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Publicado em número 130 - (pp. 32-36)

Limites e eficácia do voto

Por Luiz Roberto Benedetti e Márcio Roberto Pereira Tangerino

Um olhar sobre a vida política no Brasil, sobretudo nos anos mais recentes, mostra a existência de uma polarização de posições em torno do significado do voto: “O voto é tudo” ou “o voto é nada”. Esta polarização, que comporta oscilações em seu interior, corresponde a duas posturas frente à política: ou de recusa radical como sinônimo de oportunismo, velhacaria, coisa suja, ausência de princípios, ou glorificação como a única atividade humana digna desse nome. As duas oposições coexistem, paradoxalmente, com certo sentimento de desalento, uma vez que, por mais que se vote, as coisas cada vez mais parecem ficar onde estão.

Não se trata agora de tomar partido por uma visão ou outra e, menos ainda, de justificar ou condenar o desalento dos conformados a que “as coisas sempre serão assim”. Trata-se, sim, de discutir o significado e o alcance real, objetivo, da participação política através das eleições.

 

1. Representação e realidade

O voto se apresenta como direito (ou dever) do cidadão, homem livre, que exerce seu direito de cidadania elegendo os que o representarão junto ao poder do Estado. Maneira consciente de interferir nos destinos da sociedade. Esta é a representação que normalmente temos do voto. Em nada desmente o desencanto com os parcos resultados que seu exercício traz. Isso porque é uma representação idealizada, isto é, que não leva em conta as condições reais de exercício da cidadania, não leva em conta um conceito menos metafísico e mais histórico de liberdade, ou seja, o de que liberdade, na vida concreta, é a possibilidade de exercício dessa liberdade. Essa possibilidade está inscrita no conjunto das condições materiais de existência e não apenas nas condições jurídicas de exercício da vida política: não se pode falar em voto livre quando se vende o voto para sobreviver.

Esquecer isso impede de antemão entender o papel e o lugar do voto. Nessa representação, o voto aparece como mecanismo de exercício da responsabilidade. Por definição, ele cria a ilusão de que todos são iguais, uma vez que, pelo voto, podem interferir no exercício do poder a nível de Estado. Um Estado que, também do ponto de vista ideológico, aparece como neutro, acima dos conflitos sociais, como defensor dos interesses de todos, ou, para usar uma linguagem mais eclesiástica, como promotor do bem comum. Nesse sentido, o exercício do voto, por si só, pode encobrir dupla ilusão: a de que realmente se influencia nos destinos da sociedade e a de que o eleito representa o consentimento de todos e, por isso, defende o interesse de todos ou da maioria dos membros da sociedade.

Se se toma como ponto de partida que o Estado representa a conciliação ilusória de interesses das classes em conflito, e mais diretamente, que é o representante, o mediador dos interesses da classe dominante para o conjunto da sociedade, as limitações da representação idealizada começam a ficar claras.

 

2. Harmonia ou conflito

Para se entender o significado revolucionário do voto ou de qualquer outra ação política é preciso pôr-se de acordo sobre o significado do termo, começando por uma concepção do que seja sociedade. Esta não é apenas o conjunto dos indivíduos vivendo lado a lado, relacionados uns com os outros, mas também uma determinada representação dessa relação.

Podemos nos imaginar como um corpo coeso, onde cada um ocupa um lugar determinado de acordo com sua capacidade, seus dons, seus talentos. Essa diversidade de dons e talentos confere harmonia ao conjunto. Há diferenças sociais? Sim, mas são explicáveis “naturalmente” como diferenças de caráter “biológico” (raça, dotes naturais, predisposições genéticas etc.) ou cultural (espírito de iniciativa, capacidade de aproveitar melhor as oportunidades, memória coletiva etc.). Admite-se até mesmo que há estratificação social, mas as “diferenças” entre as classes são vistas apenas como diferenças funcionais no interior do corpo social. Há classes sociais porque há diferenças funcionais a serem preenchidas.

Nesse esboço sumário já fica claro que é impossível a quem tenha essa visão da sociedade admitir para ela mudança revolucionária. Todas as agências sociais — escola, igreja, partido — trabalham no sentido de adaptação: colocar a pessoa certa no lugar certo, fazer o indivíduo integrar-se à ordem que o ultrapassa e o abrange, a ordem social. Pode haver mudanças, mas elas também terão caráter funcional, feitas para “melhorar”, “adaptar” um conjunto harmônico, a fim de que ele fique onde está, isto é, em ordem.

Para entender como uma sociedade se estratifica em classes é preciso entender como os homens se reproduzem socialmente. E para entender sua reprodução social é preciso olhar como organizam a produção e a apropriação dos bens necessários à vida e como organizam o poder político (“distribuição” do poder, assegurado por mecanismos de dominação). Há estruturas de apropriação e dominação extremamente rígidas, nas quais as diferenças sociais “aparecem” mais como diferenças religiosas, raciais, hereditárias, como no caso das sociedades divididas em castas.

Na sociedade de classes, os princípios de classificação e mobilidade sociais são dados pela propriedade ou não dos meios de produção, que por sua vez condicionam formas apropriadas de dominação política. A sociedade é vista como conjunto das relações sociais conflitivas. O conflito entre as forças sociais, políticas e econômicas é permanente no interior da sociedade. O papel que essas forças desempenham no conflito permite classificá-las em conservadoras, reformistas — manter a situação como está, com ou sem reformas —; revolucionárias — modificar o conjunto da estrutura social, rompendo com a interdependência e hierarquização das forças em jogo —; e reacionárias — reagir contra a situação atual (de forma consciente ou não) representando objetivamente uma volta ao passado mesmo quando em nome de posturas “revolucionárias” (equivocadas).

Que alcance tem o voto, dentro dessa realidade? O voto influi na mudança da sociedade (ou tem alcance revolucionário) a partir das condições sociais nas quais ele se insere, e no interior da conjuntura político-social na qual se dá seu exercício. Isso quer dizer que um partido ou candidato, por terem princípios revolucionários ou um programa avançado, não cumprem, necessariamente, papel revolucionário ou progressista. E nem significa que votar em determinado partido seja votar automaticamente pela mudança (ou conservação) social. A atitude de partidários do PT, indecisos entre o apoio a seu candidato e o do PMDB nas últimas eleições para a prefeitura de São Paulo, ilustra de modo convincente o dilema. Embora somados, os votos do PT e PMDB representassem cerca de 54% dos votos (20% a mais do que os votos de Jânio Quadros); embora, tanto para o partido, como para o quadro político do país fosse importante o crescimento do PT, o fato objetivo é que a cidade de São Paulo está sendo governada por um prefeito que representa a articulação das forças de direita. Objetivamente, isto é o que menos interessa às classes populares, representadas, em maior ou menor grau, nos dois partidos. Aqui talvez se objete que tanto faz Jânio como o PMDB (farinha do mesmo saco). Tal ponto de vista, além de não representar o pensamento dos setores mais lúcidos e menos sectários do PT, é fruto de ingenuidade (ou estupidez) de quem acha que as coisas são como eles gostariam que fossem e não deve ser levado em conta para entender o dilema do eleitor. Mas um pensamento deste tipo deixa claro como, por trás de uma atitude aparente­mente revolucionária, se esconde uma política de caráter reacionário, incapaz de entender o movimento da história.

Esse modo de pensar — que confunde o ideal com o real é significativo de posturas políticas equivocadas: vendo o mundo político a partir de princípios e não das condições reais em que se dá o jogo dos interesses sociais envolvidos numa eleição — vale dizer, de uma análise correta da conjuntura — tende-se a insistir no “nada mudou”. Vê-se o futuro como mera negação do presente ou do que já acabou e não como ação consequente no interior de condições políticas objetivas. No fundo, idealiza-se um passado que foi, nega-se um presente que existe e sonha-se com um futuro que reviva o passado “primordial”, encarnado já num partido “puro”. Visão religioso/escatológica da política, prenhe de totalitarismo.

Mas isso não significa a eliminação da ética, da necessidade de princípios e mesmo de utopias na ação política. Weber dizia que “a política é como a perfuração lenta de tábuas duras. Exige tanto paixão como perspectiva. Certamente toda a experiência histórica confirma a verdade: que o homem não teria alcançado o possível se repetidas vezes não tivesse tentado o impossível” (A política como vocação). Não se faz política sem crença em valores últimos; e encarecer a necessidade da análise objetiva como campo da atuação política desses valores últimos não significa negá-los ou relegá-los a um segundo plano.

É preciso, também, evitar uma visão messiânica da política. Consiste na “crença” de que o eleito vai resolver todos os problemas e mudar a situação. Que o partido, por ser de oposição, por ter princípios e programas límpidos, por ter postura político-administrativa correta, será a solução de todos os problemas que afligem a sociedade. Joga-se assim no governante eleito a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso administrativo e político das expectativas sociais das forças que o elegeram. O que se esquece aqui é que o governo é limitado pelo jogo de forças sociais e políticas; que a direção seguida pelo governo depende da organização das forças que o apoiam.

Essa visão messiânica é politicamente desmobilizadora: conduz a críticas de caráter moralista-emocional (fruto do desencanto) do tipo “ele não presta”. Parte-se para a louvação ou achincalhe, que liberam de recalques e mesmo da necessidade de uma avaliação crítica mais cuidadosa. Formas comuns e nada revolucionárias de fazer política.

 

3. Voto no partido ou na pessoa

Aqui entra outra questão: Weber dizia que a ética política é diversa da ética do púlpito. Quando existia a Liga Eleitoral Católica controlava-se, não sabemos até que ponto, o eleitorado através da elaboração de uma lista de elegíveis, aqueles candidatos que tivessem assinado uma carta de princípios católicos. Por exemplo, aqueles que se comprometessem em lutar contra o divórcio. Há nisso problemas sérios: há por trás a suposição de que a Igreja ou as religiões só salvaguardam seus valores éticos controlando politicamente as instituições sociais. Os critérios de ação política — igualdade social, liberdade de participação nos destinos da sociedade — são relegados em favor da defesa de interesses corporativos de uma instituição, no caso, a Igreja.

Com frequência — aliás, isso é prática costumeira — os padres mandam votar em “pessoa” e não no “partido”. Dizem: veja como é o candidato, o que promete, se tem condições de cumprir etc. Essa postura é aparentemente correta. Mas, além de traduzir uma visão moralista da política (as qualidades ou defeitos pessoais decidem a sorte do mundo) esquece que é o programa do partido, dentro das lutas sociais, a organização política permanente para “cobrar”, na situação concreta, a execução de suas metas e programas, que leva à frente mudanças sociais em favor das classes populares. O momento do voto aparece assim como ponto de chegada e partida de uma mobilização política permanente em torno a um objetivo comum: a transformação das relações sociais.

Votar na “pessoa” e não no partido pode até ser compreensível frente ao que, em política, se denomina fisiologismo. Há os políticos profissionais que só visam seu interesse pessoal, sua promoção e por isso se filiam a um partido com a finalidade única de “fazer carreira”, utilizando a atividade política em benefício próprio. O programa do partido, suas metas e lutas são assumidos apenas e na medida em que podem trazer benefício pessoal. São políticos que mudam de um partido para outro ao sabor de situações que favoreçam interesses puramente individuais.

 

4. Estado e democracia

Logo no início foi falado do caráter de classe do Estado. Mas é preciso ir além: o próprio Estado — mediação da dominação de uma classe sobre o conjunto da sociedade — apresenta em seu interior fissuras e contradições. É ele mesmo, enquanto “expressão” de interesses antagônicos, uma contradição. Às vezes se cai em simplismo ingênuo, divide-se a sociedade em oprimidos e opressores (“os grandes” e “os pequenos”), os bons de um lado, os maus de outro, atribui-se a um lado todos os vícios e a outro todas as virtudes, e a partir disso se manda votar no “lado bom”.

A realidade social é bem mais complexa. O “arranjo” das classes sociais em determinado momento histórico é muito mais amplo que a simples oposição proletariado-burguesia. A classe média antiga — o profissional liberal, o pequeno produtor, o pequeno comerciante — hoje é constituída em sua maioria de assalariados. E o proletariado, embora seja ainda o que produz o lucro, o que desenvolve a mais-valia, tende a se expandir relativamente menos que a classe média assalariada. Esta, todavia, é tão explorada em seu trabalho quanto o proletariado. Não se pode idealizá-lo e fazê-lo a única força que conta em política: “um sujeito que trabalha como funcionário, em qualquer função, mas sem ser operário, mora mal, pega o sistema de transporte pesadamente mau, sofre a poluição, sofre o efeito de fragmentação do interesse provocado pela sociedade de massa. (…) O operário é uma coisa e um assalariado é outra. Mas a forma social de exploração do sistema equaliza, e uma série de problemas são comuns” (Cardoso. Perspectivas. Paz e Terra, 1983, p. 109).

Nesse quadro de complexificação das relações sociais, o papel do Estado na economia, sobretudo nos países de capitalismo dependente, se amplia. E nesse quadro fala-se tanto de uma crise da democracia representativa, quanto da busca de uma defesa apaixonada da democracia, transformada em bandeira de luta até mesmo de uma esquerda que durante muito tempo se recusou a admitir seu valor, adjetivando-a como burguesa e como tal dispensável aos interesses da “Revolução”.

A crise da democracia é expressão de uma crise mais ampla, a crise do Estado. Nos países de capitalismo dependente, as funções do Estado obedecem a uma dinâmica ditada “de fora” pelo capital transnacionalizado: “entre todas as implicações da transnacionalidade, a mais importante é que ele acelera a incompatibilidade entre liberalismo e democracia (…) já que o Estado transnacional está menos sujeito ao controle e participação popular” (Alan Wolfe. The limits of legitimacy, citado por Herbert de Souza, As duas vertentes da democracia, em Krischke (org.). Brasil do milagre à abertura. São Paulo: Cortez, 1982).

O Estado deve responder de forma contraditória à lógica do capital transnacional e nacional, tanto a nível de sua “governabilidade” como de sua “legitimidade” que cada vez mais se tornam problemáticas. Enfrenta, ao mesmo tempo, interesses de caráter liberal-democrático e democrático-popular.

No capitalismo concorrencial do século XIX, o livre jogo das forças de mercado fazia-se entre produtores/concorrentes visíveis e a função do Estado era garantir legalmente as regras do jogo. Hoje, em certo sentido, a formação dos grandes oligopólios altera o caráter concorrencial direto. O mesmo Estado torna-se produtor que obedece às mesmas leis de qualquer grande empresa. Ocupa setores da economia a serviço das grandes corporações multinacionais. Surgem assim dentro dele grupos que o “privatizam”, pondo-o a serviço das grandes empresas ou de grupos que exercem funções de comando, funções burocráticas dentro do próprio Estado, e que “confundem” interesses seus, individuais ou grupais com os da própria nação.

O Estado, numa palavra, participa cada vez mais da vida econômica, entrando como agente direto produtivo e se distanciando cada vez mais dos vá­rios grupos e organizações que constituem os meios de pressão social, a sociedade civil (sindicatos, associações, partidos, movimentos, grupos de interesses).

É nesse quadro que a luta pela democracia, que irá além de mero exercício do direito de voto, se insere. É também nesse quadro que à dignidade jurídica — democracia formal — deve-se somar a luta pela democracia social. Não se pode, sob nenhum pretexto, abandonar a luta pela democracia social; e esta não se consegue sem a conquista crescente de um poder ampliado dentro do aparelho de Estado. É condição de luta pela transformação revolucionária da sociedade batalhar pela representatividade dentro do Estado:

“A questão da democracia não implica eliminar o Estado ou restringi-lo, mas democratizá-lo em favor do interesse público. Não basta ter partidos atuantes e liberdades públicas fora do Estado. É preciso tê-las no Estado, posto que o setor público, nas sociedades contemporâneas, tende a crescer e a enlaçar-se com a sociedade civil” (Fernando Henrique Cardoso. Expansão estatal e democracia, Ensaios de Opinião 2/3, 1978, p. 20).

Entrar no Estado, participar dos mecanismos de poder, mas também criar mecanismos eficientes de controle do poder de Estado:

“É preciso estender as arenas de discussão de modo a que as grandes decisões do Estado e as políticas que as implementam passem pelo crivo da opinião pública e pelo controle de um sistema político partidário que incorpore o conjunto da população e não apenas as elites econômicas ou burocráticas. Sem estes controles e mecanismos, a tecnoburocracia se transforma em agente privado que ocupa com exclusividade a cena pública, se não para implementar seus interesses específicos, para implementar os interesses das grandes corporações econômicas” (Cardoso, op. cit., p. 20).

 

5. Força do voto

Diante do quadro geral, qual o alcance do voto?

— Não se pode vê-lo dotado de caráter mágico/messiânico de revolucionar a sociedade;

— sua força política vem de colocar em vacância, em momento determinado, o poder e assim, momentaneamente, deixar evidente o caráter “convencional”, “arbitrário” desse mesmo poder. Isso quer dizer que o momento da eleição evidencia que a legitimidade do poder advém de fora dele mesmo, do consentimento. Ele não é nem sagrado nem natural. E assim pode e deve ser combatido quando não corresponde aos interesses da sociedade… Não esquecer que a sociedade é dividida por interesses antagônicos…;

— o voto se insere, como gesto político, no interior do jogo de forças sociais, e para ser eficaz deve brotar de uma análise correta da correlação dessas forças;

— voto por voto nada significa se não estiver inserido numa organização política permanente, de participação e mobilização na defesa de interesses das classes populares. Votar por votar nada significa, em termos. Quem ganha com o voto irresponsável é sempre a classe dominante.

Luiz Roberto Benedetti e Márcio Roberto Pereira Tangerino