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Publicado em número 130 - (pp. 2-7)

Por que votar?

Por Márcio Roberto Pereira Tangerino e Luiz Roberto Benedetti

1. Introduzindo a questão

Essa pergunta sempre aparece nos anos em que se realizam eleições. As respostas são tão variadas que até nos parece que as percepções do real são tão subjetivas a ponto de ser impossível compreendê-lo, captá-lo. É comum ouvirmos a seguinte frase: “meu voto é apenas um, não alterará nada”. O mundo tem seu curso natural (a exemplo de um rio) e, diante do gigantismo e complexidade da ordem de coisas, o social parece-nos provido de forças próprias, e que é insignificante ou mesmo ridículo que apenas alguns indivíduos pretendam transformá-lo.

Certamente esse sentimento de impotência generalizada imobiliza, ata-nos a uma camisa de força, onde a passividade (mesmo no ato de votar) é característica marcante. Já que nada muda, que tal tentar eleger um candidato mais próximo a nós e tentar tirar proveito disso?

Por outro lado, também é ilusão pensar que o voto é capaz de alterar toda a estrutura social, que basta colocar a “pessoa certa no lugar certo” para que tudo funcione às mil maravilhas.

 

2. A estrutura da sociedade

Convidamos o leitor para um passeio. Vamos a uma grande cidade e fiquemos atentos a tudo quanto nossos sentidos possam registrar. Na periferia há favelas, fome, doença, condições de vida que ferem as mínimas exigências para se ter aquilo que designamos como dignidade humana. Condições de transporte piores que a de animais. Por outro lado, em outras partes dessa mesma cidade, sobretudo em regiões próximas ao centro, parece estarmos em outro mundo — luzes, magazines, lojas, bares, restaurantes, luminárias, e o comércio de modo geral. E, separados de tudo, bairros residenciais, onde uma casa ocupa um quarteirão, com piscina, carro de luxo, pessoas que podem ter qualquer coisa em seu poder, de acordo com sua vontade.

No campo, uma multidão de boias-frias, antigos camponeses, gasta sua vida trabalhando de sol a sol para garantir sua sobrevivência. O latifúndio vai ampliando seus limites e expulsa os homens do campo para as cidades. E, quem diria, no final do século XX, no Brasil ainda há escravidão (conforme denunciava há poucos dias a grande imprensa).

Do campo para a cidade, desta para o campo, vemos um país onde a contradição riqueza/pobreza é tão nítida que quando vem a público que no Brasil há 77 milhões de pessoas em estado de fome, 36 milhões de menores carentes, dos quais sete milhões são abandonados, 32 milhões de analfabetos, 40 milhões de migrantes, nada disso mais nos assusta; os dramas do cotidiano são tantos que infelizmente parece que nos acostumamos a conviver com a miséria e a dor.

Pois bem, seria tudo isso natural, intrínseco à própria convivência humana? Seria isso a vontade de um ser majestoso que, habitando os céus, se diverte com o sofrimento humano, para um dia dar aos que sofrem a justa recompensa?

Obviamente as coisas não são dessa forma. As relações sociais que constituem nossa sociedade são derivadas de determinadas formas de produção, circulação, distribuição e apropriação de mercadorias. Por mais diversas que possam ser essas formas, elas são sempre o alicerce, o fundamento de toda e qualquer sociedade. Há também uma instância que cuida da organização social como um todo, que a administra e lhe garante vitalidade. Essa é a esfera do político. Finalmente, existe o campo da ideologia, das construções simbólicas, que são a representação que temos de nossa vida social, do nosso relacionamento com a natureza e do papel que devemos desempenhar socialmente. Da articulação precisa dessas três esferas, economia, política e ideologia, temos determinado modo de produção. Na nossa realidade, parcamente citada acima, os problemas com que deparamos decorrem da forma como a nossa sociedade está organizada. Os meios de produção (terras, fábricas, minas) pertencem a um grupo pequeno de pessoas, e, por isso, esses proprietários acumulam as riquezas produzidas socialmente, explorando a força de trabalho. No outro lado estão os trabalhadores, aqueles que nada possuindo, vendem sua força de trabalho para garantir a subsistência. Proprietários e não proprietários formam classes distintas, antagônicas e com interesses diferenciados, burguesia e proletariado, respectiva­mente.

Entre essas duas classes, há uma classe média, formada por profissionais liberais, advogados, médicos, dentistas, padres, intelectuais etc., que não é proprietária e tampouco vende sua força de trabalho aos detentores da propriedade. São trabalhadores autônomos de uma forma geral. No Brasil, ou mesmo na América Latina como um todo, existe também, como resultado de acumulação capitalista cada vez mais cruel e excludente, um sem-número de desempregados, subempregados, sem-terra, posseiros, índios nômades (porque sem terras demarcadas) e prostitutas. A nossa sociedade é resultado forçoso dos conflitos entre classes e grupos sociais. É neste mundo real que exercemos o nosso papel político; é aqui que se coloca a necessidade ou não do voto.

 

3. A política e o aparelho jurídico

O conflito entre o capital e o trabalho, constitutivo da base econômica de nossa sociedade capitalista, modela todo o edifício social, dando primazia aos interesses do capital. No aparelho jurídico, porém, todos os indivíduos são tidos (ou representados) como iguais, todos dotados de direitos e deveres, de tal forma que a sociedade depende, para a sua reprodução, de cada indivíduo assumir seu papel social e desempenhá-lo corretamente. Dessa harmonia dependem a paz e o progresso social. A ideologia jurídica cumpre, neste sentido, seu papel primordial; sendo “neutra” e “pairando” acima dos interesses de classe, ela está apta a dar igual trata­mento a todos os cidadãos. Dura lex sed Lex: a lei é dura, mas é a lei.

Ora, qualquer cidadão, provido de um mínimo de senso crítico, verá a farsa dessa afirmação. O Estado, na sociedade capitalista, defende o status quo, o que significa dizer, defende os interesses do capital. As greves de trabalhadores são consideradas ilegais, assim como a invasão de terras. Não são raras as perseguições a pessoas que têm o “infortúnio” de serem pobres.

De outra parte, porém, a classe dominante, ou setores com ela identificados, praticam as maiores falcatruas, lesam o povo (escândalos da Capemi, caso Coroa-Brastel) e as coisas continuam sem alteração: não se punem os responsáveis. Para defender, de modo rápido, os interesses da classe dominante que estavam em jogo, em torno de 68/69, as Forças Armadas constituíram grupos especializados para combater e reprimir a guerrilha. Hoje, enquanto milhares de sem-terra esperam a consecução do plano de reforma agrária, tudo é feito morosamente. Os excessos da ditadura não foram punidos, e antigos torturadores continuam a ocupar relevantes postos na administração da chamada “Nova República”: “Revanchismo não”!

A lei é dura para os pobres, para os explorados, para os deserdados da terra, porém, complacente pa­ra com aqueles que detêm o poder, para os de posição social mais elevada.

Há um conflito social permanente, interesses contraditórios que se defrontam e emergem com nitidez na arena do jogo político. Tudo é permitido para que os detentores do poder se mantenham nele, se não enquanto grupo dirigente do aparelho de Estado, pelo menos enquanto classe dominante que amplia a esfera de influência para legalizar a “ordem existente”.

 

4. Partidos políticos e interesses de classe

No Brasil não é permitido por lei que haja partidos políticos classistas, ainda que o próprio conceito signifique parte política. Ou seja, os partidos se formam a partir dos interesses dos grupos sociais, para defendê-los, para consolidar ou ampliar sua esfera de influência. Assim temos hoje no Brasil o PMDB, o PFL, o PDS, o PDT, o PTB, o PT, o PCB, o PCdoB e uma infinidade de pequenos partidos, cada qual se dizendo representante de um setor ou de vários setores da sociedade e lutando para conseguir um lugar ao sol.

Como partidos políticos, todos querem estar representados no poder, e podemos dizer que a curto ou longo prazo almejam o poder para colocar em prática seus projetos de sociedade. A política partidária é assim a expressão legal dos interesses diferenciados e contraditórios das classes sociais. E é inútil tentar dissimular tal realidade querendo que à força de lei ela não se expresse. Se lermos os manifestos e programas dos partidos políticos brasileiros, veremos que, implícita ou explicitamente, velada ou dissimuladamente, dependendo de táticas do próprio partido, há projetos ou modelos de sociedade distintos e antagônicos.

 

5. Do regime militar à Nova República

Os últimos 21 anos de ditadura militar inibiram em amplos setores populares o gosto pela participação política. Terminados os anos mais duros da repressão (exílio, tortura, morte, prisões), o jogo político foi sempre realizado com cartas marcadas. A Constituição, no estilo de uma colcha de retalhos, recebia sempre novos remendos (atos institucionais, decretos-lei) ao sabor e gosto dos militares no poder.

Por outro lado, os movimentos populares da década de 1970 sempre foram duramente reprimidos. O povo era chamado para votar não na possibilidade de alterar o quadro institucional (e se isso viesse a acontecer o Executivo interviria como o fez com o pacote de abril de 1977, instituindo os senadores biônicos), mas para legitimá-lo.

Porém, foi no jogo de forças entre movimentos populares e instituições da sociedade civil, de um lado, e regime militar, de outro, que ocorreu a conquista-concessão da abertura política. Ou seja, da pressão exercida pelos movimentos sociais, o governo se viu obrigado a fazer concessões a fim de que o tecido social não se rompesse (dar os anéis para não perder os dedos). Era a efetivação prática do célebre discurso do General Golbery do Couto e Silva na Escola Superior de Guerra: qualquer regime, para se perpetuar, passa por uma fase de sístole e outra de diástole.

Com a abertura política formaram-se novos partidos, que alteraram o jogo de forças nas eleições de 1982. A oposição elegeu a maioria dos governadores dos Estados brasileiros, e dos Estados economicamente mais importantes.

A campanha pelas “diretas-já” abria a possibilidade de eleger por voto direto o substituto do então presidente General João Baptista de Figueiredo. Mas, com a não aprovação da emenda “Dante de Oliveira!” a maior parte dos partidos políticos cuidou de realizar a transição do regime militar para o civil via Colégio Eleitoral.

A eleição de um presidente civil por via indireta representou, mesmo assim, uma mudança relativa dos quadros institucionais. Ainda que possamos afirmar que a composição de forças que elegeu Tancredo Neves no Colégio Eleitoral tenha sido uma composição conservadora, um pacto de elites, não podemos dizer que “nada mudou”. Há um espaço maior para o debate e o embate das forças sociais. Os partidos podem e devem ocupar papéis mais relevantes, mostrando quais são seus reais interesses, mobilizando e conscientizando a população sobre a realidade nacional.

 

6. Os partidos políticos e as eleições

Sempre que se funda um partido político e este se submete a um processo de legalização, é porque, explicita ou tacitamente, aceita entrar num jogo e participar dele segundo determinadas regras. Hoje, inclusive, os partidos comunistas estão legalizados; alguns outros que permanecem na clandestinidade o fazem não por uma questão tática, mas por falta de representatividade social.

Assim sendo, quando um determinado partido vai disputar uma eleição, ele deve avaliar a base social de que dispõe, sua capacidade de mobilização e de proselitismo e o retorno que terá em termos de votos. Assim se pode decidir participar ou não de uma eleição, nem que seja para eleger um único deputado.

Agora, nenhuma avaliação poderá ser feita a partir das próprias possibilidades de uma organização partidária, mas sim a partir do conjunto das forças sociais que se farão representar num processo eletivo. Ou seja, a correlação de forças terá que ser sempre levada em conta.

Isso quer dizer que no jogo político não se leva em conta as intenções, mas sim os resultados. Neste sentido, a divisão, a multiplicidade dos chamados partidos de esquerda tem se revelado historicamente muito eficiente para que os detentores do poder permaneçam onde estão. No poder! Essa é a dura realidade do quadro político dos países latino-americanos.

Mas, vamos além e imaginemos que, num processo eleitoral, ganhe as eleições um candidato com ideias revolucionárias. Será que, dispondo apenas do poder político, seria possível alterar toda a estrutura social? É certo que não. Os detentores do poder econômico solapariam as bases de sustentação desse governo.

Então, para que votar?

Porque é através da representatividade que as forças sociais dispõem que elas podem alterar a correlação de forças, o que significa dizer que elas podem ou não ampliar os espaços para a participação mais efetiva do conjunto da população brasileira nos destinos da nação. Em todas as sociedades autodenominadas democráticas, elas são mais ou menos aquilo que dizem ser, de acordo com as reais possibilidades que o povo tem de influir na esfera de governo para a gestão da coisa pública.

Assim, ao eleitor caberá uma tarefa de elucidação do poder de influência que seu voto, somado ao de outros, poderá ter, pois não é votando em qualquer candidato de qualquer partido que as coisas se resolvem.

 

7. A Constituinte é um voto “peso-pesado”

É a Constituição de um país que regula todas as atividades organizacionais, que possibilita e que proíbe, que prescreve e determina a forma pela qual a sociedade se organiza. É a lei máxima onde todas as outras leis estão contidas.

No Brasil, nossa Constituição já caducou há muito tempo, tanto por ser inadequada às novas exigências colocadas a partir de transformações sociais, como pela pouca observância que lhe foi dedicada, pois ao invés de servir de indicativo, de normativizar a vida social, ela foi constantemente alterada segundo interesse do grupo que ocupava o poder.

Pois bem, neste ano vamos eleger deputados e senadores constituintes. Serão eles que redigirão a nova Constituição. E isso é importantíssimo sob qualquer ponto de vista que reflitamos, já que as atitudes do governo da “Nova República” têm sido tão arbitrárias quanto as do regime militar. O pacote econômico, por exemplo, é inconstitucional, já que foi promulgado através de um decreto-lei. Ficou proibido qualquer acordo patrão-empregado, quando os salários ultrapassarem índices permitidos por decreto. Hoje, no Brasil, qualquer sentença sobre qualquer questão salarial que for a juízo, terá sua solução dada de antemão.

A Constituição a ser elaborada pelos nossos representantes constituintes pode trazer no seu bojo determinações claras no que se refere à Reforma Agrária, à redução da jornada de trabalho, sobre os recursos que se vai destinar à educação e uma reformulação da mesma, sobre os recursos para a saúde, moradia, sobre a demarcação das terras indígenas, sobre a ocupação do espaço urbano; enfim a nova Constituição poderá, pelo menos em tese, alterar profundamente a nossa situação social.

Contudo, é necessário ser realista, pois os que estão no poder do Estado, sabendo da força que poderia ter uma Assembleia Constituinte, de caráter nacional, determinaram que o Congresso é que será constituinte. Explicando melhor, a Assembleia Nacional Constituinte é formada a partir da eleição de deputados que teriam a única e exclusiva tarefa de redigir a nova Constituição. Tão logo a nova Constituição estivesse redigida, a assembleia se dissolveria automaticamente. Um congresso constituinte, por outro lado, significa que os deputados e senadores que elegeremos neste ano (com mandatos de quatro e oito anos respectivamente) é que redigirão a nova Constituição. A estes ainda se juntarão os senadores eleitos em 1982, e que têm mandato até 1990.

Bem, o que isso significa em termos práticos?

Uma Assembleia Nacional Constituinte poderia introduzir mudanças tão significativas, como, por exemplo, a redução dos mandatos de senadores e deputados, ou ainda, prever que o povo que os elege pudesse destituí-los de seus cargos quando eleitos por um determinado mandato, mas que não estivesse cumprindo as promessas feitas na campanha eleitoral. Nesse sentido, um Congresso Nacional Constituinte é um congresso que legisla em causa própria, o que, por certo, fará com que a nova Constituição defenda a manutenção dos atuais privilégios.

Para se ter uma ideia da questão e de sua importância, basta relembrar que o deputado Flavio Bierrenbach, que fazia parte da comissão de estudos para a Constituinte, estabelecida pelo próprio governo, foi afastado desta comissão ao propor que o povo fosse consultado num plebiscito, sobre a forma que desejava fossem feitos os trabalhos dos delegados constituintes na Assembleia ou no Congresso.

Pretendemos deixar claro com isso que o governo quis assumir totalmente o controle do processo para não deixar que a Constituição, pudesse vir a ferir seus interesses.

Infelizmente, porém, a maior parte da população não está informada de tudo isso. Não tem, inclusive, consciência da importância de uma constituição. Mais triste ainda é notar que nenhum partido político vem dando a ênfase que a questão da Constituinte merece. Pelo contrário, estão preocupados com a conquista do poder executivo do Estado, e este tem sido o principal polo das atenções nas eleições deste ano. A lógica da conquista do poder imediato e de forma localizada, parece ter penetrado em todos os partidos.

Isso nos assusta. Sabemos que interessa à classe dominante que o povo fique alheio a essa questão, ou se vier a participar que o faça sob controle dos que já estão no poder.

A tarefa de conscientização da importância deste momento histórico cabe a todas as instituições da sociedade civil: escolas, sindicatos, associações, igrejas e principalmente os partidos políticos. Todos os esforços teriam de ser canalizados nessa direção.

Mas, já estamos em cima da hora, e algumas tarefas imediatas ainda podem ser realizadas, como:

— conscientizar o povo de que a imposição, por parte do governo, de um congresso constituinte tem em mira a manutenção da ordem existente.

— denunciar o abuso do uso do poder econômico na propaganda eleitoral e no aliciamento de eleitores.

— organizar-se para estabelecer cobranças a deputados e senadores que serão eleitos;

— enviar sugestões a Brasília e para as plenárias pró-participação popular na constituinte que possa vir a garantir melhorias na situação de vida das classes populares;

— finalmente, conscientizarmo-nos todos de que ainda podemos influenciar em muitas coisas a partir das eleições de delegados (deputados e senadores) constituintes na futura Constituição do Brasil. Para tanto, o voto, que já é importante em qualquer eleição que se realiza, assume hoje importância fundamental. Se pretendemos mudanças, maiores ou menores, na estrutura social, é bom que fique claro que podemos mudar a correlação de força, ou pelo menos, equilibrá-la.

 

Votar é hoje uma necessidade, e votar bem (de forma consciente) é um imperativo.

Márcio Roberto Pereira Tangerino e Luiz Roberto Benedetti