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Publicado em número 207 - (pp. 17-21)

Deus é Pai

Por Pe. José Comblin

Que Deus é Pai é uma das verdades cristãs mais profundamente enraizadas no povo católico tradicional. O tema do Pai está tão enraizado, que o próprio Jesus é invocado como Pai. Costuma-se frequentemente dizer: Jesus é nosso Pai. Às vezes a distinção entre a pessoa de Jesus e a pessoa do Pai não fica tão clara, mas há sempre nítida consciência a respeito da paternidade de Deus.

Qual é o conteúdo presente nesse conceito de Pai?

Não é possível esclarecer muito recorrendo à experiência da paternidade natural ou sexual. É evidente que a origem remota do conceito de pai está aí. Porém, antes de se aplicar a Deus, esse conceito passou por uma longa evolução, adquirindo valor religioso específico.

 

1. Ensinamento de Jesus

Jesus ensinou aos seus discípulos a paternidade de Deus. Ensinou-os a rezar ao Pai. Os judeus invocavam o “Senhor” ou usavam o nome misterioso de Javé — que para alguns nem sequer podia ser pronunciado. Jesus dirige-se ao Pai e fala do Pai. Os seus discípulos conhecem Deus como o Pai. Não devem dizer “Deus”. Devem dizer “Pai”.

O que Jesus queria dizer com a palavra “Pai”? Não o explicou. Todavia, por meio dos gestos e no modo de ele próprio dirigir-se ao Pai, os discípulos entenderam o que Jesus queria dizer.

Desafortunadamente nós não podemos ver Jesus invocando o Pai. Não temos a experiência desse modo de se comunicar com Deus. Não temos nem a doutrina conceitual, nem a experiência vivida. Como saber, então, o que Jesus colocava na palavra Pai e o que os discípulos aprenderam dele?

Fazer um estudo antropológico, sociológico ou psicológico da paternidade não adianta muito. Jesus não exprimia simplesmente a cultura, mas revelava algo novo. As ciências sociais ensinam de que maneira os pais biológicos foram interpretados no decorrer dos tempos, nas distintas culturas. Nada disso fornece conhecimentos a respeito daquilo que Jesus pensava. A única coisa que podemos dizer é que Jesus ia além do que normalmente era vivido nas diferentes culturas.

O caminho é estudar a história cristã. Nessa história vê-se que certas pessoas — de caráter religioso eminente — recebem também o nome de “pai”. Foram pessoas nas quais o povo cristão reconheceu como que uma manifestação, uma imagem vivente de Deus Pai — ou de Jesus como Pai.

Disso podemos presumir que o conteúdo da paternidade — que o povo cristão reconhece em certas pessoas —, constitui a imagem mais aproximativa da paternidade de Deus.

 

2. Modelos de paternidade

São Francisco de Assis, por exemplo, foi chamado de “pai” pelos seus irmãos, e pelos escritores antigos que contaram a sua história. Eles diziam: “nosso pai são Francisco”[1].

Outra pessoa tratada de “pai” foi padre Ibiapina[2]. As irmãs das Casas de Caridade e os irmãos que as assistiam chamavam padre Ibiapina de “meu pai”, “nosso pai”. Referiam-se a ele assim: “Nosso pai dizia ou fazia”, “meu pai falou”, “nosso pai conhecia, sofria, exortava”. Na presença dele tratavam-no de pai: “Sim, meu pai”. Não o chamavam de “padre”, mas de “pai”. As pessoas de fora usavam a palavra “padre”, mas as pessoas de dentro o tinham por “pai” — Vários fundadores e fundadoras também eram chamados de “pai” e de “mãe”.

Nem os bispos, nem os padres, nem os frades, nem os superiores ou as superioras eram chamados desse modo. O título de “pai” é reservado a alguns. Os títulos dos superiores são títulos de honra, expressões de respeito e submissão: “padre”, “madre”, “frei”. A palavra “pai” não exclui o respeito nem indica submissão, mas expressa outra coisa.

Há os que sugerem que essa palavra expressa afeto, carinho, amor. Inspiram-se nos novos modelos de paternidade propostos no mundo ocidental dos últimos 50 anos. Não devemos excluir um matiz de afeto ou carinho. Porém não era isso que queriam dizer os irmãos de são Francisco, nem as irmãs das Casas de Caridade. Afeto e carinho valem para qualquer pai biológico. Na paternidade de Ibiapina ou de são Francisco há outra coisa mais importante.

Para os companheiros de são Francisco, este fez com que descobrissem a vocação e o valor da vida. O contato com são Francisco foi como que o despertar de um profundo sono. Até então não sabiam o que eram, não sabiam o que fazer. Andavam sem rumo, sem sentido, sem valores. Ao conhecerem são Francisco, houve uma explosão de luz neles. Foram iluminados. Tudo se tornou claro. Passaram a saber como e o que fazer. Ele os gerou para uma vida nova, a verdadeira vida nesta terra — que realmente lhes dava sentimento de plenitude. Francisco despertou os seus discípulos, mesmo sem palavras. Bastava olhar para ele para ficarem iluminados.

Além de despertar, Francisco também mantinha a orientação: exortava, corrigia, infundia novo ânimo aos desanimados. Não somente dava a vida num momento inicial, mas acompanhava o crescimento desta vida. Era como um alimento sempre presente, sempre forte, que reconstituía as energias dos filhos.

Padre Ibiapina, ainda que em contexto diferente, foi a mesma coisa para as irmãs das Casas de Caridade. Algumas eram filhas de fazendeiros, outras de empregados, e outras filhas de pequenos agricultores. Todas descobriram a vida no dia em que Ibiapina as convidou, chamando-as para assumirem as Casas de Caridade. Elas, deixando tudo, aceitaram. Ofereceram-se de uma vez. Nesse dia foi-lhes revelado o que elas eram, qual era o seu valor e a sua missão nesta terra. Elas, que se dedicavam aos afazeres da casa paterna, repentinamente sentiram que suas energias se multiplicaram. Tiveram a impressão de que antes nada faziam e nada eram, mas agora valiam muito e o que passaram a fazer era de infinito valor. Quando Ibiapina lhes tinha pedido o serviço total aos órfãos, doentes e aflitos do Nordeste, tinhas-lhe dado a vida — uma vida mais verdadeira e fecunda. Por isso ele passou a ser “pai” para elas, tendo-as despertado para a vida.

Ibiapina exerceu essa paternidade durante 25 anos. E como se não bastasse despertar para a vida, também alimentou-a e renovou-a diariamente. A presença dele era força e luz. Ele não precisava mandar. Bastava dizer, e todas e todos seguiam o caminho por ele traçado.

Tal paternidade não é dada a todos, mas somente a poucas pessoas. Na história eles aparecem como os fundadores de movimentos religiosos, que depois se institucionalizam em congregações religiosas ou associações — ou, em alguns casos, não, se institucionalizaram. Essas pessoas são exceções. Os demais cristãos são chamados a seguir aqueles ou aquelas que receberam esse dom.

Movimento paralelo a esse existe também no mundo feminino. Parece que as companheiras de santa Teresa de Ávila a trataram de “mãe”[3]. A dificuldade está na língua espanhola. Nessa língua a palavra “madre” é única e significa tanto mãe como superiora. A mesma coisa acontece em francês ou inglês. Ao tratarem santa Teresa de “madre”, será que querem dizer “mãe” ou “madre” no sentido de poder? É difícil saber. A língua portuguesa facilita porque apresenta duas palavras derivadas da mesma palavra latina. Não faltam casos de “mães” entre as mulheres fundadoras.

Notemos que uma pessoa pode ser muito santa, muito venerada e não ser “pai” ou “mãe”. Padre Cícero nunca foi tratado de “pai”, mas de “padrinho”. Ele não era fundador, era benfeitor, guia, quem ajudava — mas isso não basta para ser pai. Pai é quem faz despertar para uma vida nova.

 

3. Deus Pai: fonte de vida e liberdade

Partindo dessa experiência cristã, podemos voltar a Deus Pai. É interessante constatar que o povo não acha que Deus é Pai porque nos deu a existência ou o dom da vida. Ninguém assistiu ao seu nascimento. O dom da vida — da existência — é algo abstrato: doutrina para o catequista ensinar, mas não verdade evidente.

Deus manifesta-se como Pai quando salva de um perigo iminente. Por exemplo, quando salva de uma doença, acidente, ameaça de morte, cataclismo natural, seca, enchente. Quase todas as pessoas podem contar algum milagre acontecido ao longo de sua vida. Os milagres são a prova de que Deus é Pai.

Os milagres mostram que Deus está muito perto, acompanhando os filhos nas dificuldades da vida, defendendo-os na hora do perigo e salvando-os quando estavam perecendo.

Claro que essa compreensão da paternidade divina é incompleta. Mas a orientação é boa. Deus salva e renova a vida. Conduz por caminhos seguros. Acompanha os filhos e não os deixa desamparados.

Tudo isso é verdade. Porém, Deus faz mais do que isso. Ele faz eminentemente o que fazem os fundadores. Deus dá valor à vida. Não cuida somente da sobrevivência biológica, mas, sobretudo, do conteúdo humano da vida. O ser humano não vive por viver — como os animais. Vive para se transformar pela sua ação num ser divino, como faziam os Santos Padres orientais. Deus é Pai que liberta e é fonte de liberdade. Deus promove a pessoa, joga-a para o seu futuro. Torna-a capaz de ir para além de si própria.

Nesse sentido, tudo o que Deus fez e disse para comunicar a nossa vocação, destino e libertação vem do Pai. O Pai enviou o Filho para que nos acompanhasse, despertando-nos para a vida verdadeira e comunicando-nos energias que estavam latentes, mas adormecidas.

 

4. Sentido da paternidade

A paternidade de Deus contém também toda uma sabedoria para os pais — genitores, no sentido familiar da palavra. Eles são chamados a imitar o modelo do Pai que está nos céus.

Quem mais precisa de pai são as filhas — mais ainda do que os filhos. As meninas que não tiveram pai permanecem frustradas, às vezes até o fim da vida, andando à procura do pai ausente. Quantas meninas casam-se cedo porque — também inconscientemente — não encontram o pai em casa. Procuram um homem mais velho, pensando que será o pai que faz falta. Infelizmente muitas vezes o homem não está consciente da situação verdadeira. Um homem mais velho que busca uma mulher muito mais jovem, muitas vezes procura não uma mulher, mas uma boneca, um objeto para brincar, e não uma mulher para compartilhar a vida.

Mediante a presença, as palavras, a escuta e a serenidade acolhedora, o pai desperta a personalidade da filha. Desperta-a para o mundo, para as coisas, as pessoas, as realidades da vida social. Pela sabedoria comunica-lhe a tranquilidade, a calma, a segurança de que precisa a menina — ainda mais no período da adolescência. O pai faz com que a filha sinta-se pessoa livre, chamada à liberdade.

Dessa maneira, o pai preserva a filha das experiências sexuais precoces, do sexo sem amor — ou do sexo forçado. Pois muitas jovens não sabem resistir. Acham que sempre devem obedecer quando um homem lhes faz esse tipo de convite. A barreira há de ser o pai.

Hoje o perigo aumentou. Como afirma uma psicanalista: hoje o sexo, longe de ser proibido, é uma obrigação. A jovem que não cede é vista como retrógrada, atrasada, alienada. O sexo é vivido como obrigatório, porque o sistema de valores da sociedade dominante o impõe.

A filha que se personalizou num diálogo profundo com o pai, tem estrutura suficiente para não ceder e procurar o marido que lhe convém. Se não o acha, prefere não se casar ao invés de cair na dependência de um homem que não a respeita.

Infelizmente muitas mulheres nunca tiveram o pai de que precisavam. Hoje há inúmeros casos de pais ausentes. Há os que nunca se mostram, os que fogem e não assumem, os que estão fisicamente em casa, mas nunca se dão conta das necessidades inconscientes e conscientes das próprias filhas.

Há casos ainda mais tristes de pais que brutalizam as filhas ou as reduzem à condição de escravas. E ainda pior: há pais que violam as próprias filhas, obrigando-as ao silêncio e mantendo-as em estado de terror. Infelizmente tais casos não são assim tão raros. Meninas que foram tratadas dessa maneira, nunca se esquecerão. Jamais chegarão à paz e à liberdade plena. A lembrança, a vergonha e o terror afeta-lhes o comportamento para sempre.

Pode-se reconhecer imediatamente uma mulher que foi estuprada pelo pai quando era menina. Claro que essas mulheres podem ter uma vida fecunda e bela, mas nunca mais estarão isentas de medo.

Homem e mulher descobrem-se como pessoas humanas face a face, um diante do outro. Onde aprendem isso? Na família.

Por isso, o pai também é necessário para o filho. A relação entre o pai e o filho não alcança o nível de profundidade da relação entre mãe e filho. No entanto, ela é necessária para evitar os desvios da relação mãe-filho — e as ambiguidades sempre possíveis.

Os adolescentes agressivos, grosseiros, desajustados sociais, que se drogam ou alcoolizam — e, de modo geral, antissociais — são frequentemente filhos sem pai. Nesses casos, ou o pai não existe, ou fugiu, ou faz de conta que não tem filho e não se responsabiliza por ele.

Tais adolescentes reduzem as próprias mães ao papel de escravas, e elas se conformam porque eles são os homens da casa e, desde cedo, reconhecem-lhes o direito de mandar. Tais adolescentes passam a fazer, então, o que querem. Não há limites sequer à agressividade.

O papel do pai para os filhos é, essencialmente, mostrar-lhes o respeito pela mulher — pela mãe e, pelas irmãs em primeiro lugar. A fonte de todos os vícios é a agressividade para com a mulher — em primeiro lugar para com a própria mãe.

As mães sem marido são fracas. Querem comprar o afeto do filho para substituir a ausência do pai. Porém, o preço que pagam é alto. Na realidade esse preço não pode ser pago.

Muitos pais e mães acham que cumpriram o seu papel quando deram aos filhos o conforto material e a preparação profissional que lhes permita gozar idêntico conforto mais tarde. Com isso, esquecem-se do principal: despertar para que estruturem bem a personalidade e se tornem pessoas livres. É assim que faz o nosso Pai dos céus, que enviou o Filho e o Espírito Santo para realizar a tarefa de chamar para a vida verdadeira.

Assim como Jesus foi chamado de Pai, por ser o realizador da paternidade do Pai na humanidade, assim também certas personalidades excepcionais — que prolongaram a tarefa de Jesus —, receberam o nome de pai.

Na Igreja, ao lado da hierarquia jurídica que organiza a vida exterior e material, há uma hierarquia de paternidade. Os bispos são sucessores de Jesus no aspecto jurídico. Porém, os sucessores de Jesus no sentido espiritual e profundo, realmente humano, são os pais e as mães espirituais. Às vezes as duas funções podem estar reunidas na mesma pessoa. Porém, são casos excepcionais. Por exemplo: são Basílio ou santo Agostinho. Não basta dar a uma pessoa o nome de padre (ou pai) para que seja realmente pai.

 

5. Resistências litúrgicas (de invocar a Deus Pai)

Uma questão fica pendente. Jesus mandou dar a Deus o nome de Pai. No entanto, basta consultar os livros litúrgicos para constatar que não está havendo obediência a essa determinação. Quase todas as orações dizem “Deus”, e não “Pai”. Muitas vezes “Deus” é qualificado “Deus todo-poderoso”, “Deus onipotente”. Depois do Vaticano II, em alguns casos, a palavra “Pai” começou a aparecer. Após Trento, não.

Por que os que preparam os livros litúrgicos — nas altas instâncias — não têm presente esse ensinamento de Jesus? Afirma-se que nesses livros encontramos a oração oficial da Igreja. Neles, entretanto, há essa lacuna — ainda bem que no final da oração acrescenta-se “por Jesus Cristo nosso Senhor”. No entanto, mesmo assim, permanece algo estranho.

A consequência desse fato é que muitos católicos observantes — aqueles que estão mais apegados à paróquia —, também deixam de usar a palavra “Pai” e usam a palavra “Deus”, nas suas orações.

Acontece que a liturgia romana foi muito inspirada no direito romano e na teologia imperial. Nesse contexto, Deus é antes de tudo soberano, senhor, absoluto, imutável, autor de tudo o que existe e juiz implacável que tudo vê, tudo sabe e não julga segundo a misericórdia — mas antes de tudo segundo a justiça própria do direito romano. As orações estão inspiradas nesse contexto e tinham por finalidade inculcar a todos os cristãos a obediência, a submissão, a entrega total nas mãos da Igreja — sem questionamento algum.

O Vaticano II mudou um pouco as fórmulas, mas ainda conservou muito disso da liturgia tridentina. Claro que muitos bispos não sabiam das origens imperiais desse linguajar eclesiástico — assim como de muitos costumes e da organização do governo. Muitos continuam ignorando até hoje. Como as orações oficiais são rezadas mecanicamente — sem que se preste atenção às palavras —, não incomodam muito. No entanto, há um problema. Quando, por acaso, alguns católicos fazem questão de prestar atenção às palavras que estão rezando, emerge o mal-estar. Entre os evangelhos e a liturgia aparece a defasagem.

Quando virá a correção?

Não virá tão cedo — já que as pessoas encarregadas da liturgia, na cúria romana, não se dispõem a aceitar mudanças. Fixam-se na lei e nada mais. No entanto, os homens são mortais e depois deles virão outros. Virá o dia em que se fará a correção que o Vaticano II esperava.



[1] Cf. Kajetan Eser, Origens e espírito primitivo da Ordem Franciscana, Petrópolis, Vozes, 1972, pp. 58ss, 74ss.

[2] Cf. Eduardo Hoornaert, Crônica das Casas de Caridade, São Paulo, Loyola, 1981, pp. 59-115. Sobre Padre Ibiapina, ver também J. Comblin: “Padre Ibiapina a caminho da santificação” in Vida Pastoral 183 (julho-agosto de 1995), pp. 21-26.

[3] Cf. Marcelle Auclair, La vie de sainte Thérèse d’Avila, Paris, Seuil, 1960, pp. 229-241.

Pe. José Comblin