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Publicado em novembro – dezembro de 2018 - ano 59 - número 324

A liturgia em tempos de Francisco

Por Márcio Pimentel

Introdução

O fruto mais maduro do Concílio Vaticano II, a liturgia, encontra no pontificado do papa Francisco a ocasião perfeita para a necessária e urgente revisão de rota. Na verdade, os ventos da reconstrução “franciscana” da Igreja começaram a envolver a liturgia já no princípio do pastoreio de Francisco, quando, na Quinta-feira Santa de 2013, ele lavou os pés de jovens muçulmanos, incluindo mulheres, ao celebrar a missa da Ceia do Senhor na casa de detenção Casal del Marmo. Ainda que, à época, alguns analistas tenham diminuído a importância do gesto do ponto de vista da sacramentalidade, desvestindo-o até mesmo de seu aspecto religioso (cf. PAPA…, 2013), a decisão de rever as rubricas que regem o rito acusou uma direção obviamente contrária.

Em dezembro de 2014, o papa Francisco dirigiu uma carta ao já então prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, cardeal Sarah. Nesta, solicitava que as rubricas para o rito do lava-pés fossem revistas, de modo que, “doravante os Pastores da Igreja possam escolher os participantes neste rito entre todos os membros do Povo de Deus. Recomenda-se ainda que aos escolhidos seja fornecida uma explicação adequada do mesmo rito” (FRANCISCO, 2014). As novas disposições quanto às rubricas somente entraram em vigor com a publicação do decreto da referida Congregação, um ano depois.

A mídia conservadora não poupou críticas na época do gesto de Francisco. Foi exatamente nesse momento que a oposição a ele passou a se fazer notar publicamente, conforme opina Jesús Bastante (2013). O papa começa a ser acusado de fomentar confusões, e a primeira delas será – evidentemente – de natureza litúrgica. O próprio prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, Robert Sarah, veio a público no intuito de diminuir o impacto da pequena reviravolta inaugurada pelo pontífice. O tom da resposta dada aos jornalistas sobre a obrigatoriedade de lavar ou não os pés de mulheres no rito da Quinta-feira Santa dava a entender que havia algo errado nas novas orientações oficiais: depois de afirmar que não haveria a obrigatoriedade de incluir mulheres no rito, “o cardeal explicou que um sacerdote ‘tem que decidir de acordo com a sua consciência e de acordo com o propósito para o qual o Senhor instituiu esta celebração’” (CARDEAL…, 2016).

  1. O “freio” pontifício à reforma litúrgica do Concílio Vaticano II

Não é novidade que o pontificado de são João Paulo II e, sobretudo, o “reinado” de Bento XVI coibiram o desenrolar da reforma litúrgica. O Concílio se viu estancado em sua potência renovadora, e a liturgia foi – sem dúvida – um dos espaços que sofreram severamente com a centralização romana. A “volta à grande disciplina”, diagnosticada por João Batista Libânio em sua obra clássica já no ano de 1983, fez-se notar no campo litúrgico também com a nomeação de prefeitos para a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, cujo perfil não se mostrava de acordo com a perspectiva renovadora apontada pelos padres conciliares na Sacrosanctum Concilium.

Do ponto de vista da produção magisterial desses prefeitos, o grande “passo atrás”, que se tornou o pivô do centralismo curial romano também em matéria litúrgica, veio com a instrução Liturgiam Authenticam (LA), do ano de 2001, que regulava (e ainda regula, embora já com ressalvas feitas pelo próprio Francisco) as traduções litúrgicas. Trata-se da quinta instrução para a “reta” aplicação da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, assinada pelo então prefeito, o cardeal Medina Estevez. Essa instrução se liga a uma anterior, Varietatis Legitimae (VL), que se seguiu à publicação da Carta Apostólica Vicesimus Quintus Annus, do então pontífice João Paulo II.

A quarta instrução trata da relação entre liturgia e cultura. O apelo do documento assinado pelo cardeal salesiano Javierre Ortas era claro: permitir que a Igreja fosse enriquecida com a “multiforme sabedoria dos povos da terra” onde o evangelho ressoasse (cf. VL 6). A língua é vista com um otimismo realista: “é através da língua materna, veículo da mentalidade e da cultura, que se pode atingir a alma de um povo, modelar nele o espírito cristão e permitir sua participação mais profunda na oração da Igreja” (VL 28). O número 30 dessa instrução é claríssimo ao destrinchar a competência da autoridade eclesiástica local, bem como a querida participação de estudiosos de teologia, liturgia, pastoral, e também da antropologia e da cultura. Até mesmo sugere recorrer às pessoas “sábias” que, no país, tenham sido enriquecidas com o evangelho. Apesar de todas essas “boas intenções”, o texto pulula em advertências aos riscos de a inculturação contaminar a fé. Prepara-se o caminho para a quinta instrução, Liturgiam Authenticam.

Esse documento mina o caminho de renovação eclesial pelas vias da liturgia, uma vez que determina a distinção entre a língua na qual a Igreja deveria comunicar-se pastoralmente e aquela reservada aos ritos litúrgicos (cf. LA 11). Tal tipo de aproximação da realidade linguística dos povos, embora de per si não pareça indicar uma retração no âmbito da inculturação, dá a possibilidade de se “reservar” uma língua para as celebrações litúrgicas, o que pode favorecer a imposição legítima de idiossincrasias estranhas às comunidades locais. Chega-se ao extremo de afirmar que um dialeto, por não gozar de estabilidade (qual língua goza?), de certa razoabilidade acadêmica a ele conferida, não pode ser usado plenamente como “língua litúrgica”. Essa instrução parece querer retroceder no tempo, a ponto de instigar as Igrejas locais à prática do latim como língua pacífica, nos lugares em que abundarem dialetos ou línguas, aceitando estes apenas em alguns momentos da celebração. Isto é, situa-se a Igreja exatamente no começo da reforma litúrgica.

  1. A reforma litúrgica no pontificado de Bento XVI

O centralismo romano ganhou força com a Liturgiam Authenticam, uma vez que as Conferências Episcopais dependem completamente da Santa Sé em quase todos os passos de implementação de traduções litúrgicas. O que se dissera anteriormente no documento Comme le Prévoit, em 1969, ainda no calor do Concílio e, portanto, muito próximo das fontes da renovação litúrgica, deveria ser deixado à parte. Nessa instrução sobre a tradução de textos litúrgicos, insiste-se que “pertence às Conferências Episcopais decidir dos textos a traduzir, preparar ou rever as traduções, aprová-las e, depois, promulgá-las, ‘fazendo ratificar seus atos pela Sé Apostólica’”. Já Liturgiam Authenticam determina que a simples eleição das línguas para as quais se pode traduzir os livros litúrgicos deve passar pela chancela (recognitio) da Cúria Romana, e as conferências nacionais não podem dar nenhum passo sem a expressa autorização curial.

Do ponto de vista técnico, a fixação curial da Santa Sé se impõe na escolha da maneira de traduzir. Desde Comme le Prévoit, as Conferências Episcopais elaboram suas traduções tendo por referência o método denominado equivalência dinâmica. Nessa maneira de traduzir, a atenção se concentra mais no plano do significado do que dos termos, em que se “tem como objetivo a comunicação do significado exato da mensagem original, expressando-o de forma natural no novo idioma” (BARNWELL, 2011, p. 15). Com a Liturgiam Authenticam já não se pode utilizar esse caminho, mas deve-se operacionalizar as traduções de acordo com a correspondência formal, de modo que o original latino deve ser traduzido fiel e exatamente, sem que haja lugar para a criatividade (cf. LA 20). Se, antes, a fidelidade ao texto original não estava ligada simplesmente à literalidade de cada palavra ou frase, devendo levar em conta a língua falada e o contexto no qual o processo comunicativo se dá, com a quinta instrução define-se que “seja traduzido com total integridade e com a maior exatidão, sem omissões nem acréscimos, em relação ao conteúdo, sem paráfrases ou glosas” (LA 20). Como bem afirma o teólogo liturgista Andrea Grillo, a plausibilidade dessa regra é absurda, uma vez que a modalidade “expressivo/experimental” de um âmbito linguístico – por exemplo, o latino-romano – é assumida quase como um modelo expressivo que se deveria impor às outras expressões linguísticas (GRILLO, 2016).

Aquilo que começou com a Liturgiam Authenticam ganhou força gradativamente com os novos prefeitos: os cardeais Arinze e Antonio Cañizares. Este último, ainda insistindo na linguagem dos “abusos”, como muito bem o exemplifica, já no pontificado de Francisco, a Carta sobre o Abraço da Paz, dirigida também às Conferências Episcopais. Esse documento, de caráter orientador, foi acolhido por alguns setores tradicionalistas e por não poucos fiéis sem suficiente instrução a respeito da questão como proibição do rito da paz por parte do papa Francisco. Claramente, sob a batuta de Bento XVI, os apoiadores do que se convencionou chamar de Reforma da Reforma ajudaram a produzir documentos sobre a liturgia que frearam e, em alguns casos, estancaram o ímpeto renovador da reforma litúrgica.

  1. Um exemplo: o caso do “pro multis”

Da época do cardeal Arinze, temos a instrução Redemptionis Sacramentum como ícone. Já no título se nota a impostação adversus haeresis do texto: “Sobre algumas coisas que se deve observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia”. O que se deseja é coibir abusos que se instauraram com o passar do tempo. Dos números introdutórios em que se apontam as motivações para a instrução, apenas um cita positivamente, mas de forma genérica, a reforma litúrgica. Ademais, insiste-se nas “sombras” da reforma, nos “abusos” que “obscurecem a fé”. É ainda com o cardeal Arinze à frente da Congregação para o Culto Divino que se implementa a discussão sobre o retorno ao pro multis na narrativa da instituição. Já em 2006, no ano seguinte à eleição de Bento XVI e a seu pedido, a Congregação para o Culto Divino despachou às Conferências Episcopais nacionais a solicitação para que – obedientemente – as traduções em andamento abandonassem o “por todos” da narrativa da instituição eucarística e utilizassem o “por muitos” (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, 2006, v. 43, p. 451). Um ano antes (julho de 2005), as mesmas conferências foram consultadas sobre o uso do “por todos” e do “por muitos”. Em resposta às mesmas conferências, a Congregação insistiu sobre a fidelidade das traduções “na linha da instrução Liturgiam Authenticam” e determinou que “todas” as conferências adotassem para a tradução seguinte do Missal Romano a expressão “por muitos” e não “por todos”. É interessante que, em 2008, ao oferecer elementos catequéticos sobre o “por muitos”, o Dicastério reconheça que o “sentido” equivale ao “por todos” e que esta era a intenção do Senhor (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, 2008, v. 45, p. 132).

Na época do cardeal Antonio Cañizares, Bento XVI, escrevendo ao episcopado alemão, fez distinção entre tradução e interpretação, processos que se haviam fundido na época posterior ao Concílio (BENTO XVI, 2014, p. 98). A argumentação do pontífice parte da constatação de que a diversidade de traduções com as quais tinha contato em seu pontificado não lhe permitia perceber o substrato latino de onde partiram, embora ele também reconheça que o pro multis tenha significado universalista na mente de Jesus (ou seja, “por todos”). Note-se que a preocupação não parece ser a compreensibilidade, por parte dos fiéis, daquilo que o texto dá a conhecer em seu conteúdo e significado, mas o completo desaparecimento do original latino por trás da tradução.

  1. O passo seguinte: o motu proprio “Summorum Pontificum” (SP)

No terceiro ano de seu pontificado, Bento XVI, de livre iniciativa, tornou legítimo o uso do rito preconciliar. O pretexto era a aproximação com os dissidentes lefebvrianos e a caridade pastoral com os fiéis saudosos da liturgia tridentina. Entretanto, esse foi apenas um passo para que a teologia litúrgica do pontífice se impusesse com toda evidência sobre a reforma litúrgica sob o impulso do Concílio Vaticano II. O próprio cardeal Arinze, no final de 2008, ainda prefeito da Congregação para o Culto Divino, escreveu um artigo sobre os insights litúrgicos do pontífice, entre os quais a discussão sobre o possível retorno à orientação litúrgica versus orientem ou versus Dei (CONGREGAÇÃO PARA DOUTRINA DA FÉ, 2007, v. 43, p. 550-551), o que foi proposto explicitamente mais tarde pelo cardeal Sarah. Isto é, a lógica da Summorum Pontificum já não estaria restrita ao que se denominou “forma extraordinária”, mas também se aplicaria à “forma ordinária”, o que posteriormente foi denominado pelo mesmo cardeal Sarah de reconciliação litúrgica e mútuo enriquecimento entre os Missais Romanos (o de Pio V e o de Paulo VI).

Quando surgiu a instrução Universae Ecclesiae e se efetivou o fortalecimento da Comissão “Ecclesia Dei”, os bispos locais foram obrigados a acolher os pedidos advindos dos fiéis que se sentiam mais à vontade com o rito de Trento. Já não importava se foram contemporâneos desse rito e tinham dificuldades com o novo ordo. Bastava o interesse excêntrico e a formação de um grupo estável, para que os ordinários locais fossem obrigados a atender às suas exigências.

Podemos reconhecer com Massimo Faggioli, historiador italiano, que a decisão do papa Bento de reabilitar o Missal terá impactos duradouros na Igreja (FAGGIOLI, 2017). Na verdade, a autorização para o uso do Missal piano (de Pio V) na edição típica de 1962 já era praxe no governo de João Paulo II para casos bem determinados. Conforme Faggioli, João Paulo II já havia

procurado acomodar os tradicionalistas litúrgicos emitindo indultos especiais para celebrarem a liturgia pré-Vaticano II, particularmente em 1984 e 1988. Mas jamais lançaram dúvida sobre a legitimidade e os bons frutos da reforma litúrgica conciliar, cuja estrutura teológica e eclesiológica se encontra na constituição Sacrosanctum Concilium (FAGGIOLI, 2017).

Do ponto de vista teológico, a Summorum Pontificum não admite a noção de ruptura entre os dois Missais – de Pio V e de Paulo VI –, insistindo que se trata de um mesmo rito com formas distintas, um ordinário e outro extraordinário. Isso é dito claramente na Carta aos Bispos que acompanha o motu proprio: “Não há nenhuma contradição entre uma e a outra edição do Missale Romanum. Na história da liturgia, há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura” (BENTO XVI, 2007). Trata-se de um “teorema”, na opinião de Andrea Grillo, que dá a justificativa necessária para que se estabeleçam dois usos diferentes de uma mesma lex orandi (GRILLO, 2011, p. 6). É bom que se recorde que a liberação não se restringe apenas ao Missal, mas inclui outros rituais não reformados a mando do Concílio Vaticano II, incluindo, portanto, lecionários e calendários já superados.

Uma vez que a liturgia dá concretude à Igreja, sabe-se que as consequências vão desde o aspecto celebrativo, passando pela pastoral e pela espiritualidade, até alcançar o nível eclesiológico. Sobre este último aspecto, Alexander Saberschinsky é da opinião que a compreensão eclesiológica do Missal de 1962 é diversa do Missal de 1970, já que no primeiro a assembleia não possui nenhum papel designado e, no segundo, é considerada como celebrante (SABERSCHINSKY, 2008, p. 180). De fato, uma das guinadas do Concílio Vaticano II em matéria litúrgica diz respeito ao lugar de destaque que a assembleia alcança. A reforma repensou os ritos e os reordenou no intuito de oferecer aos fiéis a possibilidade de “haurir” do verdadeiro espírito cristão (cf. SC 14), pela via da participação ritual. Já não se trata da participação apenas “interior”, como aparece na Carta Encíclica Mediator Dei de Pio XII. Agora, os membros da Igreja deverão tomar parte na obra salvadora de Cristo mediante os ritos e preces (cf. SC 48). As recomendações presentes na Sacrosanctum Concilium são muito claras a esse respeito: “Para fomentar a participação ativa, promovam-se as aclamações dos fiéis, as respostas, a salmodia, as antífonas, os cânticos, bem como as ações, gestos e atitudes corporais. Não deve deixar de observar-se, a seu tempo, um silêncio sagrado” (SC 30). Indubitavelmente, com essas orientações, deseja-se que a comunidade de fé não se comporte como espectadora muda. Pio X, subliminarmente, já recomendava isso no início do século XX, em seu motu proprio Tra le Sollecitudini, quando afirmava a importância da participação ativa do povo. Pio XI retomou esse princípio de maneira explícita na bula Divini Cultus (n. IX). Pio XII, na Mediator Dei, desenvolveu as ideias dos seus predecessores de maneira sistemática.

No entanto, será a Sacrosanctum Concilium que providenciará os meios para que a participação nos mistérios de Cristo se faça oportuna e possível, ao recomendar vivamente a reforma completa da liturgia. Conforme dito acima, a própria noção de participação será ampliada, e será prevista uma diversidade de modalidades para o envolvimento na ação litúrgica. Essa participação não será tratada como concessão da hierarquia, mas como a afirmação da mais íntima natureza da liturgia, entendida como ação de Cristo e da Igreja, do Corpo-Total, cabeça e membros (cf. SC 26). Desse modo, a reforma deverá prever a compreensão e participação dos ritos, de modo que o povo celebrante tenha acesso à obra de Cristo (cf. SC 21). O povo deverá aprender não apenas a sentir-se representado por aquele que preside, mas, sobretudo, deverá reconhecer-se como sujeito – no Espírito – da oferta sacrifical de Cristo (cf. SC 48).

 Compreende-se, portanto, o dano causado à pastoral litúrgica estabelecida com base na Sacrosanctum Concilium. Como tratar e providenciar a participação ativa dos fiéis, de maneira que se percebam celebrantes, unidos àquele que preside e aos demais ministros e ministras, num rito que – constitutivamente – não foi pensado para a participação do povo? Não se deve esquecer que o Missal plenário piano tem como elemento estruturante o Missal da Cúria Romana, isto é, previsto para a celebração privada. Um rito centrado na figura do “sacerdote”, sem preocupação alguma com o povo. Basta averiguar o Ritus Servandus que precede o Missal para verificar o fato. E veja-se que até com esse detalhe a Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II se preocupou: “Na revisão dos livros litúrgicos, procure-se que as rubricas tenham em conta a parte que compete aos fiéis” (SC 31).

Desse modo, mesmo que o pontífice seja claro ao afirmar que o “Missal Romano promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da ‘lex orandi’ (‘norma de oração’) da Igreja Católica de rito latino” (SP 1), vê-se estabelecida uma espécie de “estado de exceção” eclesial, na qual, com certa normalidade, se faculta aos presbíteros, segundo seu desejo, variar os usos do que se considera um mesmo rito. Isso significa declarar que, juridicamente, o Missal piano, objeto de reforma que culminou em um Missal diferente (de Paulo VI), pode ser utilizado com ampla liberdade. A reforma litúrgica, portanto, perde – do ponto de vista prático – sua razão de ser, e os rituais e lecionários dela oriundos já não são indispensáveis para formar a fé e dar-lhe concretude, uma vez que, mesmo aos domingos e dias santos, se pode celebrar segundo os cânones do Missal piano. A única exceção é para a missa “sem povo” no Tríduo Pascal. Entenda-se o “estado de exceção” na perspectiva de que, com as prescrições da Summorum Pontificum, a Sacrosanctum Concilium – norma primeira para a pastoral litúrgica católica – é praticamente destituída de sentido e autoridade.

Talvez para evitar esse tipo de situação, Paulo VI apressou-se em afirmar não ver nenhum sentido em celebrar segundo o Missal não reformado, pois se trataria do

“[…] símbolo da condenação do Concílio. Eu não vou aceitar, em hipótese alguma, a condenação do Concílio através de um símbolo. Se essa exceção para a liturgia do Vaticano II fosse concedida, todo o Concílio ficaria abalado. E, como consequência, a autoridade apostólica do Concílio ficaria abalada” (SCHMIT, 2012).

Conclusão: nos passos de Francisco

Não são poucos os fiéis, clérigos e leigos, que têm saído em defesa do ministério petrino do papa Francisco. Desde que pediu aos membros da Igreja em todo o mundo que orassem por ele e baixou a cabeça para que o povo o abençoasse, Francisco é continuamente apontado como destruidor da fé católica. É evidente que seus críticos mais audazes e ferrenhos são adeptos da mentalidade e da prática litúrgica promovidas pela Summorum Pontificum. Não se sentem à vontade na Igreja pós-conciliar e estavam certos de que as últimas quase cinco décadas seriam apagadas da memória eclesial, o que seria garantido simbolicamente pelo que convencionaram chamar de usus antiquior da liturgia romana, compreendendo a reforma de Trento como a recondução mais pura aos costumes mais antigos – o que carece, evidentemente, de base documental teológica e histórica. Do ponto de vista das fontes, sabe-se que o Missal de Paulo VI seria bem mais “antigo” do que o Missal tridentino, o qual coincide com o Missal para a missa privada da Cúria Romana.

Quando da eleição de Francisco, muito se perguntou sobre o futuro da Summorum Pontificum. Relata-se que, enquanto cardeal em Buenos Aires, embora tenha acolhido o motu proprio de Bento XVI, disponibilizando uma capela para a celebração da missa piana, a real recepção do documento papal não se fez notar (cf. FELIPINI, 2017, p. 14). Mesmo que Francisco tenha sido rápido em aplicar as diretivas do motu proprio, são patentes suas opções em matéria litúrgica, com seu estilo despojado quando se trata de presidir a eucaristia, preferindo a estética pós-conciliar àquela de seu predecessor (cf. CRAUGHWELL, 2013). Sobretudo, se pode ler, nas entrelinhas de seus discursos sobre o “saudosismo” de alguns e o apego ao passado, que Francisco não tolera a rigidez, pois esta nada tem que ver com a novidade e a alegria do evangelho. Sobre a missa tridentina, especificamente, são suas as palavras:

“Eu sempre tento entender o que está por trás das pessoas que são jovens demais para ter vivido a liturgia pré-conciliar, mas que a desejam. Às vezes eu me vejo em frente de pessoas que são rigorosas demais, que têm uma atitude rígida. E eu me pergunto: Como pode uma tal rigidez? […] Essa rigidez sempre esconde alguma coisa: insegurança, às vezes até mais […]. A rigidez é defensiva. O verdadeiro amor não é rígido” (KIRCHOFF, 2017).

Como opina Massimo Faggioli, com Francisco a liturgia encontrou seu lugar no horizonte querido e descrito pela Sacrosanctum Concilium e corroborado pela reforma litúrgica, haja vista as reiteradas reações de Francisco às declarações nada convenientes do atual prefeito da Congregação para o Culto Divino (cf. FAGGIOLI, 2016), na tentativa de operar a famosa “reforma da reforma”.

O ponto alto da perspectiva de Francisco sobre a liturgia pode ser colhido em sua mensagem aos participantes da 68ª Semana Nacional de Liturgia na Itália. Na ocasião, o papa advertiu sobre a irrenunciabilidade da reforma litúrgica, classificada por ele como um acontecimento irreversível. Em sua fala, destacou a importância da liturgia como encontro com Jesus Cristo vivo, sempre presente na sua Igreja. Sobretudo, resgatou a compreensão conciliar de que o sujeito eclesial das celebrações não é o clero, mas o povo: “por sua natureza, a liturgia é popular” (FRANCISCO, 2017). Também, retomou a perspectiva de Paulo VI ao relacionar organicamente a reforma ao Concílio, de modo que o trabalho urgente se situa na redescoberta das motivações conciliares: “Não se trata de reconsiderar a reforma revendo as suas escolhas, mas de conhecer melhor as razões subjacentes, inclusive através da documentação histórica, assim como de interiorizar os seus princípios inspiradores e de observar a disciplina que a regula” (FRANCISCO, 2017).

Por fim, o último passo ofertado pelo papa, na esteira da reforma conciliar, deu-se com o motu proprio Magnum Principium, com o qual é devolvida às Conferências Episcopais a autoridade sobre as traduções litúrgicas, que, desde Liturgiam Authenticam, estavam sob quase total controle da Sé Apostólica. Ainda que o cardeal Sarah tentasse amenizar o impacto dessa decisão de Francisco, o pontífice foi rápido em corrigir o prefeito. Enquanto Sarah afirmava reativamente que “não há, portanto, mudança notável alguma concernente aos padrões impostos, e o resultado que deve se seguir deles para cada livro litúrgico” (COLLINS, 2013), o pontífice lhe respondeu e corrigiu publicamente, deixando claro não apenas que existem equívocos em seu commentaire na interpretação do motu proprio, mas sobretudo que a práxis da Congregação para o Culto Divino, no que diz respeito à tradução, deverá ser alterada:

O Magnum Principium não sustenta mais que as traduções devem ser conformes em todos os pontos às normas da Liturgiam Authenticam […]. Por isso, os números individuais da Liturgiam Authenticam devem ser atentamente compreendidos de novo […]. Portanto, fica claro que alguns números da Liturgiam Authenticam foram revogados ou decaíram […]” (CARTA…, 2017).

Os especialistas em teologia litúrgica aguardam um novo documento sobre as traduções litúrgicas que substitua definitivamente a Liturgiam Authenticam. Certamente, seguindo as intuições do pontífice, deverá ser algo na direção da primeira orientação da Santa Sé sobre as traduções, o documento Comme le Prévoit (cf. FERRONE, 2017), que respeita o lugar e o papel primaz das Conferências Episcopais nacionais quanto ao conhecimento das línguas locais com as quais o culto divino se exprime e por meio das quais se experimenta o encontro com o Senhor.

 

Bibliografia

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Márcio Pimentel

Pe. Márcio Pimentel é presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia e pároco da Paróquia São Sebastião e São Vicente. Especialista em Liturgia pela PUC-SP e em Música ritual pela Faculdade Campo Limpo Paulista. Músico e compositor, licenciado em Educação Musical pela UEMG. É articulista do Jornal de Opinião (revista eletrônica da Arquidiocese de Belo Horizonte). Atualmente, é professor na Pós-Graduação Latu Sensu em Liturgia cristã pela FAJE-REDE CELEBRA e mestrando em Teologia (FAJE-CAPES). E-mail: [email protected]