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Publicado em janeiro-fevereiro de 2023 - ano 64 - número 349 - pág.: 24-35

A Querida Amazônia navegando para a Igreja Sinodal

Por Vidal Enrique Becerril*

Em outubro de 2019, foi concluído o Sínodo para a Amazônia em Roma e, em fevereiro de 2020, o papa Francisco publicou a Exortação Pós-sinodal Querida Amazônia. Anunciou também que o próximo Sínodo seria em 2022 (depois transferido para outubro de 2023, devido à pandemia). É o momento privilegiado de refletir sobre “novo jeito de ser Igreja”, que abra novos horizontes de sinodalidade, e de superar o modelo hierárquico piramidal, herança histórica de um catolicismo feudal implantado em terras brasileiras com força e poder, o qual atravessou momentos-chave de nossa história, como a Independência e a República. Neste artigo, buscamos levantar alguns pontos que poderão pensar uma Igreja com rosto sinodal, num projeto mais inculturado, mais fraterno e com um protagonismo maior de leigas e leigos.

 

Introdução

Como missionário em terras brasileiras há muitos anos, fui capaz de perceber a dinâmica da ação pastoral em seus diversos momentos e desafios: uma Igreja com viés hierárquico, invariavelmente em aliança com o poder – quer no período colonial, quer após a Proclamação da Independência –, sempre mostrou sua força e influência. Ainda hoje, esse modelo piramidal de Igreja é encontrado em muitos rincões deste país.

Ao lado dessa visão de Igreja mais imperial, é possível também vislumbrar o rosto de uma Igreja saída do Concílio Vaticano II, das Conferências de Medellín, Puebla e Aparecida, Igreja da qual tive a oportunidade de participar, além de testemunhar: uma Igreja mais sinodal. Atacada de todos os lados, esse modelo de Igreja povo de Deus alcança, com o Sínodo para a Amazônia – assim o esperamos –, seu momento de virada. O papa Francisco, com esse Sínodo, aponta para a Igreja do terceiro milênio.

Acreditamos que a Igreja na América Latina e, particularmente, no Brasil deu passos significativos rumo a esse sonho de sinodalidade.

1. Um sínodo que não chegou à Amazônia

Sínodo. Lembremo-nos da origem grega da palavra, que significa “juntos caminhando”. Tem muito a ver com a comunidade eclesial e com a caminhada.

Sente-se que o Sínodo para a Amazônia, também devido à pandemia, não chegou ao povo nem a muitos agentes de pastoral. Como um rio, parece que não desaguou na sua foz.

A recepção não foi tão acolhedora como se esperava. As comunidades muitas vezes não têm conhecimento dos nossos debates e acompanham pouco nossos assuntos. Documentos e encontros raramente chegam ao povo fiel e tradicional, que continua ainda na voz passiva e vivendo o cristianismo de forma meio infantil. A linguagem desses documentos também não ajuda, pois costuma ser pouco pedagógica e pouco popular.

Em relação ao Sínodo para a Amazônia, tanto no Documento final quanto na exortação apostólica, já temíamos ver poucos avanços. Gritos e vozes que chegaram das periferias e das bases no Instrumento de trabalho não fizeram eco naqueles mármores romanos. Cerca de 85 mil pessoas haviam participado, um ano e meio antes, com muitos encontros preparatórios. Em Roma, poderia ter sido escolhido outro modelo, o poliedro, com vários lados, para recolher melhor as ideias e as experiências do povo. Temos de pensar nas fortes pressões sofridas pelo papa na preparação do Sínodo.

Chegaram a esse Sínodo “rios” importantes, como o Concílio Vaticano II, o Encontro de Medellín, de 1968, o Encontro das Igrejas Amazônicas de Santarém-PA, em 1972, a exortação Evangelii Nuntiandi, de São Paulo VI, a Conferência do Celam em Aparecida, a exortação Alegria do Evangelho, do papa Francisco, sua encíclica Laudato Si’ – surpreendente manifesto ecossocialista – e, finalmente, o Instrumentum laboris.

Voltando à preparação sinodal, participei em Belém de algumas reuniões e, sobretudo, do encontro, em agosto de 2019, com cerca de sessenta bispos. Havia vários assessores e uma participação intensa do laicato, das religiosas e de outros agentes de pastoral.

O papa já havia dado o “pontapé inicial” em Puerto Maldonado, no Peru, em janeiro de 2018, com a presença de cinco mil indígenas. Ele pediu perdão pelas atitudes equivocadas da Igreja, num gesto corajoso e bem focado.

2. A exortação Querida Amazônia

Após o Sínodo, o papa lançou a exortação Querida Amazônia, na qual apresenta quatro sonhos. O primeiro se expressa com contundente denúncia profética, ao qualificar como crime e injustiça o lucro e a voracidade contra os pobres.

No segundo sonho, o papa volta-se para a figura do poliedro. É uma figura geométrica que respeita bem os diferentes planos, ao contrário da esfera, que iguala tudo. Fala em não dissolver os valores e as diferenças culturais, que são grande riqueza. Afirma que precisamos descobrir e ouvir as raízes das culturas e a sabedoria dos idosos, sem manipular os jovens, valorizando a família e estando atentos aos meios de comunicação.

O terceiro sonho, chamado de ecológico, é reflexo da encíclica Laudato Si’, tão inovadora, exemplo de relação inteligente com a ciência. É importante destacar o quarto sonho, que é o sonho eclesial. O papa foi muito lúcido ao se referir à conversão sinodal, com suas implicações e atitudes (n. 86-88).

O Documento final tinha classificado, quase da mesma forma, os novos caminhos, chamados de conversões: pastoral, cultural, ecológica e sinodal.

No começo dessa exortação, o papa fala com carinho do esplendor, drama e mistério dessa região. Para nós, que vivemos nestas terras, a Amazônia nos encanta, mas também nos oprime e desafia. Aqui está aberto o primeiro livro que o Senhor nos revelou: as maravilhas da criação e da vida do povo.

Vamos lembrar que há muitas Amazônias. A região possui cerca de 33 milhões de habitantes, abrangendo nove países da América do Sul e perto de três milhões de indígenas. Possui em torno de 7,5 milhões de quilômetros quadrados, quase o tamanho da Europa. Um pouco mais da metade dessa Pan-Amazônia é brasileira. Muitos lugares são alcançados apenas por via fluvial ou aérea. Há 104 dioceses, prelazias e vicariatos.  A região abriga cerca de 200 povos indígenas, com mais de 120 línguas, além de 130 “povos livres”, ou melhor, isolados, em isolamento voluntário.

Há outras comunidades marginalizadas, que vivem à beira dos rios, os ribeirinhos. E lá estão igualmente os quilombolas, afrodescendentes.

3. A Amazônia não é para principiantes

Há muitos lugares onde é preciso ouvir muito para apreender a realidade. Não podemos pensar que a Amazônia já foi “descoberta”. E muito menos achar que é amada e respeitada.

As crianças indígenas desfrutam dos rios e procuram os animais para brincar e partilhar a vida com eles. Quando ficam adultas, já conhecem os animais que vão lhes servir de companhia e de alimento. Protegem a terra e cuidam dela como “alguém” que lhes dá vida. É sua mãe. Ela os fortalece e lhes oferece espaço para viver. Ao andar pelas trilhas, conhecem cada centímetro de seus caminhos.

Os povos indígenas continuam resistindo. A Amazônia continua linda tanto para eles como para o mundo. O papa disse-lhes em Puerto Maldonado: “Esta terra não é uma terra órfã. Ela tem mãe”.

Os indígenas não se sentem donos ou proprietários da terra. Não a compraram nem vão vendê-la. São “possuídos” pela terra. No documento Querida Amazônia, assim como na Laudato Si’, o papa insiste nessa ecologia interconectada.

4. Informações e mitos a superar

A partir de Leonardo Boff, que, juntamente com outros cientistas, foi autor da Carta da Terra no ano 2000, levanto alguns pontos que nos ajudam a desfazer certos mitos (CARTA…, [2000]).

O indígena não é “genuinamente natural” e, portanto, não vive em perfeita harmonia com a natureza, seguindo sempre critérios naturais. Essa “ecologização” do indígena é o resultado do imaginário urbano, fatigado pela tecnologia excessiva e pelo artificialismo da vida. Os indígenas amazônicos são humanos como qualquer outro ser humano e, como tais, interagem com o meio ambiente.

Paradoxalmente, a Amazônia também é um dos lugares que mais sofrem violência. Podemos ver nela, de forma escancarada, a face brutal do sistema capitalista. Ali surge o gigantismo do espírito da modernidade, a racionalização do irracional e a implacável lógica do sistema antinatureza.

Há também a relação entre as culturas indígenas e a economia. Esses povos desenvolveram um manejo sustentável da selva, respeitando sua singularidade, embora a tenham modificado um pouco para cultivar vegetais que lhes eram úteis.

Contudo, o sistema que predomina nessas regiões tão ricas em vida constitui uma forma de produção/destruição terrivelmente predatória, com o uso intensivo de tecnologias contra a natureza. Com a mineração, atinge-se o subsolo. É declarada guerra contra a flora e a fauna, e são atingidas populações originárias e adventícias. A força do trabalho é muito explorada, até de forma escravagista, visando a uma produção que vai abastecer o mercado mundial.

Infelizmente, essa selva exuberante é extremamente frágil, pois está em um dos solos mais pobres do planeta. Sem a floresta, esse bioma se transformaria em cerrado ou em deserto, como já aconteceu em outros continentes.

5. “Nós esperávamos…” (Lc 24,21)

Retornando aos desafios do Sínodo Amazônico, buscamos a imagem evangélica de Cléofas e seu companheiro, que se encontravam desanimados porque o sentido da vida deles havia acabado. Tinham seguido seu Mestre para quê? Agora se recolhem e voltam para sua terra, Emaús.

Como eles, tínhamos muitas esperanças no Sínodo para a Amazônia e na exortação papal. No entanto, desapareceu o sonho de sair de uma Igreja clerical para uma Igreja mais ministerial.

A segunda parte do quarto sonho da exortação papal não é muito coerente com tudo o que foi dito antes sobre a inculturação e o espírito sinodal. Alguns acreditam que, nesses parágrafos, intervieram outros autores e outras canetas. Será que teremos de esperar por outro Sínodo?

Continuamos na esperança e reconhecemos o Senhor quando o sentimos ao nosso lado, abrindo nosso coração à realidade e à sua Palavra. Assim, ele ficará para jantar conosco (Lc 24,25-30).

A exortação papal vem nos consolar. Fala de processos que levam tempo, diz que é preciso ter paciência e fazer bom discernimento. A verdade é que já se poderia ter decidido o que a assembleia definiu e votou por maioria.

“Uma Igreja em saída”, insiste o papa. Sair primeiro de nós mesmos e com menos bagagem de catecismos, códigos, rituais e costumes medievais de outras épocas. Sair, sim, mas sendo mais livres e simples, identificados com o povo, como Jesus orientava seus missionários.

6. “O que impede que eu seja batizado?” (At 8,36)

Essa pergunta foi feita pelo ministro da rainha da Etiópia ao diácono Filipe. Imaginamos aquela evangelização itinerante como uma “forma”. Nós nos lembramos da teologia sacramental e perguntamos: estaria faltando a “matéria” do batismo? Na beira do caminho foi encontrada água. Combinaram, e o novo seguidor de Jesus foi sacramentado.

Podemos dizer que já temos “matéria” e “forma” em muitas comunidades da Amazônia. Nesse caso, o que impede que sejam confirmadas e celebrem seus ministérios? É claro, com maior participação de homens casados e também de mulheres diaconisas e presbíteras.

Algumas comunidades já estão preparadas. Se ministério é serviço, o indígena e esses povos têm elevado sentido da vida como serviço e uma relação intensa entre eles e com o meio ambiente. Em seus amplos espaços abertos, há pouco lugar para a marca pessoal fechada e para o individualismo.

Os últimos números da Querida Amazônia tratam das mulheres. Parece infundado dizer que, se as mulheres receberem o sacramento da ordem, serão muito clericalizadas e rebaixarão seus valores. Não há base para esse medo. Em outras Igrejas cristãs, essa prática está mais avançada.

Em relação aos ministérios, no final do documento, sentimos falta de uma resposta concreta do papa, que se dispôs a seguir com paciência no meio do seu rebanho.

Continuamos em estado de criatividade, cuidando dos sonhos e boas fantasias ao experimentarmos algo do futuro de nossas Igrejas. Para alcançar outras decisões, cabe-nos praticá-las nas bases. Isso aconteceu antes do Concílio Vaticano II. Os movimentos bíblico, litúrgico e ecumênico, pouco aceitos pelas autoridades eclesiásticas, foram depois reabilitados. E prepararam a convocação “ingênua ou meio louca” do Concílio Vaticano II por João XXIII.

Uma exortação realmente breve teria sido mais sinodal, apenas para confirmar aquilo que seus irmãos bispos haviam concluído no Documento final. Houve mais de dois terços dos votos obtidos, mesmo em questões polêmicas, e isso fora combinado. Ficaria mais claro, também, pelo fato de ter sido coletado nas bases e nas Igrejas locais durante a preparação. Testemunhos, poemas e outros novos aspectos que aparecem na Querida Amazônia estariam mais bem situados no Documento final.

7. Teologia nova e sinodal

 Dom Heiner Wilmer, jovem bispo de Hildesheim, na Alemanha, afirma que “somente uma nova teologia pode salvar a Igreja. O poder clerical com seus abusos e a falta de respeito sexual destroem o catolicismo. Parece que esse poder está no DNA da Igreja” (PONGRATZ-LIPPIT, 2019).

Uma teologia razoável ajuda a sentir melhor e a compreender os mistérios de um Deus pragmático como o nosso. É possível viver uma teologia nova, mais sinodal e inculturada em todas as Amazônias.

No contexto sinodal, teremos de esperar para ver se essa teologia, como “criatura esperada”, vai nascer antes de ser nomeada. Inicialmente, é a prática. Assim se explica a teologia contextual, a da libertação, a do povo e as outras mais atuais. As teologias mais vivas afirmam que primeiro é a fé e a vida do povo, seu contexto e prática da libertação.

Uma nova teologia não pode ter uma leitura redutora da mensagem cristã. A nova teologia deve tornar-se mesclada com uma natureza tão aberta e comunitária como a da Amazônia. Uma Igreja simples na fé e profunda na teologia precisa de um estudo sério, partindo da Bíblia e contando com o sensus fidei, o instinto comunitário de fé que ajuda a discernir o que realmente vem de Deus (EG 119).

8. Autonomia eclesial

Algumas pessoas proeminentes na Igreja se sentem com um poder sagrado mais do que outras. Querem ter a última palavra. Se deixarmos essa vaidade, poderemos respirar uma atmosfera autônoma, mais livre e menos clerical, dando maior protagonismo ao povo.

Todos formamos os fios do tecido eclesial. Mediações pouco necessárias passaram a interferir, ao passo que o Evangelho deve ser nossa raiz, o fio condutor e a pedra angular. Foram os simples e os pobres que emocionaram o coração de Jesus e o fizeram saltar de alegria, pois já viviam o Reino do Pai (Lc 10,21-24). Ele os consolava e os convidava a segui-lo, quando os via cansados e alquebrados por humilhações e por uma religião pesada (Mt 11,25-30).

No início do cristianismo, as reflexões, os ministérios e serviços eram bastante abertos. Não foi a uniformidade que prevaleceu.

9. O intercultural e o encontro

O intercultural, na evangelização, significa mais que simples inculturação unidirecional, porque expressa a relação circular de ida e volta. Existem várias culturas que interagem com o outro e com sua fé. Nas sociedades atuais, somos convidados pela própria realidade ao encontro, que é a expansão natural da fraternidade e da alegria. Precisamos reconhecer o intercultural no relacionamento com as outras religiões, abandonar nossos privilégios e aceitar a laicidade da vida e da sociedade, sem heranças intervencionistas ou neocoloniais.

O mundo amazônico vive suas próprias religiões. O papa, em uma entrevista, respondeu de maneira clara: “Podemos reconhecer o que o Espírito semeou no coração de outras pessoas. Isso é um dom para nós”. No horizonte e na prática, maior ecumenismo é sempre possível. São Paulo VI já o sinalizava na encíclica Ecclesiam Suam: “O nosso diálogo não deve ter limites nem cálculos” (ES 42).

Não podemos, por exemplo, ver idolatria na figura da Pachamama, a Mãe Terra nas culturas andinas, nem no culto aos ancestrais das celebrações de matriz africana. São manifestações do sublime e da santidade. São entidades que, unidas à terra, à água, ao ar e ao sol, encarnam os elementos básicos da nossa vida e de nossa felicidade.

As religiões fixadas em estruturas externas e em apoios revelados às vezes perdem sua profundidade espiritual. Sendo históricas e personalistas como o cristianismo, quando impõem suas certezas, tornam-se mais autorreferenciais do que outras religiões naturais.

A feliz liberdade é a marca espiritual das bem-aventuranças, contra todos os tipos de escravidão e dependência. A fé cristã precisa respirar liberdade e dela cuidar. Essa foi a luta de Paulo na sua enérgica reação encontrada na carta aos Gálatas.

10. “Outra normalidade” pode ajudar o sinodal

Depois dos grandes problemas da pandemia, teme-se que tudo volte à mesma normalidade. Esperamos que os “novos caminhos da Igreja na Amazônia” não sigam uma normalidade “eclesiastoide”.

A pandemia nos adiantou uma imagem do que a Igreja poderá ser em dez ou vinte anos. O futuro a ser focado já está aqui, com outros ângulos. Algo diferente do cristianismo tradicional. Comunidades recolhidas em espaços menores, mais generosas e dialogantes. Humildes por viver, como todo o mundo, correndo riscos. Assim, participaremos numa Igreja mais essencial, corresponsável e ministerial, que destaque o serviço libertador da caridade e o testemunho da Palavra do Senhor.

Na maravilhosa Carta ao povo de Deus, de 22 de julho de 2020, um grupo de bispos brasileiros reconheceu que “a pandemia nos tornou mais humanos e solidários” (PEREIRA et al., 2020).

Junto com outros valores, precisamos redescobrir também as casas e as famílias como lugares de encontro com o Senhor e com os irmãos.

11. Ministérios que já estão agindo e servindo

O Sínodo para a Amazônia era para reconhecer e ampliar os serviços e ministérios que já estão atuando nas comunidades. No meio do povo, há muita criatividade na pastoral da caridade e da solidariedade. Vemos também que, na dimensão celebrativa, se praticam as bênçãos e alguns sacramentais, quase como sacramentos dos mais pobres.

O papa não confirmou o que foi aprovado pela maioria no Sínodo. Aí estaria a audácia a que nos convidava no início da Querida Amazônia.

Assim, a clericalização e o “mito do padre” vão manter-se imunes por um bom tempo. É verdade que, no número 84, o papa orienta para uma disciplina sacramental generosa, que se aproxime dos pobres e dos abandonados da Amazônia. Repete o que diz na exortação Alegria do Evangelho (EG 49; 305). Todos se sentiriam compreendidos e integrados, chegando a uma misericórdia concreta, e não apenas romântica. Isso também poderia aplicar-se aos ministérios tão necessários.

A Querida Amazônia anima a continuar melhorando as atitudes atuais, mas não responde à renovação ministerial concreta nem às reformas estruturais de que a Igreja precisa.

12. Uma forma mais sinodal e menos clerical

Na teologia tradicional mais robusta, é pelo batismo que todos somos configurados a Cristo rei, profeta e sacerdote. Ao final da oração eucarística, na doxologia, repete-se: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo…”. O mediador é Jesus Cristo, e não o sacerdote. O povo de Deus lhe agradece por oferecer e transubstanciar sua vida, e não apenas o pão e o vinho. Que ação misteriosa!

Nos pressupostos da inculturação na Querida Amazônia (QA 6), a experiência encarnada de padres casados ​​parecia antecipar-se, mas isso não foi incorporado nas decisões finais. Sabemos que o celibato na Igreja latina é apenas uma lei disciplinar. Foi decretado no início do segundo milênio. Disciplina sempre problemática e mais questionada agora, quando os crimes de alguns clérigos em relação à pedofilia foram descobertos.

A cultura indígena não consegue entender o homem adulto celibatário. É o que conta dom Erwin Kräutler, bispo emérito no Xingu, a Leonardo Boff:

Não sei se já lhe contei o que aconteceu comigo uma vez na minha primeira visita como bispo a uma aldeia caiapó. O chefe perguntou: Aprô, “e sua esposa?” Eu respondi: Iprôkêt, “sem esposa”. Ele me olhou um pouco desconfiado. Novamente voltei lá e ele me fez a mesma pergunta. Então eu respondi: Onij, “está muito longe”. E ficou com pena… Acredito que Deus me perdoou a mentirinha que realmente me aproximou mais dos indígenas. Mais tarde, a esposa do chefe me adotou como Ikra, “filho”. Não é lindo?[1]

No Documento final (n. 111) aparecem as disposições e critérios para orientar os homens casados aptos a serem padres em regiões remotas da Amazônia. Como a proposta é difícil, aparece em parágrafos muito longos e depois de muitos preâmbulos e condicionantes.

Tempos atrás, fui de canoa até a outra margem do rio Araguaia, acompanhando uma irmã que atuava na pastoral da criança. Seguia conosco uma jovem pastora da Igreja batista que visitava, todas as semanas, a comunidade de Macaúba, na ilha do Bananal. Percebi que, com uma visita fugaz, nossa Igreja oficial chega com seu padre a lugares distantes apenas duas ou três vezes por ano. São as tais desobrigas, quando os católicos cumprem determinados ritos, ficando “des-obrigados” dos deveres sacramentais de serem batizados, casados pelo padre, confessados e comungados.

O clero, como funcionário do sagrado, vive muitas vezes marcado pela administração e pela “desinculturação”. Não está, de forma natural, vinculado à vida e à cultura do povo. Seu modo profissional não é transparente. Sua vida afetiva e até mesmo sua formação o isolam e o tornam mais controlável pelas autoridades eclesiásticas.

José Comblin, grande teólogo da América Latina, ajudou a organizar uma formação eclesiástica diferente, que recebeu o nome de teologia da enxada. Foi uma experiência inovadora, por unir o trabalho braçal dos candidatos e agentes de pastoral com uma teologia encarnada.

A prioridade na renovação sinodal deveria focar-se nas leigas e leigos, que são maioria nas comunidades, como o papa reconhece na Querida Amazônia (QA 93-94).

13. Uma missão limitada

Se predeterminarmos os ministérios, já estamos limitando a missão. A ordenação de homens casados exigiria uma renovação profunda do ministério em sua relação com o povo de Deus, senão atrasaria a missão e a reforma mais radical do serviço sacerdotal. Essa decisão não seria apenas por falta de sacerdotes, mas por ser mais coerente com a realidade existencial e com o Evangelho.

Será que o Senhor está ciente da falta de membros do clero em nossa Igreja? Será que é isso que está faltando? É preciso abrir espaços para um ministério sacerdotal ampliado, com o protagonismo de leigas e leigos, que possam presidir as celebrações. E que as celebrações realizadas por mulheres sejam verdadeiramente reconhecidas. Hoje nossas comunidades vivem do trabalho dedicado das mulheres, algumas vezes ultrapassando 80% dos participantes. As congregações religiosas foram e ainda são o rosto próximo, o coração e os braços acolhedores do povo na pastoral, na saúde e na educação.

Há um princípio importante que relativiza normas e direitos: “A necessidade não conhece leis”. Ou melhor, a vida em primeiro lugar. Temos notícias da existência de 280 presbíteras católicas em oito países, reconhecidas pela Associação de Presbíteras Católicas Romanas. Antes houve ordenação de mulheres na Tchecoslováquia comunista.

O princípio jurídico do subsidiário poderia ser aplicado mais vezes nas comunidades eclesiais. Intervir de fora só quando for necessário, porque, em suas bases, as entidades menores deveriam ter suficiente autonomia e corresponsabilidade. Somos fios e tramas da mesma rede. Até a floresta amazônica é variada e tem de se apoiar mutuamente. É preciso dar valor aos diferentes carismas e dons, todos desenhados pelo “Espírito do mesmo Senhor”.

14. “O que fazer agora?”

É o que o povo se perguntava em Atos (2,37), depois de sentir-se atingido no coração pelo discurso de Pedro sobre o assassinato de Jesus. Em outras circunstâncias, deveríamos fazer essa pergunta a nós mesmos.

O Documento final (n. 90) descreveu a assembleia sinodal como um momento de graça que avançou na escuta, no diálogo e no discernimento até a fase de implementar decisões. Na Querida Amazônia existem poucas decisões confirmadas. Falta a ação tão solicitada também pela comunidade leiga.

As Igrejas vivas e as comunidades eclesiais de base (CEBs) assinalam essa experiência comunitária que reconhece os pobres como sujeitos ativos e protagonistas. A doutrina oficial não costuma dizer isso. É algo novo o fato de o papa o expressar quando se dirige aos movimentos populares, como ocorreu na Bolívia: “Vocês são o poder da mudança social”.

Antes de ser chamada Caminho, a prática dos seguidores de Jesus era conhecida como “forma e estilo de vida”, com uma capacidade singular de respeito, acolhida e integração.

Pedro Casaldáliga, que optou por ser “povo no meio do povo”, na sua consagração como bispo, escolheu o lema: “Humanizar a humanidade”. Chegara, com um estilo de vida bem simples, a uma região abandonada, às margens do rio Araguaia. Na sua ordenação episcopal, apresentou-se de sandálias. A mitra foi substituída por um chapéu de palha e, como báculo, recebeu um remo para se apoiar e continuar navegando…

Algumas propostas que foram levantadas no final do Sínodo serão desafiadoras na prática. Como funcionará a Conferência Eclesial da Amazônia, para torná-la verdadeiramente eclesial, e não formada, de modo especial, por bispos e autoridades? Como implantar uma Universidade Amazônica para abraçar a “universalidade ativa”, característica de qualquer universidade, mantendo diálogo com a ciência, com a sociedade civil e com as culturas indígenas?

No rito amazônico não é preciso gastar muita energia. Em várias celebrações, já acolhemos danças, músicas, gestos, teatro, poesia e elementos artísticos do povo. 

15. Desafios para a Igreja

15.1. Ir ao essencial

O primeiro desafio é a vida com Jesus Cristo. Para nós, cristãos, vale muito o que Paulo escreveu na carta aos Gálatas: “Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (2,20). Na Querida Amazônia, o papa destaca o anúncio missionário indispensável: o Evangelho deve ser o primeiro, o central e o único caminho (QA 62-65).

Existe uma hierarquia nos dogmas e decretos para priorizar o que é mais essencial. O Código Canônico enumera 1.752 cânones. Felizmente, o último cânone afirma que o mais importante é a salus animarum, a salvação das almas, isto é, a saúde e a vida das pessoas. Assim, são relativizados todos os demais cânones.

O papa Francisco enquadrou esses direitos e deveres do Código em seu caráter pastoral. Parece resumir tudo ao que dizia o catecismo: “Estes dez mandamentos se encerram em dois: amar a Deus e amar ao próximo”.

15.2. Estar presentes com transparência

A pastoral deve ser presença constante, e não apenas o contato de uma visita feita de vez em quando. Essa presença é, de forma especial, a dos leigos – pelo fato de ser mais constante e imediata – e vai não só dando um “rosto amazônico”, mas também modelando “o coração, as mãos e os pés”.

As pessoas que coordenam e presidem as comunidades devem, na medida do possível, ser do mesmo lugar. Não deve haver mais as desobrigas. É preciso voltar e permanecer na “Galileia dos gentios”, no concreto da vida, onde tudo começou.

 A transparência pode usar métodos democráticos, que não são os ideais, mas orientam para a concórdia e o consenso. Não deve prevalecer a máxima de que “roupa suja se lava em casa”. Hoje os pátios não são tão fechados, e já somos denunciados nos tribunais.

15.3. Sentir-se mais humanos

O documento mais reconhecido do Concílio Vaticano II, sobre a Igreja no mundo, identifica-nos com a humanidade: “As alegrias e as esperanças de todos […] são nossas” (GS 1).

É a empatia do bom samaritano e a do melhor samaritano que foi Jesus, “comovido nas suas entranhas” diante das multidões carentes, quando chorou pela morte de seu amigo Lázaro (Jo 11,33) e por Jerusalém (Lc 19,41). Jesus, tão humano e com tanto amor, e por isso tão divino.

O poeta Alberto Caieiro (ou Fernando Pessoa) disse que “quem ama não sabe por que ama, nem o que é o amor. Amar é a eterna inocência” (PESSOA, 2011, p. 85).

Muitas comunidades dão grande importância à produtividade pastoral e, às vezes, falham na sensibilidade humana. Todos somos pessoas e queremos ser reconhecidos, tratados com respeito e até com carinho por nossos responsáveis.

15.4. Agir com discernimento

Estávamos pouco preparados para essa mudança. Sentimos que a situação social e as ideias estão misturadas e confusas. Também convivemos, na Amazônia e em outros lugares remotos, com essa realidade.

Em crises intrincadas e confusas, o passado e o futuro lutam entre si. Antonio Gramsci levou essa questão para o terreno político, constatando que “nem o velho morreu realmente, nem o novo nasceu ainda”. A pedagogia de Inácio de Loyola reconheceu isso no campo espiritual e tratou-o como discernimento de espíritos. Seguimos peneirando, pois o joio não tem grão nem peso, e a palha é carregada pelo vento. Discernimento é avaliação e oportunidade.

15.5. Educar e ser educados pelo povo

Em hebraico, “aprendizado” e “ensino” vêm da mesma raiz, lmd. Ensinar é apenas o longo caminho causal da aprendizagem. Ensinar e ser ensinado. A vocação missionária foi conjugada muitas vezes como o empenho da “conquista das almas” e, inadvertidamente, trazia uma dose de neocolonialismo espiritual.

O Espírito do Senhor, na sua missão trinitária, chegou antes, transbordando seu amor. É comum ouvir religiosas e missionários confessando que, na missão, aprenderam muito mais do que ensinaram. As “pedagogias do diálogo”, como as de Paulo Freire, combinam melhor com o desafio de ver até que ponto ajudamos a construir uma sociedade em que amar não seja tão difícil.

15.6. “Esperançar”

Os cristãos, no final da primeira carta aos Coríntios (1Cor 16,21) e no Apocalipse (Ap 22,17), exclamam em aramaico: Maran-atha, “vem, Senhor Jesus!”.

Madalena, a apóstola dos apóstolos, já tinha imaginado que seu amigo estava voltando. O Senhor morreu transbordando de amor. Por isso, somos convidados por Jesus a ser uma Igreja samaritana, que cuida das feridas, e também uma Igreja Madalena, que corre ou navega por esses rios para anunciar a esperança e a vitória pascal.

Depois dos sonhos e pesadelos, o amanhecer azulado vem chegando. É o que dizia Paulo Freire quando usou a palavra “esperançar”.

No Sínodo para a Amazônia, não foram tomadas decisões mais concretas. Perguntamos se merecíamos isso e se vai reviver o que parece ter sido congelado.

Conclusão

Como conclusão, devemos voltar a Isaías, quando anunciou novo amanhecer a seus conterrâneos exilados na Babilônia: “Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas. O que vem é muito melhor” (Is 43,18-21).

Hoje temos novos mártires da esperança, como Santo Óscar Romero, de El Salvador, padre João Bosco Penido Burnier, jesuíta do Mato Grosso, Chico Mendes, ambientalista, padre Josimo, da CPT, Vicente Cañas, irmão jesuíta que vivia com os indígenas, a camponesa Margarida Alves e a irmã Dorothy Stang…

 Como esse Sínodo poderá avançar? O que acontecerá quando as diferentes correntes de outros sínodos chegarem ao poderoso refluxo do centro romano? Vai surgir alguma “pororoca”?

Quando o Senhor perguntou a Jeremias: “O que você vê?”, o profeta respondeu: “Vejo uma amendoeira em flor”. E Deus continuou: “Você está certo, porque estou velando para que minhas promessas sejam cumpridas” (Jr 1,11-12). As amendoeiras vestindo flores, saindo do inverno, são uma chamada que madruga para a vivência da fé e da esperança.

O Senhor realiza seu projeto no momento certo e sabe extrair o bem do mal. Ele não se esquece de nós. Não nos esqueçamos dele nem da sua esperança, que vai florescer em uma Igreja mais sinodal!

Referências bibliográficas

CARTA da Terra, 2000. Disponível em: http://www.cartadaterrabrasil.com.br/prt/texto-da-carta-da-terra.html. Acesso em: 12 ago. 2022.

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[1] Evento “Diálogos CDDH”, do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, junho de 2018.

Vidal Enrique Becerril*

sacerdote espanhol da diocese de Madri, missionário no Brasil desde 1972. Atuou em comunidades da periferia de São Paulo e, há quatro anos, trabalha na Amazônia. Doutor em Ciências da Religião, área bíblica, pela Universidade Metodista de São Paulo, licenciado em Teologia pela Pontifícia Universidade de Comillas (Madri) e em Teologia Bíblica pela Faculdade Franciscana de Jerusalém. E-mail: [email protected]