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Publicado em setembro-outubro de 2015 - ano 56 - número 305

Animação bíblica da pastoral (ABP) e o ano de graça do Senhor

Por Décio José Walker

O clima jubilar que emerge das celebrações dos 50 anos de conclusão do Concílio Vaticano II nos convida a olhar, com profunda gratidão, para o caminho aberto pela constituição Dei Verbum como fruto maduro de toda a reflexão conciliar. O impulso que deu à redescoberta da Palavra de Deus na vida da Igreja gerou a consciência de que essa Palavra é a fonte de toda sua ação evangelizadora. O artigo faz breve memória para situar a animação bíblica da pastoral em seu contexto histórico e, então, aborda o momento atual.

 Nós recebemos o livro

“Jesus foi a Nazaré, onde se criara, e segundo seu costume entrou no sábado na sinagoga e se pôs de pé para fazer a leitura. Entregaram-lhe o rolo do profeta Isaías…” (Lc 4,16-17a). Depois houve um tempo em que o rolo (livro) não era mais entregue para ler. Então o Espírito soprou e nasceu o movimento bíblico no Brasil e em outros países. Ele ajudou a superar um velho preconceito que ligava a Bíblia apenas às Igrejas provenientes do protestantismo. Era, por isso, um risco para a fé católica, agravado ainda mais pela dificuldade de interpretá-la em virtude da falta de formação. Aos poucos o livro, a Bíblia, foi entregue ao povo “para fazer a leitura”.

 Abrindo o livro, encontramos a Palavra

“Desenrolou-o e encontrou o texto que diz: o Espírito do Senhor está sobre mim…” (Lc 4,17b-18a). Novo sopro do Espírito pôs em marcha o Concílio Vaticano II e com ele veio a constituição Dei Verbum, para convocar o povo para escutar e conhecer a Palavra de Deus presente nas Sagradas Escrituras. Desse apelo nasceu a pastoral bíblica, que animou muitos homens e mulheres para o serviço da Palavra, e como consequência muitas entidades foram criadas para tornar esse serviço mais qualificado e saciar melhor a sede do povo.

A pastoral bíblica inaugurou um intenso processo de conhecimento, formação e escuta da Palavra de Deus na Bíblia e na vida, criando tal intimidade, que o povo começou a sentir a Bíblia como “nossa casa”, onde o Pai acolhe, ama e educa seus filhos. O amor e encantamento pela Palavra suscitaram forte mística bíblica que levou pessoas e comunidades por caminhos de sabedoria e profecia.

E a Palavra se fez a fonte da evangelização

“Porque ele me ungiu para que dê a boa notícia aos pobres; enviou-me a anunciar a liberdade aos cativos e a visão aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, para proclamar um ano de graça do Senhor” (18b-19).

A pastoral bíblica, embora tão fecunda, é pastoral justaposta a tantas outras e teve uma ação limitada. Com exceção da liturgia e da catequese, as outras pastorais não sentiam muita necessidade de partir da Palavra de Deus ao planejar suas ações.

O Espírito, então, despertou novo paradigma, segundo o qual a palavra de Deus na Bíblia é colocada no centro, como fonte de toda a ação evangelizadora da Igreja. Podemos comparar esse passo com o Ano de Graça que Jesus anunciou em Nazaré, referindo-se ao Ano Jubilar, experiência de reorganização da vida, a cada 50 anos. Pensando bem, se a Palavra de Deus se tornar a alma da ação evangelizadora, também será força de transformação na sociedade atual.

A proposta da animação bíblica da pastoral foi entrando, aos poucos, na reflexão teológica e pastoral da Igreja. Em Aparecida (2007) já aparece de forma clara, mas foi oficialmente assumida pela Igreja toda no Sínodo dos Bispos (2008), como diz a exortação pós-sinodal Verbum Domini:

O Sínodo convidou a um esforço pastoral particular para que a Palavra de Deus apareça em lugar central na vida da Igreja, recomendando que se incremente a pastoral bíblica, não em justaposição com outras formas de pastoral, mas como animação bíblica da pastoral inteira. Não se trata simplesmente de acrescentar qualquer encontro na paróquia ou na diocese, mas de verificar que, nas atividades habituais das comunidades cristãs, nas paróquias, nas associações e nos movimentos, se tenha realmente a peito o encontro pessoal com Jesus Cristo que se comunica a nós na sua Palavra (cf. VD 73).

A proposta está agora lançada para a Igreja toda. O Brasil e a América Latina, que já haviam ensaiado passos nessa direção, partiram logo para uma ação mais intensa. O episcopado brasileiro, além de motivar todas as comunidades, confiou à Comissão Episcopal Pastoral para a animação bíblico-catequética a missão de articular a ABP em nosso país.

 Metodologia para uma Palavra viva e eficaz

Entre os anos 2009 e 2012, envolvendo os bispos, biblistas e agentes de pastoral, houve um processo de reflexão e elaboração que resultou no Doc. 97 da CNBB: Discípulos e servidores da Palavra de Deus na missão da Igreja, aprovado na Assembleia-Geral de 2012. Seu principal objetivo: trazer as luzes da Verbum Domini para a caminhada da Igreja no Brasil e oferecer orientações metodológicas práticas para concretizar a animação bíblica da pastoral.

O Doc. 97 parte do princípio de que todos os membros do povo de Deus são interlocutores da ação pastoral como sujeitos, não apenas destinatários. Por isso propõe (cf. Doc. 97, n. 69):

– constituir comissões, com uma organização funcional, que ofereçam uma rede de serviços e ajudas práticas às pastorais;

– constituir equipes de assessoria para garantir formação bíblica permanente, sistemática e profunda aos multiplicadores da animação bíblica da pastoral;

– linhas de ação em três eixos, inspirados no Documento de Aparecida (cf. DAp 248), que aqui sintetizamos:

  1. Caminho de conhecimento e interpretação da Palavra – eixo da formação (cf. Doc. 97, n. 70-85).

* Intensificar o estudo e exegese bíblica nos centros de formação teológico-pastoral e criar novos cursos de pós-graduação e extensão universitária.

* Promover o estudo bíblico para todos os cristãos, pois é direito do povo de Deus.

* Elaborar e divulgar subsídios com interpretações atualizadas e acessíveis a todo o povo.

* Usar os meios de comunicação social para ajudar a conhecer melhor a Bíblia.

* Favorecer e fortalecer os encontros ecumênicos de meditação e estudo bíblico.

* Promover congressos bíblicos (diocesanos, regionais e nacionais).

  1. Caminho de comunhão e oração da Palavra – eixo da oração (cf. Doc. 97, n. 86-87):

* Levar ao conhecimento de todos os fiéis a Leitura Orante da Bíblia, principalmente o método da Lectio Divina. Que ele se torne uma prática normal nas reuniões pastorais.

* Valorizar e viver a presença e ação da Palavra de Deus na liturgia. Compreender a dimensão sacramental da Palavra e a unidade entre Palavra e sacramento.

* Se no dia do Senhor a eucaristia não é possível, faça-se a celebração da Palavra.

* Difundir a oração da Liturgia das Horas, forma privilegiada de escuta da Palavra.

* Realizar encontros ecumênicos, tendo a Bíblia como referência de comunhão.

  1. Caminho de evangelização e proclamação da Palavra – eixo do anúncio (cf. Doc. 97, n. 88-89):

* A escuta da Palavra leve ao empenho pela justiça e solidariedade, pois “o compromisso pela justiça e transformação do mundo é constitutivo da evangelização” (VD 100).

* Oferecer aos grupos de reflexão roteiros que ajudem a exercitar a Lectio Divina.

* Reforçar programas bíblicos, de modo especial o mês da Bíblia, para uma atualização permanente.

* Incentivar, com base na Palavra de Deus, fecundo diálogo ecumênico e inter-religioso que favoreça a paz entre os povos.

* Na Iniciação à Vida Cristã, a Bíblia esteja sempre presente, pois ela era o “manual” de catequese das primeiras comunidades cristãs.

Com essas linhas de ação, o documento aposta na realização do sonho de ver a Palavra de Deus se tornar a seiva que alimenta toda árvore das pastorais da Igreja.

A Palavra acontece…

As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora (2011-2015) propõem cinco urgências pastorais para os próximos anos, entre as quais esta: “A Igreja lugar de animação bíblica da vida e da pastoral” (DGAE 44-55). Essa urgência hoje faz parte da maioria dos planos de pastoral dos regionais e das dioceses. Há um esforço admirável para implantar a ABP na maioria das dioceses.

O I Congresso Brasileiro de Animação Bíblica da Pastoral (Goiânia/GO, 8-11 de outubro de 2011), com o lema: “Palavra de Deus viva e eficaz” (Hb 4,12), reuniu 485 lideranças de todo o Brasil. Foi experiência de grande despertar que nos anos seguintes estimulou a organização de congressos regionais de ABP na maioria dos regionais e em algumas dioceses.

O I Congresso Latino-Americano de Animação Bíblica da Pastoral (Lima/Peru, 5-8 de agosto de 2013), promovido pelo Celam e pela Federação Bíblica Católica Latino-Americana (Febic-Lac), teve como objetivo proporcionar uma partilha das experiências dos diversos países e buscar certa unidade na prática da animação bíblica da pastoral em todo o continente. Revelou a criatividade, a alegria e a vibração que a Palavra de Deus suscita em toda a América Latina, nossa pátria grande.

O simpósio nacional Cinquenta Anos de Caminhada Bíblica (São Paulo/SP, 1-4 de outubro de 2015) faz parte da celebração do jubileu da Dei Verbum, responsável principal pela centralidade que a Palavra de Deus voltou a ocupar na Igreja. Mas terá também a função de apontar perspectivas, como mais adiante veremos.

A Palavra e os desafios que fazem caminhar

A reflexão sobre a ABP realizada nos últimos anos já produziu subsídios e documentos preciosos. Na prática, porém, a mudança acontece com certa lentidão. Um processo que conduz a novo paradigma sempre exige certa paciência histórica. Sinais já existem, mas temos ainda longo caminho a percorrer.

O Doc. 97 da CNBB propõe a constituição de Comissões de ABP em nível nacional, regional e diocesano. O simpósio nacional Cinquenta Anos de Caminhada Bíblica, acima citado, além de fazer memória da Dei Verbum, tem o intuito de avaliar a implantação dessa metodologia e aperfeiçoá-la. Por isso os principais interlocutores serão os secretários dos regionais, coordenadores diocesanos de pastoral e coordenações de animação bíblico-catequética, principais responsáveis para concretizar a ABP.

Há muito tempo a Igreja no Brasil propõe a Bíblia como livro por excelência da catequese. Existem ainda resistências e casos de retorno ao catecismo de perguntas e respostas. Para avançar, a Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética lançou o Itinerário catequético: iniciação à vida cristã, um processo de inspiração catecumenal. Pois a semente lançada no processo da Iniciação à Vida Cristã, que forma discípulos de Jesus Cristo, será a garantia de nova consciência em relação à centralidade da Palavra de Deus na vida pessoal, eclesial e social.

O Vaticano II colocou a Bíblia no coração da Igreja e propôs métodos aos fiéis, especialmente a Lectio Divina, que se tornou uma chave de leitura e interpretação para o fiel extrair das Escrituras o alimento necessário para a sua vida de fé. Suscitou os grupos bíblicos, nos quais os leigos se encontram para meditar juntos os textos da Escritura. O entusiasmo que esse método despertou traz o risco de uma leitura fundamentalista, não contextualizada, tendo como consequência aplicações superficiais e distorcidas. O desafio, portanto, é investir o máximo em formação bíblica.

Conclusão

“Hoje, em vossa presença, cumpriu-se esta Escritura” (Lc 4,21). Jesus realiza, assim, o processo de transformar a escritura de séculos anteriores em Palavra de Deus viva e eficaz para o seu tempo. Hoje, em “nossa” presença, também se cumprem as Escrituras quando animamos todas as instâncias eclesiais a fazer da Palavra de Deus o centro, a fonte, o coração, a alma, a seiva da árvore das pastorais. Isso nos faz viver o “Ano de Graça do Senhor”, ou seja, um tempo de graça, de alegria do evangelho, tempo de resgate do verdadeiro sentido da vida humana, de novas relações, mais ternas e amorosas, como reflexo do amor da Trindade santa, que tudo recria e renova.

BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA DO PEREGRINO. São Paulo: Paulus, 2002.

CELAM. Documento de Aparecida. São Paulo: Paulus: Paulinas; Brasília: CNBB, 2007.

CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora (2011-2015). Brasília: CNBB, 2011.

______. Discípulos e servidores da Palavra de Deus na missão da Igreja. Brasília: CNBB, 2012. (Documentos da CNBB, n. 97).

COMISSÃO EPISCOPAL PASTORAL PARA A ANIMAÇÃO BÍBLICO-CATEQUÉTICA. Animação bíblica da pastoral. Brasília: CNBB, 2012.

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997.

PAPA BENTO XVI. Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini. Brasília: CNBB, 2010.

Décio José Walker

É especialista em Teologia Sistemática com acento em Bíblia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção (São Paulo/SP), professor do Instituto Missioneiro de Teologia (Santo Ângelo/RS) e assessor da Comissão Episcopal Pastoral de Animação Bíblico-Catequética da CNBB. E-mail: [email protected]