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Publicado em setembro-outubro de 2020 - ano 61 - número 335 - Pág.: 23-31

As leis deuteronômicas e a questão do poder: uma leitura de Dt 16,18-18,22

Por Pedro Lima Vasconcellos; Rafael Rodrigues da Silva

Introdução

Um pilar básico tem sustentado a pesquisa sobre os textos que formam as Escrituras judaicas, ou seja, o Primeiro Testamento cristão, desde meados do século XIX: a identificação de conteúdos registrados no que hoje lemos em Dt 12,1-26,15 como inspiradores das reformas sociais, políticas e religiosas apresentadas em 2Rs 23 como obra de Josias, rei de Judá. Esse conjunto literário, conhecido hoje como “Código Deuteronômico”, teria sido o “livro” encontrado nas dependências do templo de Jerusalém (2Rs 22,8). Isso tudo teria ocorrido por volta de 622 a.C. Essa contextualização básica é fundamental e faz pensar que tais conteúdos inspiradores das reformas sejam expressões de tantos movimentos e situações importantes vividos nos tempos imediatamente anteriores. Esses textos parecem recolher e reelaborar memórias importantes dos tempos anteriores, turbulentos e tremendos, de sucessivas crises se abatendo sobre os grupos que faziam parte do Reino de Israel – destruído já fazia um século – e também do Reino de Judá.

Dessas memórias postas por escrito, escolhemos como objeto de reflexão os conteúdos registrados em Dt 16,18-18,22. Trata-se de um conjunto interessante e instigante, que exprime um modelo de sociedade no qual a organização descentralizada do poder – ou seja, a distribuição das responsabilidades pelo todo – é uma referência primordial, a despeito de impulsos fortes na direção contrária. A seu modo, e naquela conjuntura que tem, ao mesmo tempo, tantas diferenças e semelhanças em relação à nossa, o texto alerta contra aventuras ditatoriais e autoritárias. Projeta um modelo cujas linhas gerais procuraremos destrinchar. Antes, porém, será preciso contextualizar, com um pouco mais de detalhes, a elaboração por escrito desse material.

1. Ambientação

1.1. A conjuntura da época da escrita

Naqueles tempos de Judá com Josias no comando, já fazia mais de um século que uma força poderosíssima tinha começado a dar as cartas na região: o imperialismo assírio. Desde mais ou menos 740 a.C., os clãs e as tribos de Israel e Judá já haviam sofrido os impactos terríveis das sucessivas incursões militares que tinham como objetivo último alcançar e conquistar o Egito, o que ocorreu por volta de 670 a.C. O movimento popular formado em torno de Oseias, que já via serem desarticuladas muitas formas de organização do cotidiano popular, produzindo fome e miséria (como também denunciam palavras atribuídas a Amós), foi atingido pelos movimentos consequentes à invasão assíria: imposição de novos tributos, ocupação militar, destituição do poder dos reis e, enfim, a destruição total da capital Samaria e devastação de todo o entorno (em 722 a.C.), com a deportação de muitos dos que conseguiram sobreviver e o assentamento de grupos que foram trazidos de outros lugares a fim de confundir a gente submetida à dominação, diluindo as tradições e marcas características da cultura local. No caso de Judá, foi por pouco que tudo deixou de se repetir: Jerusalém escapou da destruição por um triz, isso em 701 a.C. A ocupação imperial, porém, estabeleceu-se da maneira mais radical (2Rs 15,17-19,37). Portanto, os tempos seguintes são marcados pelas trevas da presença da principal potência da época; o reinado de Manassés em Jerusalém (2Rs 21,1-16) foi o tempo da consolidação da dominação. Era a primeira metade do século VII a.C., o tempo provável da redação básica dos teores principais do “Código Deuteronômico”, embora não seja impossível pensar numa elaboração algum tempo depois, já bem perto dos dias de Josias.

1.2. Uma releitura do Código da Aliança

As leis no Código Deuteronômico percorrem longo caminho, desde os costumes e regras de sobrevivência que, durante séculos, circularam na oralidade e nas experiências tribais até normas redigidas sob a influência dos sacerdotes e escribas do palácio e outras, sob o olhar da profecia em Israel e Judá, que não deram tréguas para o Estado e suas instituições. Ao que parece, boa parte dessas leis teve origem em Israel e foi levada, oralmente ou por escrito, para Judá por gente que tratou de escapar da destruição brutal de Samaria. Houve, porém, a inclusão também de tradições de Judá, o que torna ainda maior o desafio de sua leitura.

 Muitos estudos apresentam o Código Deuteronômico como uma releitura de um anterior, denominado “Código da Aliança”, que hoje pode ser lido em Ex 20,22-23,19. Ele coleta normas e práticas de diferentes origens e épocas e, no seu conjunto, trata de relações entre os membros dos clãs familiares, de conflitos variados, de determinações religiosas, além de procedimentos que protejam os setores mais vulneráveis (órfãos, viúvas, migrantes). A reunião dessas normas deve ter ocorrido em algum momento da trajetória do Reino de Israel (séculos IX-VIII a.C.).

A memória do êxodo perpassa a releitura do Código da Aliança, estando presente nos refrães que evocam a servidão no Egito e acentuam que os estatutos, costumes e mandamentos têm como objetivo a liberdade do povo. E se o Código da Aliança se compõe de leis que pretendem explicitar o sentido do Decálogo (Ex 20,1-17), parece que o Código Deuteronômico faz de forma semelhante (Dt 5,6-21), ampliando-se em longas reflexões acerca de Javé como Deus único e da adoração num único lugar (Dt 12,6).

Um quadro paralelo permitiria perceber melhor os termos da relação entre esses dois códigos de leis. É perceptível que um tema específico está presente no Código da Aliança e não tem paralelo ou ampliação no Código Deuteronômico: trata-se das leis acerca do boi e das questões de roubo em Ex 21,2-22,14. Elas revelam que a sociedade que produziu o Código da Aliança vive os conflitos e desafios numa sociedade em crise e em transição – da dinâmica tribal para a sociedade monárquica e tributária. A utilização dos bois na produção agrícola modificou a sociedade tribal e impulsionou a escolha de outro modelo de organização política.

Nada disso está presente no Código Deuteronômico. Agora são as questões da fome, do empobrecimento dos camponeses e do poder totalitário que estarão no alcance social das leis deuteronômicas. Se o Código da Aliança nos reporta ao período pré-estatal e aos inícios da monarquia em Israel, o Código Deuteronômico repercute os desafios de uma sociedade marcadamente desigual, atingida pela avalanche imperialista.

Assim, cabe lê-lo na companhia da profecia israelita do século VIII a.C. A defesa dos empobrecidos na porta da cidade, em Amós, deve ter influenciado a crítica que encontramos em Deuteronômio sobre a prática dos juízes e administradores da justiça. A profecia de Oseias deve ter sido fundamental para a formulação de leis com convencimento na prática dos mandamentos, normas e costumes. A perspectiva da solidariedade, apontada pela profecia relacionada com a prática da justiça e do direito e com o conhecimento de Deus (Os 4,1; 6,6; 10,12; 12,7), deve ter influenciado as leis em favor dos pobres no Deuteronômio (15,7).

2. Comentário

Embora o Código Deuteronômico aposte na centralização do culto – o que, nos tempos e pela ação de Josias, foi entendido como a afirmação de Jerusalém –, é fundamental notar que ele não projeta uma correspondente concentração de poderes numa única instituição ou pessoa, no caso, o rei (esta parte do código, convenhamos, não deve ter sido do agrado maior do soberano…). Pelo contrário, o eixo da articulação do texto coloca na figura autorizada de Moisés – situada no tempo mítico passado das fundações e relida em todos os momentos de projeção para o futuro – a garantia de equilíbrio entre as instituições básicas do Estado.

A elaboração fundamental a esse respeito se encontra em Dt 16,18-18,22, que não tem qualquer paralelo no Código da Aliança. Tal excerto representa, na verdade, a inovação mais importante do novo código em relação ao anterior, junto com as determinações sobre a centralização do culto. Isso nos desafia a ler suas perícopes fazendo perguntas sobre as instituições políticas em Israel e Judá, nesses tempos de desamparos e anseios produzidos pela truculência imperialista e de seus efeitos prolongados no cotidiano.

As instituições em questão são basicamente quatro: a) os juízes; b) os sacerdotes levitas; c) o rei; d) o profeta. Podem-se identificar dois dípticos: juízes e sacerdotes levitas, no plural, de um lado; rei e profeta, no singular, de outro. A dialética entre descentralização e centralização perpassa a articulação dos “encargos e ofícios”. Também se percebe uma progressão importante na tratativa dos quatro sujeitos em questão, tendo na exposição sobre o profeta o seu cume.

Vamos à reflexão sobre cada um desses tópicos.

2.1. Os juízes (Dt 16,18-17,7)

A prescrição inicialmente retoma e confirma algo que seguramente já era prática de muito tempo: a presença de juízes espalhados em cada cidade e vila, na porta de cada uma delas, espaço tradicional de enfrentamento e resoluções de conflitos (vv. 18-20). Os acentos são tão óbvios quanto atuais: o princípio da imparcialidade, o combate à corrupção, a qual, não poucas vezes, compromete o exercício da justiça. E ainda: estaria sendo previsto que os juízes e administradores a serem estabelecidos haveriam de substituir lideranças “judiciárias” tradicionais como os anciãos? É difícil dizer. Seja como for, há a exigência de que a justiça alcance aquelas práticas religiosas populares que justamente o Código Deuteronômico pretende extirpar. O texto estabelece a prática da justiça como um princípio fundamental para que se possua a terra que Javé vai dar. Se esses critérios têm ecos da profecia do século VIII a.C., terão também influenciado a profecia no período anterior à reforma de Josias, que conclamava o povo a buscar a Javé, buscar a justiça e buscar a pobreza (Sf 2,3).

2.2. Sacerdotes levitas (Dt 17,8-13; 18,1-8)

Parece que, no Código Deuteronômico, “sacerdote” e “levita” são praticamente sinônimos; deles se fala em dois momentos distintos, antes e depois da peça sobre o rei. Em 17,8-13 se prevê a atuação deles junto a juízes, numa instância acima daquelas locais, para o encaminhamento de demandas que, de outra forma, seriam insolúveis. Tal instância se associava diretamente ao lugar central de culto a Javé, assumindo então uma aura sagrada. Da porta passava-se para o templo.

Já em 18,1-8 se estabelecem os direitos de sacerdotes e levitas advindos da condição de quem não usufrui da herança de Javé como as demais tribos, ou seja, da terra. É interessante notar que o ímpeto centralizador não deslegitima os levitas do interior (v. 6), embora reivindique que, a partir de então, sua atividade cultual se redefina em termos de local.

2.3. O rei (Dt 17,14-20)

Esses versículos se mostram surpreendentes. Uma legislação sobre o rei, estabelecendo limites e restrições à sua ação, não tem paralelo no mundo do antigo Oriente Médio e só pode, de alguma maneira, ser posta em comparação com os experimentos democráticos na Grécia, de dois séculos depois, ou então com as constituições modernas, que tratam de regulamentar as instituições do Estado. Talvez o ponto mais decisivo das determinações a respeito de “um rei que Javé, o seu Deus, tiver escolhido” (v. 15) esteja nos vv. 18s: ele deve escrever uma cópia da Lei – no caso, o próprio Código Deuteronômico – num livro para o ler todos os dias de sua vida; os sacerdotes levitas garantirão esse procedimento. Do outro lado está o contraponto decisivo: a monarquia não é uma expressão da deliberação e da autoridade divinas, mas uma concessão diante da vontade do povo. E é o povo que deve estabelecê-lo: um escolhido por Javé entre os irmãos, não um estranho. Há uma dialética única entre Javé e Israel na constituição do rei (v. 15a).

Um reconhecimento de fundo: não é possível pensar, como no passado, uma renovação do povo e da sociedade sem pensar o Estado e, particularmente, a figura do rei. Mas o que vem a partir daí são só restrições e interditos, que fundamentalmente estabelecem limitação do poderio militar (não multiplicar cavalos), político (não estabelecer alianças e estratégias com outras forças, expressas em tantos casamentos) e econômico (não acumular ouro e prata para si). O rei precisa estar submetido à mesma lei que deve reger a vida do povo. Tudo isso com um horizonte: estar acima dos irmãos não comporta privilégios nem admite orgulho que permita fazê-lo descambar para o autoritarismo e para um caminho que contrarie as determinações de Javé e os anseios do povo. O exemplo negativo do Egito é sintomático: o povo não pode ser submetido aos excessos da exploração pelos tributos e dos trabalhos forçados. Se se faz a comparação com o texto de 1Sm 8,11-17 (um texto que, ao mesmo tempo, denuncia e detalha os poderes sem limites que constituíam, naqueles tempos, o “direito do rei”), a percepção é clara: o texto deuteronômico restringe radicalmente as pretensões dos monarcas em relação a seus respectivos povos: recrutamentos de filhos e filhas para toda sorte de trabalho compulsório e cobranças de impostos sobre tudo que é produção agrícola e pecuária. Seguramente a redação do texto tem em mente, como contraponto, a figura de Salomão – com seu fausto, centenas de mulheres e obras feitas à custa de pesadíssimas imposições ao povo (1Rs 12,4) – e reflete séculos de resistência popular aos desmandos das monarquias de Israel e de Judá.

Expressão simbólica da redução das pretensões que o rei possa ter é a Lei: ela é absoluta, não o rei. Ela é a mediação fundamental entre Javé e o povo, não ele, como se costumava pensar da realeza nas diversas experiências de monarquia naqueles tempos e mundos, também em Israel e em Judá. Uma conversão radical do rei e da monarquia às necessidades da gente mais sofrida do povo: eis o que expressa, em forma de súplica, os vv. 12-14 do Sl 72 (que bem pode ter tido uma redação nessa época).

2.4. O profeta (Dt 18,9-22)

O lugar decisivo que a figura profética ocupa nessa articulação dos poderes concebida no Código Deuteronômico não permite ignorar que se está entrando num terreno desafiador; daí que a perícope a ela consagrada se componha de forma complexa, associando proibições, promessas e reflexão. Pode-se entender o desenvolvimento do texto em três momentos principais: a) vv. 9-14 – proibição a um conjunto de práticas disseminadas, desde muito tempo, entre os clãs de Israel e Judá, em consonância com os movimentos em vista da centralização do culto; b) vv. 15-20 – o ponto alto da perícope, em que se anuncia um perfil de profeta associado ao sempre referencial Moisés; sua atividade fundamental está associada à palavra, aquela que Javé faz ecoar por meio da sua boca. Com isso se estabelece um contraste com as várias práticas tradicionais, de forte presença no meio da população, condenadas nos versículos precedentes; c) vv. 21-22 – critérios que autenticam a verdadeira profecia: o cumprimento das palavras veiculadas por meio dela (cf. o exemplo de Jr 28).

Vale a pena concentrar-se um pouco mais no momento central do texto. A relação estreita proposta entre o profeta e Moisés tem duas faces: a) Moisés é profeta; b) o profeta é alguém como Moisés. O vínculo com esta figura tão decisiva na maneira de Israel conceber a sua formação e as suas origens é parte fundamental de um processo que situa o profeta no mesmo nível das personagens tratadas anteriormente, de modo muito particular o rei. O profeta tem a autoridade advinda do fato de as palavras de Javé ecoarem por nenhum outro caminho que não a voz dele. De alguma forma, é pensado em termos de instituição: ele não faltará ao Israel que quer ouvir a palavra de seu Deus. Expõe-se aqui, ao que parece de forma muito consciente, uma dinâmica entre carisma e poder: se o profeta é um, em lugar de muitos, equiparado ao ancestral Moisés, deve-se reconhecer que sua atividade tem algo de aberto, não podendo ser cerceada por parâmetros que não sejam os insondáveis de Javé. Se há alguma instância que acabe por receber acento maior é esta, a do profeta: a força dos vv. 19-20 só reitera o seu lugar, ao final, de garantia de que o pacto entre Javé e seu povo se mantenha e se prolongue.

Nesse sentido, é preciso notar como o Código Deuteronômico retoma e relê situações que terão existido em Israel e Judá ao longo de muitos séculos: a existência e a ação de profetas atuantes em espaços e circunstâncias de alguma proximidade com instâncias como o templo ou mesmo a corte. Em relação a estes sujeitos é que figuras como Amós (7,14) negam serem profetas; outros, como Oseias (9,7), são ridicularizados; vale ainda recordar Miqueias (3,5) denunciando “os profetas que extraviam o meu povo” e afirmando o que é ser profeta de Javé (3,8; 6,8). Esses “não profetas” do século VIII a.C., críticos das instituições oficiais da monarquia e do templo, só passarão a ser reconhecidos como profetas sob o impacto decisivo do que o Código Deuteronômico diz a respeito desta figura, agora situada no quadro de poder compartilhado que ele está delineando.

3. Entre memórias e projeções

Recuperando memórias múltiplas de tempos passados de Israel e de Judá, os setores responsáveis pela redação deste conjunto representado por Dt 16,18-18,22 alcançaram um feito significativo; na verdade, decisivo. Se a escrita desse conjunto ocorreu em meados do século VII a.C., quando o imperialismo assírio alcançava seu auge, ao mesmo tempo que dava os primeiros sinais de veloz decadência, então os tempos de Josias terão sido irrigados por seu impacto. Não terão sido poucos os que pretenderam que aqueles tempos de ebulição reformista pudessem ver concretizados os ideais expressos nas determinações do Código Deuteronômico.

Isso não significa que, necessariamente, todas as prescrições ali reunidas e articuladas tenham sido do agrado daqueles setores que efetivaram as reformas preceituadas pelo rei. É certo, porém, que houve quem tenha feito juízo favorável da atuação de Josias justamente por considerar critérios presentes no Código Deuteronômico: a atenção às carências das parcelas empobrecidas da população (Jr 22,15-16). Seja como for, não se pode dizer que as reformas realizadas a mando de Josias tenham conseguido, nem mesmo pretendido, efetivar esse modelo de repartição dos poderes. Nem por isso esse projeto deixou de ser revisitado e assumido; inscrito uma vez no interior do Código Deuteronômico, ganhou o horizonte da utopia, sempre desafiando e inspirando ao fazer história, como parte do Deuteronômio, da Escritura judaica e da Bíblia cristã.

Conclusão

“A redação principal deste trecho da lei deuteronômica teve em mira uma legislação global acerca dos poderes dirigentes em Israel” (LOHFINK, 1984, p. 78). Uma legislação que estabeleça a afirmação de instituições já conhecidas, mas agora radicalmente repensadas em vista de um equilíbrio entre elas e de um controle mútuo, num cenário de resistências e esperanças de libertação da avalanche imperialista. O pacto com Javé, em sua dimensão radical preconizada pelo Código Deuteronômico, com a centralização do culto e o combate a um sem-número de práticas religiosas populares, é o esteio a sustentar a insubordinação a qualquer jugo.

Os tempos e as circunstâncias vieram mudando de tantas formas e por tantos caminhos nestes mais de dois milênios e meio, que distanciam nossa realidade daquela que viu nascerem os textos aqui comentados. Se isso, por um lado, é indiscutível, por outro não deve esconder as coisas que se repetem como tais, resultantes de tantas transformações efetivadas. As carências de ordem social, as tentações e ensaios de autoritarismo no mundo da política, as guerras religiosas sustentadas naquilo que hoje denominamos fundamentalismo – algumas das quais ancoradas, em ambientes cristãos, justamente em textos deuteronômicos de cunho concentrador e exclusivista – desafiam a abordagem deste livro capital, na dialética entre o reconhecimento das formas concretas do projeto então delineado e a identificação de seus potenciais de inspiração. A certeza de que, a despeito das tendências centralizadoras, as contrapartidas e as instâncias mais locais de poder são indispensáveis é facho de luz que pode e deve iluminar as invenções que, hoje, as comunidades são desafiadas a fazer, levando em conta as demandas contemporâneas por igualdade, justiça e cuidado com a casa comum e com cada um de seus moradores, na abertura ao imponderável profético.

Referências bibliográficas

BÍBLIA. Nova Bíblia Pastoral. São Paulo: Paulus, 2016.

CRÜSEMANN, Frank. A Torá: teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2002.

GARMUS, Ludovico. Imperialismo: estrutura de dominação. Revista de Interpretação
Bíblica Latino-americana
, Petrópolis, n. 3, p. 7-20, 1989.

LOHFINK, Norbert. Grandes manchetes de ontem e de hoje. São Paulo: Paulinas, 1984.

ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares. Uma história cultural de Israel. São Paulo: Paulus, 2013.

Pedro Lima Vasconcellos; Rafael Rodrigues da Silva

é mestre e livre-docente em Ciências da Religião, doutor em Ciências Sociais e pós-doutor em História. Professor no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
é mestre em Ciências da Religião, doutor em Comunicação e Semiótica e livre-docente em Teologia. Professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Assessor e membro da direção nacional do Centro de Estudos Bíblicos (Cebi).
Ambos compuseram a equipe responsável pela edição da Nova Bíblia Pastoral.