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Publicado em novembro-dezembro de 2022 - ano 63 - número 348 - pág.: 30-35

A Eucaristia, fonte da sinodalidade

Por Sergio Sezino Douets Vasconcelos*

O texto apresenta alguns aspectos da relação entre Eucaristia e sinodalidade, enfatizando a finalidade da Eucaristia, que nos torna corpo místico de Cristo a partir da comunhão e da participação (koinonia) nesse corpo. Com base em tal realidade, busca problematizar, em uma perspectiva pneumatológica, a sinodalidade como o modo de ser da Igreja.

1. O desafio da sinodalidade na contemporaneidade

O tema da sinodalidade, embora não seja algo novo na vida da Igreja, tem tido grande repercussão nos últimos tempos. Como afirmou o papa Francisco: “O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” (FRANCISCO, 2015). Porém, o papa mesmo reconhece que “é um conceito fácil de exprimir em palavras, mas não é assim fácil pô-lo em prática” (ibidem). Os pecados existentes entre nós, juntamente com posturas eclesiológicas assumidas ao longo da história, contribuíram, não poucas vezes, para certo ofuscamento dessa experiência estruturante na Igreja.

Não se trata, simplesmente, de uma estratégia metodológica a ser adotada. A sinodalidade é o modo de ser da Igreja, que brota da Eucaristia. Como nos recorda o papa:

Se compreendermos que, como diz São João Crisóstomo, “Igreja e Sínodo são sinônimos” – pois a Igreja nada mais é do que este “caminhar juntos” do rebanho de Deus pelas sendas da história ao encontro de Cristo Senhor –, entenderemos também que dentro dela ninguém pode ser “elevado” acima dos outros. Pelo contrário, na Igreja, é necessário que alguém “se abaixe”, pondo-se a serviço dos irmãos ao longo do caminho (FRANCISCO, 2015).

No entanto, para amadurecermos no caminho da sinodalidade, duas atitudes são fundamentais: a abertura à conversão pessoal e pastoral, como nos lembra a Conferência de Aparecida, e a sempre necessária “volta às fontes”, na busca de redescobrir a jovialidade dos fundamentos da experiência sinodal.

2. A experiência eucarística, fonte da comunhão eclesial

A Eucaristia e o batismo são os sacramentos estruturantes da Igreja como koinonia (comunhão e participação) no corpo e sangue de Cristo. E a koinonia tem seus sinais visíveis na comunhão na fé, nos sacramentos, no credo e na pessoa do bispo, sinal visível dessa realidade. A encíclica Ecclesia de Eucharistia (n. 23), ao refletir sobre 1Cor 10,16-17, recorda-nos o seguinte:

Pela comunhão eucarística, a Igreja é consolidada igualmente na sua unidade de corpo de Cristo. A esse efeito unificador que tem a participação no banquete eucarístico alude S. Paulo, quando diz aos coríntios: “O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão” (1Cor 10,16-17).

Partindo dessa constatação, podemos afirmar que a celebração eucarística tem como finalidade nos transformar no corpo eclesial de Cristo, mediante a comunhão no corpo sacramental (CNBB, 2005, p. 80).

Como nos lembra o papa emérito Bento XVI:

[…] a Igreja é o Corpo de Cristo e renova-se continuamente graças à Eucaristia. Na Eucaristia comemos todos o mesmo pão, por natureza numericamente um – Cristo, que não se deixa transformar em nossa substância corpórea, mas, ao contrário, é ele que nos assimila no seu corpo e, por conseguinte, faz todos nós um único Cristo. […] As consequências que daí resultam são deveras importantes. Para Paulo, a Igreja não é simplesmente corpo místico, mas corpo verdadeiramente de Cristo, ou, em outros termos, para Paulo, a expressão: “Corpo de Cristo” (isto é, os cristãos), não é apenas uma comparação ou uma metáfora, mas uma realidade que exprime a própria essência da Igreja (RATZINGER, 2016, p. 109-110).

Não poucas vezes, principalmente a partir do segundo milênio, a ênfase, na catequese eucarística, é dada ao “encontro pessoal” com Cristo, compreendido em uma perspectiva intimista, que corre o perigo de empobrecer e ofuscar a vitalidade e os desdobramentos eclesiais da experiência eucarística, reduzindo o mistério eucarístico a um “culto à hóstia”, em alguns casos com forte apelo emocional e com influência de elementos estranhos à tradição litúrgica e sacramental da Igreja.

O ápice da experiência eucarística é a plena comunhão com o corpo eclesial de Cristo, a Igreja (TEXTO-BASE, 2019). Na Eucaristia, é o próprio Cristo que nos atrai para seu corpo. Infinitamente mais importante que uma experiência meramente subjetiva e intimista, na Eucaristia, Cristo nos arranca da mesmice da nossa existência, marcada pela fragmentação, para permanecermos em outra dimensão com ele, a qual só pode ser vivida de forma processual e na medida em que, com a ajuda da graça de Deus, nos deixamos atrair rumo ao seu corpo místico. É na experiência eucarística que vamos nos conformando a ele, na escola mistagógica do sacramento da Eucaristia. Quando, verdadeiramente, se vive o mistério eucarístico, o que brota dessa experiência é uma Igreja que encontra e celebra sua identidade como corpo, unido pela “comunhão e participação”, vivendo na permanente busca escatológica de comunhão em meio à sua diversidade.

3. O desdobramento estrutural da Igreja, a partir da Eucaristia, é a escuta  recíproca, de forma sinodal

A comunhão dos batizados, que caracteriza a Igreja, é ponto de partida da sinodalidade (LG 32). Por seu turno, a dimensão pneumatológica é constitutiva da experiência sinodal. Todos os batizados e batizadas, em torno da Eucaristia, são testemunhas do Espírito Santo. Todos, em algum nível, são docentes e discentes na comunidade eclesial. Todos têm algo a dizer e todos têm sempre o que escutar, em torno da Palavra de Deus. Isso é assim porque todos e todas possuem o Espírito Santo, como nos alerta São Paulo: “Ou vocês não sabem que seu corpo é templo do Espírito Santo, que está em vocês e lhes foi dado por Deus? Vocês já não pertencem a si mesmos” (1Cor 6,19). Por isso, é importante aprofundar um caminho de conversão pastoral que supere “monólogos eclesiais”. Como nos recorda o papa Francisco:

Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta, ciente de que escutar “é mais do que ouvir”. É uma escuta recíproca, onde cada um tem algo a aprender. Povo fiel, colégio episcopal, bispo de Roma: cada um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito Santo, o “Espírito da verdade” (Jo 14,17), para conhecer aquilo que ele “diz às Igrejas” (Ap 2,7) (FRANCISCO, 2015).

Desde suas origens, a Igreja vive de forma sinodal. Um dos testemunhos mais antigos acerca disso se encontra no texto dos Atos dos Apóstolos que apresenta a controvérsia sobre a necessidade de circuncisão para os cristãos (cf. At 15,1-22). São ricas as fontes sobre experiências sinodais na Igreja, como, por exemplo, as do século II. Em situações que ultrapassavam as condições das Igrejas locais para resolver desafios, surgiram os sínodos regionais de bispos. Eles se reuniam e discutiam, juntos, problemas de ordem disciplinar, doutrinal, pastoral etc., e as resoluções eram assumidas pelo conjunto dos bispos das Igrejas locais envolvidas. Na ausência de um bispo da região envolvida no problema, era prática comum enviar-lhe uma carta do conjunto dos bispos reunidos no sínodo, partilhando com ele o que havia sido resolvido de forma colegial, e o bispo em questão assumia aquelas decisões na sua Igreja local. Infelizmente, em alguns momentos da história da Igreja, embora nunca tenha desaparecido totalmente a tradição dos sínodos, a experiência de “caminhar juntos”, exercitando a escuta mútua, foi perdendo relevância diante de certos modelos eclesiológicos que, principalmente a partir do segundo milênio, foram surgindo e fragilizando as mediações de escuta.

Por isso, é sempre oportuno lembrar que o “caminhar juntos” (sínodo), com base na escuta mútua, não é mera metodologia ou estratégia eclesial, mas sim realidade constitutiva da Igreja, que brota da experiência eucarística. Diante dos desafios da cultura contemporânea, “a Igreja é chamada a ativar, em energia sinodal, os ministérios e os carismas presentes na sua vida para discernir os caminhos da evangelização na escuta da voz do Espírito” (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, 2018, n. 53).

Conclusão: XVIII Congresso Eucarístico Nacional, convite a beber nas fontes que fortalecem a sinodalidade na Igreja

A celebração do XVIII Congresso Eucarístico Nacional é oportunidade de reflexão e de amadurecimento desses temas na vida da Igreja, aprofundando uma catequese eucarística que nos (re)lembre as fontes mais cristalinas e profundas da Eucaristia, a qual nos torna uma Igreja sinodal.

Que o XVIII Congresso Eucarístico Nacional nos ensine a encontrar, na Eucaristia, o modelo e o alimento da vida cristã de cada dia. Que o celebremos de tal forma, que nos ajude a redescobrir a fascinação secreta e irresistível que a ceia de Jesus pode exercer sobre as pessoas, principalmente, sobre aquelas que o sistema deste mundo seduziu para o egoísmo e o consumo leviano e depredador da vida e da natureza (TEXTO-BASE, 2019, p. 141-142).

Os desafios eclesiais na contemporaneidade, vistos com os olhos da missionariedade, à luz da experiência eucarística, são também apelos do Espírito à Igreja, para que, alimentada pela Eucaristia, se torne, cada vez mais, “comunidade da escuta”, capaz de escutar, ad intra e ad extra, as múltiplas vozes que a constituem. Comprometida com a caminhada comum, torne-se uma Igreja sempre mais em saída e misericordiosa com os que sofrem, na busca da prática eucarística que se dilata sobre o mundo.

Referências bibliográficas

COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. A sinodalidade na vida e na missão da Igreja. Brasília, DF: CNBB, 2018. (Documentos da Igreja, n. 48).

CONCÍLIO VATICANO II. Lumen Gentium: Constituição Dogmática sobre a Igreja. In: CONCÍLIO VATICANO II. Compêndio do Concílio Vaticano II: constituições, decretos, declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). A Eucaristia na vida da Igreja: subsídios para o Ano da Eucaristia. Brasília, DF: CNBB, 2005. (Estudos da CNBB, n. 89).

FRANCISCO, Papa. Discurso do papa Francisco por ocasião da comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos, 17 out. 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html. Acesso em: 5 jan. 2022.

JOÃO PAULO II, Papa. Ecclesia de Eucharistia: Carta Encíclica sobre a Eucaristia e a sua relação com a Igreja. São Paulo: Loyola, 2003.

RATZINGER, Joseph. O novo povo de Deus. São Paulo: Molokai, 2016.

TEXTO-BASE do XVIII Congresso Eucarístico Nacional. São Paulo: Paulus: Paulinas, 2019.

Sergio Sezino Douets Vasconcelos*

*Diácono e professor. E-mail: [email protected]