrevalorizando o real. Com isso há a tendência a aplicar em real. Só que, com o preço do dólar baixo, os exportadores não têm estímulo para produzir e os importadores têm preços convidativos para trazer produtos de fora. O déficit comercial (diferença entre o dinheiro que entra e o que sai nas trocas comerciais com outros países) aumenta. E se cai no círculo vicioso: é melhor importar que produzir aqui.

Com relação à educação, o que é evidente é que diploma não garante ocupação. Apesar do tom bastante tendencioso de revistas de grande circulação nacional, há aqui um problema real[3]. Tais revistas insinuam que a pessoa que sabe competir e se prepara para isso, vence. O que fica à margem, aí se encontra por um problema exclusivamente seu. Sob esse ponto de vista não existe exclusão social. O que há de gente que não é capaz de se incluir.

Se essa postura é tendenciosa, por outro lado não impede de chamar a atenção para o problema do binômio emprego/educação. A aprendizagem permanente (lifelong learning) tornou indiferenciados os limites entre a educação e o trabalho. A produção de conhecimento é transformada em meta educacional. Mas é preciso entender bem isso. Um crítico radical dessa identificação como o sociólogo francês Baudrillard vê aqui o ponto limite da alienação da perda de “identidade humana” do trabalho e do trabalhador: o computador tende a tornar-se o modelo de inteligência e o trabalhador não se contrapõe à máquina, mas forma um circuito com ela.

O que se entende por lifelong learning?

A escola não tem o papel de dar um conteúdo objetivo, aplicável imediatamente à realidade sob a forma de trabalho. Ela deve formar indivíduos que saibam ser aprendizes permanentes. Aprender não é, entretanto, acumular conhecimentos, dados — coisas que o computador faz melhor. É ter capacidade intuitiva e capacidade critica, enxergar além do imediatamente dado, visto, sentido no tempo e no espaço. Essas capacidades de adaptar-se às mudanças de forma criativa e flexível é o que caracteriza o trabalhador do tempo presente.

Há a passagem do fordismo para o toyotismo (nome tirado da fábrica Toyota). A marca específica do fordismo é a linha de montagem que padroniza os movimentos de tal forma que deles surjam produtos homogêneos em série. Já o toyotismo tem como marca a flexibilidade, suficiente para operar várias máquinas ao mesmo tempo. Essa passagem não é tão clara assim. A adoção do sistema japonês foi experimentada na Suécia e não foi aprovada. Ela tem, entretanto, significado grande na compreensão do perfil do trabalhador.

A alteração no panorama do trabalho fará sentir seus efeitos pelo final da primeira década do próximo século. Profissões que hoje não supõem senão uma habilitação mínima, começarão a exigir capacidades e conhecimentos específicos (como de informática, por exemplo). A tendência é o crescimento de profissões que exigem interação entre profissionais e clientes.

No perfil do trabalhador, o que muda?

“As novas tecnologias permitem inúmeras mudanças nos modos de produzir, o que, por sua vez, exige trabalhadores mais alertas, com uma boa dose de bom senso e capazes de transferir conhecimentos de uma área para outra… Os profissionais terão de dominar uma grande gama de conhecimentos, não só no seu ofício, mas também de áreas correlatas. É a era da polivalência.”[4]

Na ocupação por setores, a tendência é a queda do número de trabalhadores na agricultura: dos atuais 25% para 15% até 2020. A indústria terá uma queda de 5% (de 19% para 14%). Em compensação, no comércio a mão de obra ocupada passará de 51% para 71%.

E dentro de cada setor?

Na agricultura, predominarão profissionais habilitados em tecnologia mecânica, química e biológica — em detrimento das habilidades manuais. Na indústria, haverá substituição do esforço muscular, repetitivo, pela capacidade cerebral. No comércio, predominância do “contato” eletrônico sobre o face a face. Nos serviços, aumentarão os empregos ligados à educação, ao turismo, à saúde, ao entretenimento, à alimentação. Crescerá o número de profissionais por conta própria nas áreas de administração, cuidados pessoais (crianças, idosos, doentes), educação física, beleza e corretagem.

Por que a citação de Pastore — que estamos comentando — fala de legislação trabalhista inadequada? Há uma corrente muito forte e, aparentemente convincente, que diz que a proteção legal do trabalhador volta-se contra ele. Um representante dessa corrente é o ex-economista chefe do FMI, professor do MIT (Massachussets Institute of Technology), Rudi Dornbusch. Ele defende uma política neoliberal contra a do Estado de bem-estar social. Segundo ele, sob pressão dos sindicatos, a flexibilidade e a competência dão lugar ao sistema de empregos caros e restritivos que, a médio prazo, geram desemprego. O governo subsidia os desempregados. Claro, enquanto aguentar. O que está ocorrendo hoje é que o peso das dívidas coloca em xeque a capacidade do próprio Estado de arcar com as despesas. A reforma chega via liberalização do mercado de trabalho. Seus exemplos: os Estados Unidos, uma economia de pleno emprego, a Inglaterra de Tony Blair, na qual o desemprego atingiu queda recorde com a lei que instituiu a obrigatoriedade de os beneficiários de seguro-desemprego levarem em conta as oportunidades de trabalho oferecidas pelo governo. Denominou as políticas francesa e alemã de nostálgicas: “Em breve os rigores das finanças globalizadas forçarão esses países a adotar o mesmo caminho que os outros, porque o déficit público não pode continuar cobrindo as contas das inúmeras pessoas que preferem não trabalhar… Liberalizar os mercados de trabalho, reduzir a burocracia e os subsídios teria produzido mais contribuintes e menos parasitas”[5].

Mas ele mesmo assume a advertência de Tony Blair de que a globalização e a privatização têm impacto dramático sobre a renda dos trabalhadores não especializados. Então cabe perguntar: quem vai protegê-los? O fim das leis trabalhistas e a liberalização total do mercado de trabalho?

A palavra-chave para o neoliberalismo, é a flexibilização da legislação trabalhista, incluindo aí o tempo parcial, o trabalho por tarefas, a previdência privada, o fim do repouso remunerado, das indenizações, contrapondo-se assim às grandes conquistas do sindicalismo. Este promoveu uma redistribuição de renda através de negociações diretas. Há, porém, um momento em que a alta produtividade do trabalho não cobre o custo da mão de obra das empresas. Num mercado globalizado essas empresas perdem competitividade e o caminho mais curto é a dispensa dos trabalhadores que “custam caro”. Atualmente há 18 milhões de trabalhadores europeus sem emprego. Os neoliberais dizem que os sindicatos raciocinam com a cabeça posta nos anos 50-70, quando tecnologia e estado de bem-estar social eram compatíveis. O argumento do neoliberalismo é numérico: o contrato flexível reduziu a 7% a taxa de desemprego na Holanda, a 4,3% nos Estados Unidos e abaixo de 7% na Inglaterra. O que se esquece é que isso só ocorre nos setores de baixa qualificação e se faz acompanhar de queda acentuada nos salários. O exemplo mais flagrante é o do próprio país-modelo, os Estados Unidos: o emprego em tempo parcial, com menos direitos e compensações, faz com que o empregador gaste menos; já o trabalhador, para manter uma renda razoável, precisa de mais de um emprego. O correspondente da Folha de S. Paulo em Washington ilustra o fato. Num comício de campanha pela reeleição à presidência, Bill Clinton se gabava de ter criado 11 milhões de empregos durante seu primeiro mandato. Um dos presentes gritou: “Só eu tenho três!”.

Mais, há exemplos contrários aos da Holanda e dos Estados Unidos. A Espanha, mesmo criando 14 tipos de contratos especiais de trabalho, apresenta a taxa de desemprego estabilizada num patamar muito alto, de 22%. A Argentina flexibilizou e 17% da população economicamente ativa está sem emprego.

No caso brasileiro, os encargos trabalhistas não podem ser utilizados como argumento para desemprego. Segundo o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) há dois dados: o custo extrassalarial com a mão de obra é de 25%. O segundo dado é que o peso da mão de obra no custo final do produto é baixo. No setor manufatureiro, a mão de obra custa no Brasil U$ 2,68, contra U$ 24,87 na Alemanha, e U$ 16,40 nos Estados Unidos.

O sindicalismo está em queda no mundo inteiro e isso agrava os riscos da flexibilização. Na Europa há uma queda de 15,6% no número dos sindicalizados. Na Europa Oriental a queda é de 35,9%. Os não empregados veem o sindicalismo — que defende “com unhas e dentes” suas conquistas —, como o culpado pela situação de desemprego. Os sindicatos defendem interesses corporativos e atrapalham, assim, a conquista de emprego, pois o que fazem pelo salário não podem fazer pelo emprego. Fazem eco, dessa forma, às argumentações neoliberais. O que nem sempre se leva em conta é que, sem as conquistas sociais, os desempregados estariam sem nenhuma proteção, sem chances de um mínimo de condições de vida digna.

É como aquele que, no Brasil, se queixa das medidas “paternalistas” tipo subsídio a transporte coletivo, vale-refeição, assistência médica, cesta básica, renda mínima. Ele se esquece de que, no Brasil, os pobres estão entregues à própria sorte e que esses “paternalismos” são uma “restituição” mínima aos trabalhadores do que estes produzem para o conjunto da sociedade. A parcela maior, é claro, fica com os beneficiários da concentração de renda.

 

4. Além das aparências

O relatório da ONU sobre desenvolvimento humano, de 1997, diz que os países menos adiantados podem perder até U$ 600 milhões por ano e a África, ao sul do Saara, U$ 1,2 bilhão nas trocas comerciais. É um texto bastante crítico com relação à globalização, termo que é necessário entender corretamente e de maneira crítica.

A palavra designa fundamentalmente três fatos interligados: a revolução tecnológica no campo da informação, biologia e inteligência artificial; criação de áreas de livre comércio e integração de blocos econômicos; a interligação e interdependência dos mercados físicos e financeiros. Tudo isso se faz acompanhar de uma mudança cultural que se expressa tanto na aceitação de uma cultura global quanto na valorização da diferença.

Há quem diga que nada disso é novo, apenas aprofundamento e intensificação de processos que vêm desde o mercantilismo. Entretanto, é muito diferente apertar um botão de computador e tirar bilhões de dólares de um país e jogá-los em outro e o fato de fechar uma fábrica no Japão e abri-la no Brasil.

Antes a desigualdade econômico-social explicada em termos de exploração dava-se na base da troca desigual entre manufaturados (importados dos países desenvolvidos a preços altos) e matérias-primas (exportadas pelos países subdesenvolvidos a preços ditados pelos desenvolvidos ao sabor de seus interesses). Agora, o que muda é apenas o tamanho do fosso entre uns e outros e a troca comercial não se restringe a essa distinção. Se, em 1960, os países ricos ganhavam quatro vezes mais, hoje essa porcentagem dobrou: “em 1994, os 20% mais ricos abocanharam 86% de tudo o que foi produzido no mundo. Sua renda era 78 vezes superior à dos 20% mais pobres[6]. E isso se deve a um agravamento das condições de intercâmbio comercial com o processo de globalização; 10% da população mais pobre do planeta detêm 0,3 do comércio mundial, metade do que detinham há 20 anos.

Isso acontece porque os países desenvolvidos pregam o livre comércio, abolição de fronteiras protecionistas, e, ao mesmo tempo, impõem barreiras alfandegárias e protegem seus produtos, impedindo aos outros o acesso às novas tecnologias através da proteção de suas patentes. O relatório da ONU chama ainda a atenção para o fato de que os países industrializados protegem sua agricultura. As quedas nas tarifas de exportação desses países aos desenvolvidos são bem mais acentuadas que as barreiras alfandegárias e tarifas impostas às importações de produtos, dos países pobres. Utilizam como mecanismos leis sanitárias e medidas antidumping.

Ao mesmo tempo subsidiam generosamente a agricultura local, o que traz como consequência o preço baixo de seus produtos. Com isso desvalorizam as exportações dos países pobres, impedindo-os de vender para os países ricos. O mesmo processo faz com que, no interior de um mesmo sistema, os produtores pobres fiquem expostos à concorrência dos mais ricos.

Para medir a importância desses subsídios, basta dizer que, segundo estimativa, uma redução destes a 30% nos países desenvolvidos, levaria os que estão se desenvolvendo a um ganho de U$ 45 bilhões por ano.

Nesse quadro há, de um lado, os que são apocalípticos e, de outro, os que são imediatistas e pragmáticos. De um lado e de outro há aceitação de que o socialismo acabou. Poucos recuperam os valores humanitários do socialismo para, à sua luz, tentar compreender de maneira diferente os fatos atuais. Fica-se dentro da categoria de mercado para explicar o próprio mercado, seja como “salvador” — portador da prosperidade — seja como portador da desgraça — a miséria. O homem como ser social, como ser de relações, desapareceu como pano de fundo das análises.

Assim, não se pensa no caráter social da tecnologia. Ela é visualizada na ótica neoliberal, como resultado do gênio individual de grandes homens, como empreendimento singular, deslocado de um espaço e tempo determinados. Não é vista como resultado de um trabalho social, coletivo, fruto de pesquisas anteriores, de busca de soluções, de interrogações coletivas que levam a novas ideias e novas técnicas. Trabalhar sozinho, partindo da estaca zero, de um grau zero de conhecimento e domínio da realidade, é ficção. Essa visão individualizada do gênio descobridor faz das novas descobertas propriedade de quem as inventa e este as “vende” como produto.

Isso nos faz pensar sobre o alcance social da inovação tecnológica. Não se trata de ver a máquina como inimiga, à semelhança dos indivíduos da Revolução Industrial, quando os operários as quebravam. Claro, o desenvolvimento tecnológico não é neutro, mas libera o ser humano para fruir mais plenamente de sua humanidade. Gera tempo livre. As novas tecnologias não causam a diferenciação social. Podem, sim, agudizar contradições já existentes na estruturação do processo produtivo.

O capitalismo, no seu início, fundava-se em uma espécie de mística do trabalho. O empresário e seu funcionário viam-se a si mesmos como ascetas que sacrificavam suas vidas, imbuídos de um espírito de missão. Hoje essa mística tende a desaparecer e cede lugar ao consumo como motor da economia: “À medida que a sociedade se faz mais afluente, as necessidades passam a ser criadas pelo processo através do qual são satisfeitas… As expectativas aumentam à medida que vão sendo alcançadas. Um nível mais elevado de produção significa um nível mais elevado de criação de necessidades que exigem um nível mais elevado de satisfação”[7].

Embora, na interpretação de Galbraith, o trabalho esteja sendo substituído pelo consumo como mola propulsora da economia, ele continua uma exigência antropológica fundamental. Já em 1958, Hanna Arendt previa as consequências da automação. Esta “dentro de algumas décadas” — falava então — “provavelmente esvaziará as fábricas e libertará a humanidade de seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição à necessidade… Por si, a isenção do trabalho não é novidade: já foi um dos mais arraigados privilégios de uma minoria… A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operária… A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores… O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior”[8]. Falava assim para mostrar a “desestruturação” pessoal que o advento da sociedade sem trabalho poderia trazer.

O desemprego é cada vez menos ocasional, esporádico. É estrutural, no sentido de que se produz cada vez mais, com maior qualidade e com cada vez menos gente. Mas fica a contradição: Quem vai consumir o que é produzido? Mesmo nos países desenvolvidos, as pesquisas de Gorz mostram, os bens de consumo já estão ao alcance de 80% a 90% da população. O processo produtivo se limita à reposição. Dessa forma, os produtos devem “envelhecer” rápido, ter tempo de vida “útil” curto.

Adam Schaft, em Informe do Clube de Roma, em 1988, punha como questão central a de “manter um exército de pessoas estruturalmente desempregadas”. Como “controlar” a exclusão social que faz dos trabalhadores desempregados permanentes? Excluídos no sentido técnico, preciso do termo, isto é, impossibilitados de fazer-se representar, por carecer de consciência comum de ação e interesses e, por isso não dispor de instituições de representação e defesa de seus interesses. Sobra a eles, como forma de representação social, a violência ou o clientelismo político.

Há, por toda a Europa, uma tendência muito forte ao racismo, à xenofobia, à expulsão de estrangeiros, vistos como concorrentes “desleais” (porque sem direito) às vagas no mercado de trabalho. Assim, repete-se em escala europeia o que já conhecemos no Brasil. Todos os males sociais próprios a uma sociedade marcada por desníveis de renda e oportunidades são exacerbados em tempos de crise. Mais ainda quando há uma realidade que é algo além de uma crise (termo que se liga a algo passageiro, acidental, superável), quando há uma alteração qualitativa das formas de trabalho e sociabilidade: violência, drogas, sequestros, prostituição, mendicância, lares desfeitos. Aqui no Brasil, mais precisamente no Sul e Sudeste, a “culpa” recai sobre o nordestino. Da mesma forma, o africano, o asiático e o latino não têm lugar nos países desenvolvidos — que já não precisam deles. Eles encarnam o estranho, o indesejado, a ameaça. Xenofobia e racismo tomam o lugar da solidariedade.

 

5. Perspectivas

O que não se pode é cultivar uma visão catastrofista dos fatos sociais. Atrás dissemos que a tecnologia não é neutra, não é inocente, está associada sempre à realidade histórica de uma sociedade e às classes desta mesma sociedade. Mas isso não significa ignorar os benefícios das novas tecnologias. Sem elas a humanidade não teria como dar conta dos problemas cotidianos. Há, além disso, um processo histórico que, como tal, é sem retorno. Não se pode “pretender” que a realidade não tivesse sido como foi. Mas é processo histórico, isto é, conduzido e construído pela sociedade — não por um determinismo natural. Lembrar isso pode parecer chamar a atenção para uma obviedade. No entanto, é necessário ter presente que há possibilidades de uma intervenção consciente sobre a realidade do processo histórico, por mais limitada que seja. O grande inimigo a combater, neste caso, é o “sentimento” de inevitabilidade, uma postura fatalista diante da história.

Mais, a tecnologia não é o problema. Mesmo levando em conta a observação de Arendt, a tecnologia libera de cargas, do trabalho fisicamente opressivo. Como já dissemos, ela não causa a desigualdade social, embora a possa aguçar. O problema está em como dividir, de forma cada vez mais igualitária, os resultados do trabalho, que é sempre social. O tempo livre pode levar à criação de empregos nas áreas de lazer, entretenimento, esportes — além de representar por si um fator de “humanização”.

Gorz aponta um “perigo” no desemprego, para além dos já enunciados. Os beneficiários da situação sentem-se potencialmente ameaçados, sabem que também eles são afetados: “Pelo desapego que provoca com relação a uma vida de trabalho cada vez mais precária e vazia de sentido, o desemprego acaba por se tornar, por sua vez, um perigo para a ordem estabelecida… Estamos neste ponto: na linguagem oficial, não é mais o trabalho que cria os produtos, mas a produção que cria o trabalho. Não se trata mais de trabalhar para produzir, mas de produzir para trabalhar. Os natalistas chegam mesmo a nos incitar a fazer mais filhos de modo a garantir consumidores para nossas produções. No final dessa lógica, encontra-se a economia de guerra e a própria guerra, que foram, até hoje, os únicos métodos eficazes para assegurar o pleno emprego dos homens e das máquinas quando a capacidade de produzir ultrapassava a de consumir”[9].

Mais, por que ver a automação como ameaça? Por que disputar os poucos empregos? A pergunta faz sentido, porque há uma possibilidade inversa: por que não lutar em conjunto por uma nova racionalidade econômica? Será tão inevitável a lógica que condena muitos ao desemprego e uns poucos à hiperprodutividade? Não seria possível trabalhar menos e ter garantida uma renda que nos permita viver de forma mais criativa a “sociedade do tempo livre”?

As duas possibilidades estão inscritas no processo social: a luta do homem contra o homem ou a criação de “novas” formas de solidariedade.

“Sem vontade política e sem protagonistas para orientarem e dominarem as mudanças sociais tornadas inelutáveis, as possibilidades que a telemática oferece podem ser perdidas e só suas ameaças se tornarem reais: ela pode facilitar o advento de nova sociedade; não a construirá espontaneamente e por si mesma… Será ilusório esperar dela uma inversão da pirâmide de poderes que rege a sociedade… O futuro não depende mais da prospectiva, mas do projeto e da aptidão de cada nação para elaborar a organização adequada à concretização desse futuro.”[10]

Isso significa criar redes de solidariedade, grupos de convivência, de ajuda, que — além de pensar criticamente as possibilidades de uma “nova” sociedade inscrita no processo —, experimentem concretamente, de forma criativa, formas novas de sociabilidade.



[1] Cf. Folha de S. Paulo, 1º/5/1998.

[2] José Pastore, O Estado de S. Paulo, 12/3/1998.

[3] Basta ver o tom de duas reportagens de capa da revista Veja, relativamente distintas no tempo, mas com o mesmo cunho ideológico de abordagem: “A revolução que liquidou o emprego”, de 19/10/1994, e “Estudar vale ouro”, de 23/9/1998.

[4] José Pastore, Folha de S. Paulo, 1º/5/1998.

[5] Cf. Folha de S. Paulo, 1º/5/1998.

[6] Cf. Folha de S. Paulo, 2/11/1997.

[7] John Kenneth Galbraith, A sociedade afluente, São Paulo, Pioneira, 1987, p. 109.

[8] Hanna Arendt, A condição humana, São Paulo, Francisco Alves, 1981, p. 13.

[9] André Gorz, Adeus ao proletariado, Rio de Janeiro, Forense, 1982, pp. 166-167.

[10] Idem, p. 188.

Pe. Luiz Roberto Benedetti