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Publicado em março-abril de 2023 - ano 64 - número 350 - pp.: 16-25

Doutrina Social da Igreja e Direitos Humanos

Por Elvis Rezende Messias*

Apresentamos aqui uma visão da Doutrina Social da Igreja sobre os direitos humanos, que têm sido alvo de profundos ataques nestes tempos difíceis que estamos vivendo. Aos católicos, faz-se necessário superar afirmativas depreciativas dos direitos humanos. Nesse sentido, o ensino social da Igreja, com sua perspectiva teológico-antropológica, é importante auxílio para uma compreensão integral da dignidade humana e da justa defesa de seus direitos fundamentais.

Introdução

“Direitos humanos é coisa para defender bandido!” “Direitos humanos só se forem para humanos direitos!” Afirmativas como essas têm se tornado comuns ultimamente na boca e no imaginário de alguns cidadãos, tidos como “gente de bem” e “defensores da moral e dos bons costumes”. Tem acontecido um trabalho consideravelmente forte de descrédito por parte de alguns grupos reacionários, que parecem ignorar as conquistas e a verdadeira lógica inerente aos chamados direitos humanos.

Ninguém nega que é importante ser “gente de bem” nem que há algo de bom em defender certa “moral e bons costumes”, mas não é aceitável que as afirmativas acima sejam tidas como bons exemplos do que é ser “gente de bem” e portadora de “bons costumes”.

A “moral” não é uma coisa boa por si mesma, já que pode ser considerada como a forma de conduta específica de determinada realidade grupal, que faz leituras particularizadas do que entende ser “bom” e “melhor” para a humanidade e para a sociedade. Ora, é absolutamente possível que determinado povo defenda com todo vigor sua moralidade, o que não significa, porém, que isso seja considerado algo verdadeira e/ou universalmente bom. Por exemplo, pode ser que faça parte da moral e dos “bons” costumes de determinado povo amputar o clitóris das meninas, mas não quer dizer que isso seja uma coisa realmente boa do ponto de vista ético, de um ponto de vista mais universal, compartilhado pela maioria dos povos. Nem tudo que é tido como moralmente aceitável por um grupo social é, realmente, aceitável do ponto de vista da dignidade humana integral.

Desse modo, antes de veicular a necessi­dade de defender “a moral e os bons costumes”, é preciso ter claro o que tais defensores entendem por “moral” e por “bons costumes”, assim como questionar qual concepção de ser humano determinado povo ou grupo têm em mente ao categorizar o que deve e o que não deve ser considerado como “gente de bem”. Do mesmo modo, quando se diz que “direitos humanos só servem se forem para humanos direitos”, é preciso ter claro o que se pode entender por “direitos humanos” e por “humanos direitos”.

A situação se torna ainda mais preocupante quando tais discursos são proferidos e disseminados por “gente de bem” pertencente a alguma denominação religiosa, até sob a justificativa de uma pretensa teologia. A fim tratar da questão, tomaremos a discussão sobre os direitos humanos com base nas compreensões teológicas que a Doutrina Social da Igreja católica tem sobre o tema, com o intuito de trazer luzes que desmantelem visões e discursos preconceituosos e segregadores.

1. Doutrina Social da Igreja, antropologia teológica e direitos humanos

O tema dos direitos humanos não é ignorado nem rechaçado pela Igreja. Ao contrário, é tomado como importante avanço da reflexão humana contemporânea, sobretudo após as atrocidades desumanas que marcaram, em muitos aspectos, o século XX. No importante Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI), publicado no ano de 2004 pelo então Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, há uma parte que trata exclusivamente do tema dos direitos humanos: capítulo III, parte IV.

O papa São João XXIII foi bastante importante para o desenvolvimento da reflexão eclesiástica nesse aspecto, pois sua encíclica Pacem in Terris, publicada em 1963 em um contexto de expansão da corrida armamentista nuclear, contém “uma primeira aprofundada reflexão da Igreja sobre os direitos; é a encíclica da paz e da dignidade humana” (CDSI 95). Após sessenta anos da publicação da encíclica, desde então, a Igreja reconhece a proclamação dos direitos humanos, sobretudo o texto de 1948 da ONU –
Declaração Universal dos Direitos Humanos –, como “um dos mais relevantes esforços para responder, de modo eficaz, às exigências imprescindíveis da dignidade humana” (CDSI 152, destaque nosso).

Heinrich Denzinger e Peter Hünermann (2015) afirmam que com a Pacem in Terris “os direitos da pessoa humana são, pela primeira vez, fundados e reconhecidos no seu conjunto, a partir dos princípios cristãos, pelo magistério eclesial” (2015, p. 887), e acrescentam que um exemplar da encíclica foi enviado aos membros da ONU pelo papa “em sinal de solidariedade” (MESSIAS, 2021, p. 41).

Como a afirmativa acima denota, todo o fundamento dos direitos humanos – que são, então, devidamente reconhecidos como algo bom pela Igreja – está na inalienável e integral dignidade da pessoa humana. E onde se encontra a raiz de tal dignidade, segundo o ensinamento social católico? No fato crucial de que o ser humano é realidade criada à imagem e à semelhança de Deus – imago Dei (Gn 1,26-27). Ora, “a Igreja vê no homem, em cada homem, a imagem viva do próprio Deus. […] Portanto, ‘por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas uma coisa, mas alguém’” (CDSI 108-109).

Aqui há algo de fundamental para a compreensão cristã dos direitos humanos: por sua origem em Deus, a dignidade humana é identificada e está configurada em uma dimensão profundamente ontológica; ou seja, o ser humano é digno, sobretudo, pelo que ele é, e não, redutivamente, pelo que ele faz ou deixa de fazer. Sua condição imperdível de pessoa humana, criada à imagem de Deus e chamada por esse mesmo Deus à comunhão com ele e com as outras pessoas em sociedade (CDSI 108), é suficiente para o reconhecimento de sua dignidade. Isso é fundamental, como dissemos, porque nos ajuda a entender que, ainda que uma pessoa resolva enveredar pelo caminho da delinquência, sua dignidade ontológica permanece e, como tal, é merecedora de defesa e promoção, pois não se trata de uma realidade meramente concedida pelos Estados ou decidida por assembleias. Por consequência, em uma perspectiva sociojurídica, é reconhecido, então, o fato de que os direitos humanos são respostas às necessidades naturais do ser humano, e não uma concessão institucional. O Estado está obrigado a reconhecer a existência natural de tais direitos e a respeitá-los, servi-los e promovê-los por meio do seu direito positivo. Diz o Compêndio:

Nos direitos humanos estão condensadas as principais exigências morais e jurídicas que devem presidir à construção da comunidade política. Tais direitos constituem uma norma objetiva que está na base do direito positivo e que não pode ser ignorada pela comunidade política, porque a pessoa lhe é ontológica e teleologicamente anterior: o direito positivo deve garantir a satisfação das exigências humanas fundamentais (CDSI 388).

Nesse sentido, conforme nossa provocação na introdução deste artigo, o que se entende por “ser humano” é orientador para o que se pretende entender sobre seus direitos e balizador das atividades jurídicas. Ao contrário do que tem sido dito por aí, os direitos humanos não são realidades exclusivas de “humanos direitos”, mas tão somente de “humanos”, desse ser humano que – mesmo em diversas situações de desvio de conduta social, mesmo em situações que atentem contra o princípio fundamental do bem comum – mantém sua dignidade ontologicamente preservada.

Sobre isso, o Catecismo da Igreja Católica (CIC), na atual redação do número 2.267 publicada como Rescriptum pela Congregação para a Doutrina da Fé em 2018, no contexto da inadmissibilidade do recurso à pena de morte, por exemplo, como instrumento de salvaguarda do bem comum, oferece-nos uma reflexão fundamental. Ali se afirma claramente que “hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos” (CIC 2.267). Isso faz parte do núcleo da antropologia teológica católica e ilumina todo o horizonte de sua ação pastoral. Um católico não pode perder esse horizonte de fé ao abordar qualquer questão social, como é o caso da temática dos direitos humanos. A doutrina da Igreja oferece uma visão integral do ser humano, anunciando a dignidade inviolável de toda e cada pessoa, introduzindo as realidades do trabalho, da economia, da política e do direito em uma perspectiva original que ilumina os autênticos valores humanos (CDSI 522). Donde se pode afirmar:

A ação pastoral da Igreja no âmbito social deve testemunhar, antes de tudo, a verdade sobre o homem. A antropologia cristã permite um discernimento dos problemas sociais, para os quais não se pode encontrar boa solução se não se tutela o caráter transcendente da pessoa humana plenamente revelada na fé (CDSI 527).

Nessa mesma perspectiva, são também elucidativas as reflexões de autores cristãos. Jacques Maritain (1967, p. 12), por exemplo, sustenta que, “por mais indigente e esmagada que seja, uma pessoa é, como tal, um todo, e como pessoa ela subsiste de maneira independente”. E Bartolomeu Sorge (2018), por sua vez, afirma:

O Evangelho ensina que o homem vale pelo que é e não pelo que tem ou pelo que faz. O homem merece amor e respeito porque vive, não porque possui. A sua dignidade está ligada ao fato de que é pessoa. Portanto, desde o momento em que se acende a primeira centelha da vida no seio da mãe, até o momento da morte física, toda pessoa conservará sempre a sua honorabilidade, mesmo se for pobre ou enferma, mesmo se erra ou é delinquente. A pessoa humana não perde nunca a sua grandeza nativa e ninguém lha pode tirar (SORGE, 2018, p. 27).

Desse modo, percebamos que a Doutrina Social da Igreja reflete que é indispensável sólida antropologia para a elaboração de uma consistente teoria do direito. O princípio antropológico à luz do qual a proposta reflexiva da Igreja se desenvolve não é o pessimista, como se o ser humano fosse uma realidade de natureza ruim, egoísta e predatória. Ao contrário, a antropologia que é eclesiologicamente construída está solidamente embasada na vertente teológica, uma vez que seu viés hermenêutico privilegia uma verdade transcendente sobre o ser humano: a teologia da criação é posta como a base potencializadora indispensável para a compreensão antropológica e social.

O livro do Gênesis nos propõe algumas linhas mestras da antropologia cristã: a inalienável dignidade da pessoa humana […], a sociabilidade constitutiva do ser humano […], o significado do agir humano no mundo […]. Esta visão da pessoa humana, da sociedade e da história é radicada em Deus e é iluminada pela realização do seu desígnio de salvação (CDSI 37).

Ora, falamos aqui, exatamente, de “direitos humanos”. Grosso modo, pode-se entender o termo “direitos” como algo que se refere à ideia de justiça ou mesmo que deriva dessa ideia, enquanto desejo do ser humano em sua dimensão intersubjetiva, relacional, e o termo “humanos” como derivado da ideia de humanidade, como sinal de distinção específica daquilo que o ser humano é, seja pelo aspecto da racionalidade, da criatividade, da sociabilidade, da dimensão da consciência etc.

Partindo da ideia de justiça – segundo a qual é preciso reconhecer o que uma pessoa é e dar-lhe aquilo que lhe é próprio, seja de modo distributivo ou corretivo –, bem como da noção de humanidade, como condição específica de cada ser humano, reconhecido como ser racional e social, divinamente criado à imagem de seu próprio Criador, então também se pode compreender que os direitos humanos são a solicitação de que seja realizado, na dimensão histórico-temporal, aquilo que o ser humano é em sua realidade mais profunda e de que sejam reconhecidas e dadas a ele as condições efetivas de desenvolvimento integral de sua própria humanidade.

Há aqui, como se pode notar, uma complementaridade entre a noção que entende, do ponto de vista do direito, o ser humano como cidadão e a noção que entende, do ponto de vista antropológico, o ser humano como pessoa. Como diz Sorge (2018), situando a discussão da legalidade jurídico-política especialmente no campo da ética, “as regras políticas, econômicas e institucionais (cuja importância ninguém nega) sozinhas não bastam, se faltar a atenção ao componente humano e humanizante […]. Prova disso é a persistência de graves situações de subdesenvolvimento no mundo” (SORGE, 2018, p. 51).

2. Direitos e deveres: a pedra de toque do bem comum

À luz, então, dessa complementaridade entre direito e antropologia, entre aspecto civil e aspecto ontológico, ambos sob o viés paradigmático da teologia, a Doutrina Social da Igreja compreende também que “intimamente conexo com o tema dos direitos é o tema dos deveres do homem” (CDSI 156), evocando “a recíproca complementaridade” entre eles.

Em sua encíclica Pacem in Terris, São João XXIII ensina que é justamente da consciência da dignidade da pessoa humana que se depreendem vários de seus direitos e faz um grande elenco desses direitos humanos:

  1. a) o direito à existência e a um digno padrão de vida (PT 11); b) os direitos que se referem aos valores morais e culturais, como à boa fama, liberdade de pesquisa, liberdade de manifestação do pensamento, cultivo da arte, informação pública verídica (combate às fake news), direito de instrução de base, de formação técnica, profissional e de acesso aos estudos superiores (PT 12-13); c) o direito à fé pessoal e pública, de liberdade religiosa (PT 14); d) o direito à liberdade na escolha do próprio estado de vida, ao matrimônio livremente contraído, à primazia na educação dos filhos na perspectiva do bem comum (PT 15-17); e) os direitos inerentes ao campo econômico, com marcante senso de responsabilidade social, como à livre iniciativa, ao trabalho justo, devidamente desenvolvido sob condições dignas e dignamente remunerado, “condizente com a dignidade humana” (PT 20), à propriedade e sua função social (PT 18-22); f) direito de reunião e associação, oriundo da sociabilidade natural da pessoa (PT 23-24); g) direito de emigração e de imigração, posto que o “fato de alguém ser cidadão de um determinado país” não lhe tira “o direito de ser membro da família humana, ou cidadão da comunidade internacional” (PT 25); direitos de caráter político, como a participação ativa na vida pública e ao bem comum, dado que a pessoa é o sujeito, o fundamento e o fim da vida sociopolítica, e o direito de segurança jurídica contra todo juízo arbitrário (PT 27) (MESSIAS, 2021, p. 53-54).

Segundo o papa, o reconhecimento desses direitos impõe o consequente reconhecimento da sua relação indissolúvel com os deveres. E apresenta também um elenco do que podemos chamar de deveres humanos:

  1. a) reconhecer a dignidade integral da pessoa do outro, da reciprocidade de direitos e deveres entre pessoas diversas (PT 30); b) o dever de colaboração mútua e de promover o bem comum (PT 31); c) envidar todos os esforços para que cada pessoa disponha dos bens indispensáveis à sua subsistência (PT 32-33); d) o dever do senso de responsabilidade e de liberdade, fruto de uma viva consciência da dignidade humana, e que deve ser sempre superior a qualquer coação, imposição externa, medo, dado que “uma convivência baseada unicamente nas relações de força nada tem de humano” (PT 34-35); e) reconhecer os próprios direitos e deveres quanto os dos demais, deixando-se “conduzir por um amor que sinta as necessidades alheias como próprias”, buscando a comunhão (PT 35); f) considerar “a convivência humana como realidade eminentemente espiritual”, transpondo reducionismos antropológicos, abrindo-se ao dom do outro, reconhecendo valores de ordem transcendente (comunhão, igualdade de dignidade, verdade, justiça, amor, liberdade…) como basilares para a articulação da convivência humana pacífica e condigna ao ser humano (PT 36-37) (MESSIAS, 2021, p. 54-55).

Como se vê, é dever fundamental reconhecer que os outros também são sujeitos de direitos, a fim de que se alcance aquilo que os direitos humanos, em nível social, pretendem alcançar: o bem comum, que é sinal claro de nosso chamado divino à comunhão, tanto com o Criador quanto com os irmãos em sociedade (CDSI 108-110), desenvolvendo integralmente nossa própria humanidade (CDSI 164). Assim ensina o Compêndio:

A comunidade política persegue o bem comum atuando com vista à criação de um ambiente humano em que aos cidadãos seja oferecida a possibilidade de um real exercício dos direitos humanos e de um pleno cumprimento dos respectivos deveres. […] A plena realização do bem comum requer que a comunidade política desenvolva, no âmbito dos direitos humanos, uma ação dúplice e complementar, de defesa e promoção: “Evite-se que, através de preferências outorgadas a indivíduos ou grupos, se criem situações de privilégio. Nem se venha a instaurar o absurdo de, ao intentar a autoridade tutelar os direitos da pessoa, chegue a coarctá-los” (CDSI 389).

Essa compreensão, enfim, protege-nos contra a tentação do reducionismo da pessoa humana. Ou seja, a defesa da dignidade humana não está, de modo algum, a serviço de uma conivência com atitudes de egoísmo, mas também não se deixa levar pelo desespero diante daquelas pessoas que, por alguma razão, praticam atos indignos de sua humanidade. No lugar de um humanismo exclusivo, autorreferencial, reducionista, que explora os outros em nome do prazer particular e/ou grupal, é sempre posta à luz a verdade do humanismo integral, que reconhece as múltiplas dimensões da existência humana e a cada uma delas procura respeitar e efetivar na concretude da existência, sempre mantendo o foco da compreensão central do ser humano como imago Dei, isto é, como ser “à imagem de Deus”.

Considerações finais

Importa reafirmar que os direitos humanos não são “coisas para bandidos” ou algo que deveria ser reconhecido somente para “humanos direitos”. É verdade que podem acontecer equivocadas e perigosas distorções do conceito e dos tipos de práticas defensoras dos direitos humanos, tanto por parte de grupos que se apresentam como seus arautos quanto por parte daqueles que emitem as críticas que abordamos brevemente na introdução e no desenvolvimento deste pequeno ensaio. Entretanto, é inequívoco o ensinamento social católico sobre o tema.

Ora, não se pode ignorar o fato de que, se existem pessoas em situações graves de comportamento indigno em nossa sociedade, talvez seja porque, primeira e provavelmente, essas pessoas tiveram sua dignidade ontológica sistematicamente desrespeitada por toda uma conjuntura histórico-social que insiste em não efetivar o respeito aos direitos humanos. Na verdade, a contento, quem de nós é um “humano direito”? Essa expressão não tem sentido antropológico-teológico que se sustente.

Os direitos humanos não são coisas para “humanos direitos”, mas sim a condição social de possibilidade de que nenhum ser humano sinta “necessidade” de enveredar por caminhos errados, ou seja, de cogitar trilhar caminhos indignos de sua humanidade. E sabemos que isso pode acontecer por falta ou dificuldade de acesso a muitos direitos fundamentais, tais como: trabalho digno; remuneração justa para a subsistência plena da própria família; cultura e educação de qualidade; conhecimento e experiência concreta/consciente da verdade sobre a própria natureza humana; informação completa e verdadeira; políticas públicas que promovam o bem comum e enfraqueçam as “estruturas de pecado”; liberdade religiosa e instituições que, plena e verdadeiramente, procurem responder aos anseios humanos mais profundos. Soma-se a tudo isso também a carência de uma economia verdadeiramente a serviço do ser humano; de leis que efetivamente promovam um contexto social mais justo, equitativo e favorável ao desenvolvimento pleno de todas as pessoas e da pessoa toda; de um ambiente propício para o pleno e responsável desenvolvimento e sustento de todos os seres vivos, entre tantas outras realidades que, pela sua completa falta ou escassez, ferem a dignidade e geram a indignação de tantos homens e mulheres.

A Doutrina Social da Igreja ressalta a necessidade de defender os direitos humanos, reconhecendo que sua fonte última está situada no próprio ser humano e em Deus criador (CDSI 153). Daí que se destacam as propriedades fundamentais dos direitos da pessoa: eles são naturais (exprimem a própria natureza humana e dela derivam), universais (pertencem a todo ser humano), inalienáveis (não são transferíveis nem concedidos por terceiros), invioláveis (não podem ser diminuídos e negados), imprescritíveis (não se perdem com o tempo), irrenunciáveis (não se perdem pelo simples fato de o sujeito deles abdicar). Além do mais,

[…] são fundamentais, porque neles se originam os vários direitos depois consignados na ordem jurídica dos Estados […]. Em relação ao Estado, sublinhemos que os direitos humanos não são devidos nunca a qualquer benigna concessão por parte dele. O Estado deve, sim, reconhecê-los, mas não os cria […], “contra eles não pode prevalecer nenhuma razão do Estado, nenhum pretexto do bem comum […]”. Vê-se, pois, que, para a Igreja, são manifestamente errados os sistemas que fazem derivar os direitos do homem, não de uma necessidade natural, mas da vida em sociedade [sociologismo] (RODRIGUES, 2008, p. 44-46).

Em síntese, é nessa perspectiva teológico-antropológica que se pode compreender a relação entre a Doutrina Social da Igreja e os direitos humanos. Para a Igreja, “a dimensão teológica revela-se necessária para interpretar e resolver os problemas atuais da convivência humana” (Centesimus Annus, n. 55) e ambos, Doutrina Social da Igreja e direitos humanos, estão, cada um ao seu modo, empenhados no serviço à verdade plena sobre a humanidade, oferecendo sólidas contribuições “à questão do lugar do homem na natureza e na sociedade” (CDSI 14). Portanto, “as motivações religiosas de tal empenho podem não ser compartilhadas, mas as convicções morais que dele decorrem constituem um ponto de encontro entre os cristãos e todos os homens de boa vontade” (CDSI 579).

Referências bibliográficas

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CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Nuova redazione del n. 2267 del Catechismo della Chiesa Cattolica sulla pena di morte. Disponível em: http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2018/08/02/0556/01209.html#PORTPAPA. Acesso em: 4 out. 2022.

JOÃO PAULO II, Papa. Centesimus Annus: Carta Encíclica no centenário da Rerum Novarum. São Paulo: Loyola, 1991.

MARITAIN, Jacques. Os direitos do homem e a lei natural. Tradução: Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

MESSIAS, Elvis Rezende. Redescobrir a doutrina social da Igreja hoje: contribuições fundamentais a partir da Pacem in Terris. Encontros Teológicos, Florianópolis, v. 36, n. 1, p. 31-67, jan.-abr. 2021.

PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI). Tradução: CNBB. São Paulo: Paulinas, 2011.

RODRIGUES, António dos Reis. Pessoa, sociedade e Estado. Estoril: Principia, 2008.

SORGE, Bartolomeo. Breve curso de Doutrina Social. Tradução: Jaime A. Clasen. São Paulo: Paulinas, 2018. (Fé e justiça).

VIEIRA, Domingos Lourenço Vieira. Doutrina Social da Igreja: introdução à ética social. Lisboa: Paulus, 2013.

Elvis Rezende Messias*

*é licenciado em Filosofia pela UEMG, bacharel em Teologia pela UCDB, mestre em Educação pela Unifal-MG, especialista em Doutrina Social da Igreja pela PUC-GO e em Filosofia pelo Claretiano. Atualmente faz doutorado em Educação pela Uninove (bolsista Capes). É docente pesquisador e vice-diretor da UEMG-Campanha. É autor do livro O Evangelho social: manual básico de Doutrina Social da Igreja (Paulus, 2020), em parceria com dom Pedro Cunha Cruz. E-mail: [email protected]
(O presente artigo traz e complementa excertos de versão publicada em Fadiva – Revista Jurídica, Varginha/MG, v. 5, p. 58-67, 2019.)