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Publicado em novembro-dezembro de 2016 - ano 57 - número 312

Anotações Teológico-pastorais sobre Amoris Laetitia

Por Pe. Márcio Pimentel

Uma apreciação do capítulo IV

A Exortação Apostólica do papa Francisco Amoris Laetitia (AL), resposta e apelo pastorais ao Sínodo extraordinário e ordinário dos Bispos – 2014/2015, não versa exclusivamente sobre “família”. Seu assunto é o amor e suas concreções – entre estas, sua realização na vida e relações familiares.

 Que amor?

Seguindo o conselho de Thomas Reese, padre jesuíta e jornalista (IHU, 2016), tomo como referência o capítulo IV, no qual o papa discorre sobre o amor. Sua referência primeira é a Sagrada Escritura, a primeira carta de são Paulo aos Coríntios, o “Hino ao amor”. Com rápida exegese, retoma e esclarece as notas próprias do amor: paciente, serviçal, humilde, amável, não ciumento, desprendido, pacífico, reconciliador, honroso, atenuante, confiante, esperançoso e resiliente. Esses termos denotam as vias de realização do amor. Por essas características, o amor deixa de ser ideal e torna-se possível. Isso é importante, porque o pontífice deseja checar a aplicabilidade desse amor na vida matrimonial.

Curiosamente, o papa não faz exegese do termo grego empregado por Paulo no trecho bíblico em questão para dizer “amor”. Na verdade, nesse capítulo, o papa arrisca uma tradução simples, embora interessante. Citando Tomás de Aquino, escreve: “O amor de amizade chama-se ‘caridade’, quando capta e aprecia o ‘valor sublime’ que tem o outro” (AL 127). Mas, antes de ser caritas, o amor de que Paulo fala se escreve “ágape”.

Ágape é uma dessas palavras curiosas que, na Sagrada Escritura, se reservava para alguns usos. Em grego, pode-se dizer amor de várias formas: porneia, eros, filia e agape. Bom exemplo para captarmos a diferença entre ágape e os outros tipos de amor encontramos no diálogo de Jesus com Pedro, após a Páscoa. Quando pergunta a Pedro se ele o ama, o evangelista põe na boca do Senhor a palavra agape. Pedro responde, as três vezes, utilizando filia.

Jesus quer iniciá-lo ao Agape, ao Agape que é o amor gratuito, que não espera retorno […]. Pedro ainda não está à altura do Agape. Este é um ensinamento interessante para nós. Nós estamos num caminho, e quanto mais avançamos, mais formas de amor nós descobrimos (LELOUP, 2013, p. 184).

A nosso ver, Francisco propõe uma atitude pastoral pautada na compreensão qualificadora do amor agape. Uma vez que, na Sagrada Escritura, este amor gratuito e também solidário coincide com o jeito de Deus amar, o pontífice o toma como norma na consideração de todas as outras formas de amor. Sendo “amor de Deus”, é necessariamente o amor com o qual Jesus ama e, consequentemente, o amor que ele solicita a seus discípulos no cuidado que devem prestar ao rebanho: “Pedro, tu me amas mais do que estes? […] apascenta meus cordeiros” (Jo 21,15ss).

Jesus, que deseja confiar a Pedro o cuidado dos que creem, solicita primeiro a confirmação do seu amor e, portanto, de sua fidelidade irrestrita a ele mesmo, Pastor único. A tripla pergunta: “tens amor a mim?” é feita na linguagem joanina do amor; na terceira vez, porém, com o verbo fileo, que geralmente exprime a ternura das relações humanas, e que também pode incluir tanto o elã meramente humano quanto o amor inspirado por Deus (DUFUOUR, 1998, p. 207).

A pergunta à qual o pontífice tenta nos encaminhar seria: em que medida nossas relações e, nelas, nossos amores traduzem o amor de Jesus ou são impelidos por esse amor? Seja no amor entre irmãos, entre amigos ou entre esposos? O Hino ao Amor é transmitido por Paulo aos cristãos de Corinto como um lembrete. Sendo uma comunidade enriquecida em tudo pelo Evangelho, é admoestada pelo Apóstolo para que não se perca na divisão. Seus membros pertencem somente a Cristo, e ele é a medida do amor e o nexo das relações. Distinções ideológicas não devem ferir esse princípio de unidade e comunhão. Para Paulo, a comunidade se funda no amor de Cristo. Para ele, “amar os outros é a característica mais importante da vida cristã e o centro do modo de vida cristão. […] Todo conceito paulino de vida santa é dominado pelo amor” (MOHRLANG, 2008, p. 67).

O contexto do “Hino ao amor” ontem e hoje

O segundo capítulo da Exortação Apostólica é dedicado à contextualização. Francisco pauta sua reflexão em dois polos: a Sagrada Escritura (capítulo primeiro) e os fatos (capítulo segundo). Quando, no capítulo quarto, enfatiza o amor em perspectiva escriturística, faz isso depois de argumentar sobre os acontecimentos pertinentes à vida matrimonial e familiar.

Na primeira carta aos Coríntios, são Paulo utiliza o mesmo recurso. Encontramos espalhadas por toda a carta as ponderações do Apóstolo, pondo, de um lado, a realidade da vida de fé da comunidade coríntia e, de outro, a perspectiva vocacional à qual foram chamados. A comunidade coríntia experimentava tensões muito sérias. O grande problema era uma espécie de gnosticismo pneumático: a posse do Espírito Santo, manifesta das mais variadas formas, sobretudo por meio dos karismata, ou “dons do Espírito”, que fornecia determinado tipo de conhecimento sobre as coisas: “Essa posse separa os cristãos em duas classes, os pneumáticos ou ‘perfeitos’, por um lado, e os sárquicos (carnais) ou de menoridade (os imaturos) de outro lado” (VIELHAUER, 2015, p. 162).

A crítica paulina ao partidarismo, extremamente nocivo à vida comunitária, transparece como fio condutor da carta. O papa Francisco toca essa questão em AL logo de início. Ao manter o caráter sinodal na Exortação, recolhendo todas as contribuições possíveis para jogar luz sobre a pluralidade de situações pelas quais passam a vida matrimonial e familiar, o pontífice se posiciona contra qualquer tipo de polarização. O partidarismo é prejudicial exatamente por identificar a verdade com a idiossincrasia de um grupo. Outro elemento importante é a propensão de Francisco a ampliar o debate ao invés de encerrá-lo em definições legais ou doutrinais. Também não o satisfaz aceder às decisões rápidas, sem suficiente estudo e construção coletiva de um consenso que permite – é claro – governabilidade, de um lado, e aplicação consciente na pastoral, de outro (AL 2).

Mas é AL 3 que merece uma atenção especial. A nosso ver, são as poucas palavras de Francisco nesse número que melhor oferecem o espírito da Exortação. Curto, direto e denso. Este número, em especial, rendeu ao papa uma crítica do controvertido Cardeal Burke, segundo o qual Amoris Laetitia não é magisterial, o que equivale a não ser um ensino oficial da Igreja. Nossa análise do número três é exposta a seguir.

Primeiro, considerar que o tempo é superior ao espaço é de grande importância no que tange ao elemento convivial, que é o escopo de um ensino que verse sobre matrimônio e vida familiar. Como na maioria dos fenômenos humanos, as coisas não estão prontas. A dimensão histórica, processual deve ser ressaltada e considerada seriamente. Não há receitas que dão conta da dinamicidade da vida. Não há regras que definam exaustivamente um relacionamento. Podemos propor balizas. Vislumbrar horizontes. Nesse sentido, o tempo é fundamental. Pensando, por exemplo, no casamento, isso serve tanto para os que apressadamente querem se unir ou separar quanto para os que pensam ter todas as soluções ou arrogam a si o direito de se considerarem casal/família perfeita. Estamos todos a caminho, em peregrinação, “até que o Espírito nos conduza à verdade completa”.

Um segundo elemento, não menos importante e mais de cunho teológico, é respeitar a progressividade da Revelação. Embora completa em Cristo, está em desvelamento em nós. O que é pleno em Jesus é ainda iniciação para nós. Como afirma o salmista, somos obra começada. Até que Cristo seja tudo em todos, há que respeitar o ritmo de nossa vida. Esse ritmo é plural porque suas narrativas são múltiplas e variadas são as culturas que nascem da criatividade do Espírito do Senhor. Dessa teologia tão fiel ao Mistério da Encarnação – o próprio Filho de Deus crescia… – brota uma pastoral, isto é, uma forma de cuidar do rebanho, das pessoas.

O terceiro aspecto: nenhum documento do Magistério eclesial tem as respostas para tudo, e – conforme as palavras do papa – não se pode, simplesmente, esperar por eles. Na colegialidade e no respeito à unidade tanto doutrinal quanto práxica, há que deixar espaço àquilo a que Deus mesmo nos possa impelir, a partir dos lugares onde estamos e respeitando o contexto em que vivemos. Isso nos parece uma tentativa de levar os Bispos das Igrejas locais à responsabilidade de “ousar” pelo bem do Evangelho, pela felicidade da criação inteira, e não permanecer à espera de posicionamentos pontifícios.

Parece-nos bastante positiva a avaliação de Andrea Grillo sobre este número da AL:

É preciso notar que, enquanto a autolimitação do magistério que tivemos que registrar com João Paulo II e com Bento XVI estava propensa a encerrar os debates, a reprimir a liberdade de palavra, a marginalizar a dissidência, neste caso, Francisco quer quase estimular a discussão, renunciando a intervir com um “pronunciamento resolutivo”.

No primeiro caso, a autoridade está pela proteção do “status quo”, enquanto, no segundo caso, a autoridade permite uma mudança e uma variação. Neste caso, poderíamos dizer, assume-se a autoridade de reconhecer outras autoridades, para deixar iniciar, no tempo, processos de autoridade.

O princípio da superioridade do tempo sobre o espaço é, na realidade, uma precisa e poderosa teoria do exercício do magistério. Que reconhece a prioridade paciente do fato de iniciar processos inclusivos, em vez da de ocupar espaços excludentes e exclusivos. “Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços” (Evangelii Gaudium, n. 223) (GRILLO, 2016).

As características do amor

 Citando o Catecismo da Igreja Católica, Francisco afirma objetivamente que o matrimônio cristão visa “aperfeiçoar o amor dos cônjuges” (AL 89). O Ritual do Matrimônio fala em “enriquecimento” do sacramento do batismo, dotando a relação conjugal e familiar de eclesialidade e livrando-a da autorreferência. Casa-se na Igreja, isto é, no contexto de uma vida fraterno-familiar, como desdobramento daquela relação operada por Cristo entre ele e o Pai, aberta a todos os que desejem dela tomar parte, o que se realiza pelos sacramentos da iniciação: batismo-crisma-eucaristia. Essa referência do papa ao amor é axial. Esse amor, já o sabemos, não diz respeito apenas à afetividade do casal, mas é a presença do Espírito Santo que em nós faz conhecer as palavras e gestos do Filho e, por ele, o abraço santificador do Pai.

Francisco passa à explicação do “amor cristão”, tomando como referência um trecho breve da primeira carta aos Coríntios. Uma coleção de atributos é apresentada e, um a um, são interpretados. É importante compreendermos que não se trata de um “ideal” de amor, mas de um amor possível porque é realização do ágape de Jesus. O pontífice o diz com todas as letras: “Isso se pratica e cultiva na vida que os esposos partilham dia a dia entre si e com os seus filhos” (AL 90). Pelos sacramentos da iniciação e, é claro, pela celebração do matrimônio como modo de enriquecimento, somos todos mergulhados nesse amor. No entanto, é possível estarmos nele submersos, mas revestidos de impermeabilidade. Deixar-se empapar por esse amor é condição para o sucesso da vida matrimonial e familiar, e isso Francisco deixa claro ao abordar a necessidade de crescer na caridade conjugal:

 O cântico de são Paulo, que acabamos de repassar, permite-nos avançar para a caridade conjugal. Esse é o amor que une os esposos, amor santificado, enriquecido e iluminado pela graça do sacramento do matrimônio. É uma “união afetiva”, espiritual e oblativa, mas que reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica, embora seja capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem (AL 120).

Ao destrinchar o significado bíblico do amor conjugal e familiar – que, na verdade, diz respeito ao amor de Cristo que foi derramado no coração dos cristãos, parafraseando são Paulo –, Francisco apresenta a sacramentalidade própria do matrimônio. Em algumas homilias, por ocasião de núpcias em nossa comunidade paroquial, costumamos dizer que o relacionamento dos esposos é tornado pela celebração da Igreja, a pedido dos cônjuges, um monumento. Qual obra de arte, esculpida na dureza da rocha, é um registro e um lembrete da beleza do amor de Deus, que se tornou claro como o dia em Jesus. O casal, nessa perspectiva, assume o compromisso de ser, permanentemente, para a comunidade de fé e para todos quantos com ele convivam, a prova viva desse amor. As leituras bíblico-litúrgicas, a eucologia, os cantos na celebração matrimonial devem explicitar essa vocação. Assim como a vida conjugal e familiar tornada sacramento não é uma autocelebração, isto é, uma experiência autorreferencial do amor, também a liturgia que os legitima e insere nesse caminho não pode esgotar-se no romantismo dos cônjuges.

Mas, conforme se autodefiniu em seu discurso aos luteranos, Francisco experimenta seu ministério de confirmar os irmãos e irmãs na fé como um pároco universal; move-se com o coração de pastor. Por essa razão, após iluminar a vida matrimonial e familiar com a beleza do amor de Cristo, deixa claro que isso não pode ser vivido como uma carga: “não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja” (AL 122). O jugo do amor há que ser leve. Como na tradição rabínica, o jugo diz respeito àquela característica mais específica do mestre que o discípulo é chamado a imitar e, por essa imitação, absorver e tornar um traço próprio. O matrimônio, como enriquecimento da vida batismal, não pode se tornar um peso. Por essa razão, faz-se necessário lembrar-se das fragilidades de toda experiência humana e – com compaixão e misericórdia evangélicas – experimentar o avanço gradativo no exercício dessa vocação.

 Onde está a “glória” de Deus no relacionamento conjugal?

 Em A arte de se salvar, o rabino Nilton Bonder traz dois conceitos judaicos provocativos que desejamos utilizar aqui para interpretar algumas afirmações de Francisco sobre a vida matrimonial e familiar e o exercício do amor ao qual são vocacionados. São eles a noção de Aié e Malé.

A primeira expressa dúvida e angústia, e a segunda, certeza e fé.
A palavra Aié (“onde?”) denota a busca existencial. A mesma palavra – aieka – é utilizada na Bíblia, no episódio em que o Criador procura Adão no Paraíso, logo após este ter provado da Árvore da Sabedoria. “Aieka” significa: “Onde está você, Adão”, no sentido existencial (em vez de espacial) “neste momento? Por onde anda a tua alma?” (BONDER, 2011, p. 22).

O rabino, com esse trecho, fala do aspecto de velamento que a vida possui no que diz respeito ao seu sentido, às suas possibilidades, aos direcionamentos possíveis. Não há no mundo clareza ou obviedade para tudo. Assim é a vida matrimonial e familiar tal e qual conduzida na reflexão de Francisco. Muito embora o Pontífice paute e estabeleça o horizonte teológico e também doutrinal do matrimônio cristão como tradução existencial do amor de Cristo, ele mesmo exprime seu caráter desafiante. O número 122 da Amoris Laetitia trata exatamente disso, de conceber o amor matrimonial como tarefa para além do dom. O contrário disso é um amor enfermo, que se torna “incapaz de aceitar o matrimônio como um desafio que exige lutar, renascer, reinventar-se e recomeçar sempre de novo até a morte” e, é claro, não consegue “sustentar um nível alto de compromisso” (AL 122). Estamos diante da exigência do cuidado, da verificação permanente, da vigília carinhosa do vínculo. O pontífice parece dizer: “Pergunte-se, sempre, onde você está em relação ao amor que é dom e tarefa”. Este amor que “‘não foi instituído só em ordem à procriação’, mas para que o amor mútuo ‘se exprima convenientemente, aumente e chegue à maturidade’” (AL 125), necessita ser buscado, discernido, compreendido, educado, transformado. Os números 126 a 141 vão tratar basicamente do desafio laborioso do amor.

Voltando ao rabino Nilton Bonder, tomemos o segundo termo judaico, Malé:

Por sua vez, o conceito Malé (a terra está repleta da Sua glória) representa o mágico momento em que a ordem se decodifica de maneira clara e cristalina. Como na visão do profeta Isaías (6,3), de onde a frase é retirada, os seres celestes anunciam a presença da glória divina sem máscaras ou véus. Tal conceito representa os momentos em que somos tocados pela existência, em que não temos dúvida sobre a existência da ordem, ou os momentos nos quais o prazer e a alegria de estar vivo são tão sólidos que nos fazem perceber o mundo como calçado por um chão de paz e certeza (BONDER, 2011, p. 23).

Na Exortação Apostólica, os números 142 ao 152 evocam aqueles aspectos da relação amorosa que causam prazer e são explicitamente belos. O papa comenta sobre o mundo das emoções como uma das características mais basilares de nossa humanidade: “O ser humano é um vivente desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado de paixões” (AL 143). Assim, não sendo intrinsecamente bom ou mau – seja a atração, seja a repulsa –, as emoções das quais decorrem opções e consequentes atos devem ser observadas e verificadas como realização livre, consciente, límpida do amor de Cristo ao qual estão chamados os esposos e a família como um todo. Em particular, fala-se do exercício da sexualidade como dom que embeleza a vida conjugal. Tomando como referência estas concreções da vida matrimonial – as emoções e suas consequências, bem como a vida sexual – e lendo-as à luz do conceito judaico Malé, podemos chegar à constatação de uma ordem nas relações, bem como da gratidão necessária para que o matrimônio se sustente e a convivência siga em frente.

O matrimônio, portanto, não pode ser lido e experimentado isoladamente apenas com base em um dos conceitos, mas somente na dinâmica dialógica dos dois: Aié e Malé. Utilizando as referências do próprio papa ao falar, por exemplo, da violência e da manipulação nos números 153 a 157, podemos constatar que a degradação da relação conjugal e familiar se estabelece quando o amor se perverte, em quaisquer dos aspectos que o revelam: sexualidade, afetividade, alteridade. Essa percepção surge do uso de boa dose de “Aié” e “Malé”, isto é, da capacidade de buscar sentido e reconhecê-lo. Sabedoria ao aplicar as seguintes frases ao relacionamento: onde está a glória de nosso relacionamento? Aqui está a glória de nosso relacionamento! Sobretudo tendo como referência o amor de Cristo, modelo e meta para a vida conjugal e familiar.

Conclusão

Nos últimos números do capítulo IV, o papa fala da “transformação do amor”. Francisco aborda a necessária metamorfose pela qual o amor dos cônjuges deve passar para que a relação se sustente e seja fecunda. Depois de quatro, cinco décadas juntos, como manter a vitalidade no casamento quando já não vicejam aqueles aspectos “originais”: quiçá a paixão, a libido, as expectativas…? O papa afirma que é possível ter “um projeto comum estável”, de modo que o amor não seja apenas abordado pelas vias da afetividade, mas como um compromisso motriz. É nesse ponto que nos vem à memória breve consideração do Rabino Bonder ao tratar da relação entre o amor e a verdade. Contando pequena parábola sobre um paciente que, medicado em sua enfermidade, deveria tomar pílulas que vinham recobertas por uma camada de açúcar e aromatizantes, mas simplesmente não melhorava porque, em vez de engoli-las, chupava-as, absorvendo apenas o doce e cuspindo o remédio, ele nos oferece a seguinte constatação: “Absorvemos nossas experiências do dia a dia de maneira semelhante, pois integramos o doce (a estrutura do Amor) e ‘cuspimos’ a componente Verdade” (BONDER, 2011, p. 42). A verdade em um relacionamento matrimonial e familiar é a vida divina à qual são convocados a participar e anunciar existencialmente. Essa graça, que é sacramental, isto é, dá-se a conhecer “nas alegrias e tristezas” da existência concreta da família, respectivamente, ora como epifania (Malé: Aqui está!), ora desvelando-se (Aié: Onde está?), é suportada em virtude da estrutura oferecida pelo amor de Cristo. Um amor pascal, que não mascara porque não é cosmético e, portanto, superficial. É estruturante e orientador de uma vida inteira para a verdade sobre os cônjuges, sobre a família, sobre o mundo, sobre Deus. Um amor que é puro Espírito porque é memória da oblatividade do Filho nas experiências vitais do casal. Um amor que excede o sentimento e evoca a razão da mútua entrega celebrada diante do altar, entoada pelos enamorados no Cântico dos Cânticos: “Ani le dodi ve dodi li”: Eu sou do meu Amado e o meu Amado é meu.

 

Bibliografia

BONDER, N. A arte de se salvar. Ensinamentos judaicos sobre o limite do fim e da tristeza. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

GRILLO, A. Descobrindo a “Amoris Laetitia”: como muda o Magistério e como se traduz a doutrina. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/553719-descobrindo- a-qamoris- laetitiaq-como-muda- o-magisterio- e-como- se-traduz- a-doutrina- artigo-de- andrea-grillo. Acesso em: 19 de abr. de 2016.

LELOUP, Jean-Yves. Caminhos da realização. Petrópolis: Vozes, 2011

LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João. Vol. IV. São Paulo: Loyola, 1998.

VIELHAUER, P. História da literatura cristã primitiva. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2015.

 


 

Pe. Márcio Pimentel

O autor é presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, assessor eclesiástico para a liturgia e pároco da Paróquia São Sebastião e São Vicente. Especialista em Liturgia pela PUC-SP e em Música Ritual pela Faculdade Campo Limpo Paulista. Músico e compositor, licenciando em Educação Musical pela UEMG. É articulista do Jornal de Opinião (revista eletrônica da Arquidiocese de Belo Horizonte). E-mail: [email protected]