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Publicado em setembro-outubro de 2015 - ano 56 - número 305

Eu sou o bom pastor: uma leitura de Jo 10,1-21

Por Shigeyuki Nakanose, svd

A intensificação da perseguição dos judeus fariseus e do império romano mergulhou a comunidade joanina em uma crise profunda. Surgiu então o Evangelho de João, para orientar e animar a caminhada da comunidade. De modo especial, João 10,1-21 aborda a figura da liderança: o bom pastor e o falso pastor. Para os cristãos, Jesus é seu pastor, aquele que realiza a esperança de um messias-pastor que protege e conduz seu povo sofrido.

 Em 2005, seu Antônio, do Parque Santo Antônio, em São Paulo, faleceu por causa de um tumor na cabeça. Não recebeu tratamento adequado por motivo bem conhecido: atendimento ruim no sistema público de saúde. Ele fez longa romaria: espera desesperada por atendimento; falta de leito e de material para o tratamento. Passou alguns dias no corredor do hospital e acabou falecendo na enfermaria. Este foi o último pedido do seu Antônio: “Reze para mim aquela oração do bom pastor: ‘O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Em verdejantes pastagens me faz descansar e sobre águas tranquilas me conduz’”. O bom pastor do Salmo 23 – figura forte na espiritualidade do povo sofrido!

O Novo Testamento também registra várias menções ao bom pastor. Um dos textos mais conhecidos está no Evangelho de João: “Eu sou o bom pastor: conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai, e exponho minha vida pelas ovelhas” (Jo 10,14-15).

Por volta do ano 95 d.C., os judeus fariseus e o império romano intensificaram a perseguição, mergulhando a comunidade joanina em profunda crise. O grupo sofreu e foi perseguido até mesmo pelos próprios governantes. Surgiu então o Evangelho de João, para orientar e animar a caminhada da comunidade. De modo especial, João 10,1-21 aborda a figura da liderança: o bom pastor e o falso pastor.

  1. A imagem do pastor no Antigo Testamento

A imagem do pastor, frequente na Bíblia, surgiu do trabalho cotidiano do povo do Antigo Oriente. A tarefa de pastorear era assumida pelos membros da família, sobretudo pelos homens, por causa dos riscos de enfrentar feras e outros perigos, como assaltos e roubos. Mulheres e crianças cuidavam do rebanho somente nas proximidades da casa (cf. Ex 2,16-17; 1Sm 16).

Os pastores deviam ser prudentes, pacientes e dedicados. No verão, era muito difícil encontrar novas pastagens e manter o equilíbrio entre o pastoreio, o abastecimento de água, o descanso e a viagem. O pastor devia cuidar incansavelmente dos animais indefesos. As feras e os bandos de salteadores atacavam os rebanhos com bastante frequência (cf. Gn 31,39; 1Sm 17,34-37).

No Antigo Oriente, o rei era comparado ao pastor. Esse título era comum entre os governantes na Assíria e na Babilônia. Usavam muito os verbos conduzir e pastorear para falar da ação de governar. Ser chamado de pastor era uma honra, especialmente pelas características de cuidado e proteção. Neste sentido, Ezequiel, profeta exilado para a Babilônia junto com o rei Joaquin, na primeira deportação (597-587 a.C.), critica o rei Sedecias e os governantes de Jerusalém pelos abusos e descuidos com o rebanho:

Ai dos pastores de Israel que são pastores de si mesmos! Não é do rebanho que os pastores deveriam cuidar? Vocês bebem o leite, vestem a lã, sacrificam as ovelhas gordas, mas não cuidam do rebanho. Vocês não procuram fortalecer as ovelhas fracas, não curam as que estão doentes, não tratam as feridas daquelas que sofrem fratura, não trazem de volta aquelas que se desgarraram e não procuram aquelas que extraviaram. Pelo contrário, vocês dominam sobre elas com violência e opressão (Ez 34,2-4).

Para apascentar o rebanho, o grupo de Ezequiel apresenta Javé mesmo como o pastor do seu povo: “Assim diz o Senhor Javé: eu mesmo vou procurar minhas ovelhas para cuidar delas. Como o pastor conta seu rebanho quando está no meio de suas ovelhas que se haviam dispersado, eu também contarei minhas ovelhas e as reunirei de todos os lugares por onde se haviam dispersado, nos dias nebulosos e escuros” (Ez 34,11-12).

No exílio, surge a promessa de que o próprio Javé-pastor dará ao seu povo o messias-pastor, como Davi, que liberta seu povo e o reúne num só rebanho: “Providenciarei um só pastor para cuidar de minhas ovelhas. Será o meu servo Davi. Ele cuidará delas e será seu pastor” (Ez 34,23). Segundo o grupo de Ezequiel, Javé, por meio do seu Messias como rei, governará seu povo. É o messias rei que as autoridades religiosas judaicas pregariam ao longo dos anos posteriores até o tempo do Novo Testamento. Na época de Jesus, por exemplo, o povo judeu sonhava com um messias pastor como o rei Davi, que poderia estabelecer o reinado definitivo de Israel, derrotando os romanos e expulsando os governantes corruptos e opressores.

No exílio, os camponeses, chamados “pobres da terra” (Am 8,4; Sf 2,3), também foram deportados para a Babilônia, na segunda deportação (587 a.C.). O grupo não teve a mesma sorte dos primeiros deportados junto com Ezequiel, foi tratado como escravo e despojo de guerra. A Babilônia “não teve compaixão dele e colocou um jugo pesado nos ombros dos anciãos” (Is 47,6). “Os pobres e os indigentes buscam água, mas não a encontram! Estão com a língua seca de sede” (Is 41,17). Os deportados estavam cansados e enfraquecidos, sem esperança no futuro (Is 40,29). Levavam uma vida de prisioneiros como semiescravos!

Em meio à realidade de sofrimento e de abandono, os pobres da terra também sonham com Javé como pastor: “Como um pastor, ele cuida do rebanho e com seu braço o reúne. Leva os cordeirinhos no colo e guia mansamente as ovelhas que amamentam” (Is 40,11). Todavia, enquanto o grupo de Ezequiel apresenta o messias como o rei Davi, os pobres da terra propõem o messias servo para proteger e conduzir seu povo sofrido:

Vejam meu servo, a quem eu sustento. Ele é o meu escolhido, nele tenho o meu agrado. Eu coloquei sobre ele meu espírito, para que promova o direito entre as nações. Eu, Javé, chamei você para a justiça, tomei-o pela mão e lhe dei forma. E o coloquei como aliança de um povo e luz para as nações, para você abrir os olhos dos cegos, para tirar os presos da cadeia, e do cárcere os que vivem no escuro (Is 42,1.6-7).

O grupo dos pobres da terra lança um olhar sobre a história e constata que há muitos anos o povo vem sendo oprimido pela tirania dos grandes impérios e explorado pelos próprios governantes da monarquia. Com base em sua memória das aldeias comunitárias e também de sua experiência da sobrevivência comunitária dos exilados escravos, o grupo projeta nova liderança – a do “Servo”, com características diferentes dos tiranos e dos reis injustos: uma liderança baseada no amor, na ternura, na gratuidade, na não violência; na justiça, na solidariedade e, sobretudo, no maior cuidado com os sofridos, imagem que os cânticos do servo nos apresentam (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11). O messias servo dá até sua própria vida por amor ao seu povo (Is 53,12).

Nos evangelhos sinóticos, as comunidades cristãs compreendem e apresentam o seguimento de Jesus no caminho do messias servo: “Se alguém quiser seguir após mim, negue-se a si mesmo, carregue sua cruz e me siga” (Mc 8,34). A fidelidade ao amor e à justiça do Deus da vida leva Jesus à perseguição, à cruz e até à morte. Sua prática como o messias servo é do carinho e do amor de um pastor: “Quando Jesus desceu da barca, viu uma grande multidão e se encheu de compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34).

No Evangelho de João, Jesus é descrito mais diretamente como o bom pastor, com características do messias servo (Jo 10,1-18). Ele conhece suas ovelhas e elas o conhecem, e ninguém pode arrebatá-las de sua mão. Como os pobres da terra no exílio da Babilônia, a comunidade sofrida de João sonha e reza para que seja conduzida e protegida por Jesus, o bom pastor.

  1. Eu sou o bom pastor

A narrativa do bom pastor tem como pano de fundo o conflito com os fariseus, as autoridades religiosas do tempo do Evangelho de João, como está descrito no capítulo anterior, no episódio do cego de nascença (Jo 9). O modo de agir dos fariseus está em conflito com as obras de Jesus. Eles, que se julgam líderes dos judeus e donos de Deus e da Escritura, perseguiram e expulsaram o cego – seguidores de Jesus – da sinagoga, centro comunitário dos judeus. No final desse episódio, os fariseus são condenados como falsos pastores: “cegos” e “pecadores” (Jo 9,41), eles veem um cego não como pessoa que necessita da solidariedade, mas como pecado. São chamados de “ladrão” e “assaltante” na narrativa do bom pastor.

Diferentemente da narrativa da cura do cego de nascença, com a longa discussão entre o cego e os fariseus, a primeira cena da narrativa do bom pastor é a parábola da porta do curral (Jo 10,1-6). É parábola que nasce no cotidiano da vida do campo: de manhã, o pastor chama cada ovelha pelo nome para levá-la à pastagem e, à tarde, ele reúne o rebanho num recinto para a noite. Nessa parábola, o autor descreve as características e os deveres do bom pastor e de seus seguidores:

  1. “Ele chama cada uma de suas ovelhas pelo nome” (Jo 10,13). Chamar a pessoa pelo nome na Bíblia significa um relacionamento de amor e de comunhão: “Não tenha medo, porque eu o protegi e o chamei pelo nome. Você é meu” (Is 43,1; Jo 20,16). Conhecer as ovelhas e ser reconhecido por elas são virtudes fundamentais da liderança de ontem e de hoje. “O pastor tem de sentir o cheiro de suas ovelhas”, afirmou recentemente o papa
  2. “Ele as conduz para fora e caminha na frente delas” (Jo 10,3-4). O bom pastor conduz suas ovelhas às pastagens verdejantes e as protege contra predadores e ladrões. Entrega até a própria vida em favor de suas ovelhas. Ontem e hoje, o bom pastor é a imagem do líder que conduz, apascenta e protege a vida do povo e, ao mesmo tempo, é uma advertência contra a liderança que assume esta posição por interesses de lucro, poder e vaidade e, na dificuldade, abandona suas ovelhas.
  3. “Elas nunca vão seguir um estranho” (Jo 10,5). As ovelhas devem ouvir a voz do seu pastor, sem se deixar seduzir ou enganar pela voz dos estranhos. Para os cristãos, Jesus é seu pastor. Seguindo sua palavra e prática, eles podem encontrar a plenitude da vida.

Ao contrário do bom pastor, os falsos pastores são chamados de ladrões e assaltantes, termos associados a uma ação violenta, ou seja, arrebatar, flagelar, roubar, o que também acontecia nas sinagogas (Mt 10,17; Jo 16,2). Flávio Josefo, historiador judeu do século I d.C., e os rabinos usavam esses termos para falar dos métodos empregados pelos zelotas e outros grupos nacionalistas em suas práticas de guerrilha. Nos evangelhos, esses termos designam os assaltantes e bandidos que roubam, machucam e matam as pessoas (Mc 15,27; Mt 27,44; Lc 10,30; Jo 18,40).

Enfim, os termos ladrão e assaltante são usados para enfatizar o uso da força, da ação violenta de entrar no curral para roubar, destruir e matar as ovelhas. E na realidade, é uma prática corrente das lideranças político-religiosas contra o povo no tempo das comunidades joaninas. Eles não estão preocupados com a vida do povo, mas com a segurança de suas instituições e a manutenção do poder, para defender seus interesses e privilégios.

A descrição sobre o contraste entre a maneira de Jesus, bom pastor, agir e a das autoridades judaicas junto com o império romano é ampliada e detalhada na segunda cena, marcada pelos dois discursos: Jesus é a porta das ovelhas (Jo 10,7-10); Jesus é o bom pastor (Jo 10,11-18).

No primeiro discurso, a afirmação mais importante é “eu sou a porta”. De que porta se trata? Da porta do redil… Aprofundando o contexto bíblico, a porta de uma cidade ou de uma aldeia era importante espaço da vida cotidiana, era o local de comércio e também do tribunal. Acontecia ali muita injustiça: “Eles odeiam aqueles que se defendem na porta e têm horror de quem fala a verdade. Porque esmagam o fraco, cobrando dele o imposto do trigo. […] Pois eu sei como são numerosos seus crimes e graves seus pecados: exploram o justo, aceitam subornos e enganam os necessitados junto à porta” (Am 5,10-12).

“Todos os que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes” (Jo 10,8). Os fariseus, os adversários por excelência das comunidades joaninas, perseguiram e expulsaram os cristãos da sinagoga, deixando-os na pobreza, na miséria e no risco de morte. Os conflitos com os fariseus eram, portanto, não só na teologia, mas também no cotidiano da vida: comércio, trabalho, justiça etc. Jesus é porta. Os autênticos pastores são aqueles que entram pela porta de Jesus – porta da gratuidade, da partilha e da justiça que faz brotar a vida: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

No segundo discurso, o tema principal é aprofundar a qualidade fundamental do bom pastor: “Eu sou o bom pastor” (Jo 10,11a). Só nesse momento Jesus se apresenta de maneira explícita como o “bom pastor”. Essa afirmação de Jesus, “eu sou”, evoca a apresentação de Deus a Moisés na sarça ardente como “Eu sou” (Ex 3,14). É o nome próprio de Javé! Portanto, a obra de Jesus “Eu sou” é divina e autêntica com as imagens conhecidas: porta, pão da vida, pão descido do céu, caminho, verdade e vida.

Jesus, o “Eu sou” que conduz as ovelhas até os pastos, demonstra ser o autêntico guardião do rebanho, como o bom pastor na hora do perigo, aquele que não foge e arrisca a própria vida para defender suas ovelhas. A figura de oposição é o assalariado, com a finalidade de excluir aqueles que almejam o título de pastor. Da mesma forma que os ladrões, os salteadores e os estranhos ficaram desqualificados como pastores, assim se dá com o mercenário.

Em Jo 10,12-13 a imagem do mercenário aparece de maneira negativa. Na vida rural da Palestina, os pastores contratados eram comuns e deles se exigia que fizessem todo o possível para afastar os animais selvagens. Conforme a Mishná, as opiniões rabínicas, em caso de descuido, os mercenários eram obrigados a reparar os danos materiais. O relacionamento entre os mercenários e as ovelhas era mediado somente pelo aspecto econômico, por isso eles não criavam vínculos amorosos com elas. Nesse contexto, a imagem do bom pastor torna-se ainda mais apaixonante: é aquele que está profundamente unido, por laços de amor e amizade, às suas ovelhas. Podemos nos perguntar: como ficam os dirigentes políticos e religiosos que, em nome da Lei, expulsam o povo da sinagoga (Jo 9,22.34; 12,42) e se preocupam unicamente em manter seus próprios interesses (Jo 11,48)?

A imagem do lobo assaltando os rebanhos é aplicada aos falsos profetas e doutores (Mt 7,15; At 20,29). Jesus envia seus discípulos no meio de lobos (Mt 10,16; Lc 10,3), ou seja, em situações difíceis, de perseguição e risco de vida. Em Jo 10,12 aparece duas vezes a palavra lobo para se referir às ameaças a que a comunidade, as pessoas, simbolizadas pelas ovelhas, estavam expostas. Ao mesmo tempo, o texto indica que a fonte de vida e proteção está em Jesus, o verdadeiro pastor.

O bom pastor estabelece relação de conhecimento e amor recíprocos com suas ovelhas: “Eu sou o bom pastor: conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou a vida pelas ovelhas” (Jo 10,14-15). Jesus estabelece com as pessoas relações de amizade e confiança. Conhecer significa ter relações de intimidade e de comunhão. É o amor que cria a união: “Ele, que tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1; 16,27; 17,26).

A relação de amor entre Deus Pai e seu Filho é o modelo e o fundamento da comunhão entre Jesus e os seus. João 10,27-30 mostra que Jesus conhece as ovelhas que o seguem. Mas o vínculo permanente que une as suas ovelhas está fundamentado no Pai, que cuida para que ninguém as roube. Com base na unidade com o Pai, Jesus pode cumprir sua missão. Não é um conhecimento teórico-racional, mas compreensão que conduz a nova volta ao Deus que elege e salva (Os 11,1-4). Jesus dá a vida pelos seus, porque os conhece e os ama.

A missão do pastor é conduzir também as outras ovelhas que não são deste curral (Jo 10,16). Aqui, o olhar da comunidade vai além do pequeno grupo que se encontra no ambiente judaico, mas tem um horizonte amplo que inclui os samaritanos, os gregos, os romanos, enfim, todas as pessoas que aceitam o projeto de vida de Jesus em todos os lugares e em todos os tempos.

A condição de pastor, própria de Jesus, atinge o seu ponto culminante: “O Pai me ama: porque eu dou a minha vida para retomá-la de novo” (Jo 10,17). Jesus assume o projeto do Pai (Jo 6,39). A memória dos gestos de amor faz a comunidade identificar Jesus com Deus Pai. Dar a vida é gesto máximo de liberdade e amor até o fim. A liberdade de Jesus e o seu compromisso com a defesa da vida ameaçada provocam o ódio dos dirigentes judaicos (Jo 7,1.19; 8,37.40).

Jesus é livre diante da entrega de sua vida (Jo 3,35; 13,3). Existe forte relação de intimidade entre Jesus e o Pai, marcada pelo amor e pelo respeito. O Pai nada força. É da relação entre Jesus e o Pai que brota nova relação entre Jesus e aquelas e aqueles que o Pai lhe confiou. Notemos bem: Jesus é o bom pastor, mas não é o dono do rebanho (Jo 10,29; 17,12). Ele é a porta, o caminho… (Jo 10,9; 14,6). Jesus não é o ponto de chegada, mas a passagem. O seu pastoreio se realiza na liberdade. O seu sonho é que os seus tenham vida plena: saúde, educação, família, comida, casa, lazer, convivência humana na igualdade e na fraternidade; enfim, que cada pessoa viva de maneira digna.

Jesus propõe um único mandamento: amar até o extremo (Jo 10,18; 13,1). Esse mandamento é vivenciado por Jesus, que o transmite às comunidades joaninas: “amem-se uns aos outros” (Jo 13,34; 15,12.17). É o amor que cria e renova a comunidade: “Se vocês tiverem amor uns aos outros, todos vão reconhecer que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35). O amor fortalece a comunidade e a impulsiona a trabalhar em busca de mais vida para todas as pessoas.

“Ninguém tira a minha vida; eu a dou livremente. Tenho poder de dar a vida e tenho poder de recebê-la” (Jo 10,18). Dessa forma, a comunidade apresenta Jesus rompendo com o poder e a hierarquia. A entrega de sua vida gera nova vida. O poderio de Jesus se desdobra em gestos de amor e serviço. Lembremo-nos da famosa cena do lava-pés: Jesus tira o manto e coloca a toalha. O manto é símbolo do poder. A toalha significa serviço. Ao voltar para a mesa, ele retoma o manto, mas não tira a toalha. É apenas um detalhe, mas pleno de significado: o poder só tem sentido se está a serviço do bem comum.

Na última cena da narrativa (Jo 10,19-21), a comunidade joanina apresenta a reação dos ouvintes diante dos discursos, ou seja, a reação dos fariseus e seus seguidores: “Muitos diziam: ‘Ele tem um demônio! Está louco! Por que vocês o escutam?’” A reação de rejeição! Demonizar é a melhor maneira de contestar e rejeitar seu inimigo. Os chefes das sinagogas rejeitam Jesus e oprimem o povo, cuidando apenas do seu interesse e do poder que sua função proporciona.

Mas outros diziam: “Essas palavras não são de um possesso; será que um demônio poderia abrir os olhos de cegos?” (Jo 10,20-21). Ou seja, como diz o cego de nascença: “Sabemos que Deus não ouve os pecadores, mas aquele que o respeita e faz a sua vontade, a este Deus ouve. Nunca se ouviu falar de ninguém que tenha aberto os olhos de alguém que nasceu cego. Se esse homem não tivesse vindo de Deus, não poderia fazer nada” (Jo 9,31-33). A obra de Deus, que cria e alimenta a vida, desafia os seus opositores.

Hoje, Jesus bom pastor e “Eu sou” continua agindo no meio de nós, sobretudo no meio das pessoas injustiçadas e empobrecidas. O projeto do bom pastor é muito claro, objetivo e exigente: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Seguir o bom pastor é dar continuidade a esse projeto; é tornar vivo o sonho de Deus para todos. Assim, cabe-nos aceitar o desafio de ser conduzidos por Jesus: O Senhor é o meu pastor, nada me faltará…

  1. A origem de Jesus e a sua humanidade segundo o Evangelho de João

Ao ler o Evangelho de João, percebe-se que a comunidade, na discussão e no conflito com os judeus fariseus e o império romano, salienta a soberania e a divindade de Jesus. Nesse evangelho, Jesus aparece aclamado com a afirmação da divindade e da realeza. Já no prólogo lemos: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). Diante de Pilatos, Jesus fala com autoridade e afirma sua realeza (Jo 18,28-40).

Não é difícil, porém, também constatar a afirmação da humanidade de Jesus no Evangelho de João. No mesmo prólogo, lemos: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). O Verbo encarnado no meio de nós. Ele é carne! É o bom pastor que conduz, apascenta e dá até sua vida pela vida do povo. Eis aqui alguns textos exclusivos de João que descrevem a origem e a humanidade de Jesus:

  • “Tendo ouvido essas palavras, alguns da multidão diziam: ‘Ele é mesmo o Profeta!’ Outros diziam: ‘Ele é o Cristo’. Mas outros diziam: ‘Por acaso o Cristo vem da Galileia? A Escritura não disse que o Cristo vem da descendência de Davi e de Belém, a aldeia de onde era Davi?’” (Jo 7,40-42). Jesus viveu na aldeia de Nazaré e passou a maior parte de sua vida na Galileia. Era uma região de terra fértil para a agricultura e de rica pesca. Mas o povo das aldeias e dos vilarejos da Galileia sofria com a exploração, opressão e violência do poder civil e religioso: os impostos e a presença do exército romano; a extorsão e ladroagem dos líderes religiosos de Jerusalém. Fome, miséria e doenças eram realidades constantes. Então Jesus de Nazaré experimentou na própria pele a dureza e o sofrimento: “Quando Jesus desceu da barca, viu uma grande multidão e se encheu de compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34).
  • “Algumas pessoas de Jerusalém diziam: ‘Não é a esse que estão procurando para matar? Ele está aí falando abertamente, e ninguém lhe diz nada! Será que as autoridades se convenceram de que ele é o Cristo? Mas este, nós sabemos de onde vem; quando o Cristo vier, ninguém saberá de onde ele vem’” (Jo 7,25-27). Na tradição apocalíptica do tempo do Novo Testamento (cf. Ap 14,14), o Messias viria de um lugar misterioso e ninguém saberia a sua origem. Porém, Jesus, o filho de José, de Nazaré (Jo 1,45; 6,42), viveu no meio do povo, pregando, atuando e andando de uma aldeia a outra na Galileia, convivendo com os pobres, empobrecidos e excluídos: “Enquanto eles continuavam pelo caminho, alguém disse a Jesus: ‘Eu te seguirei aonde quer que fores’. Jesus lhe respondeu: ‘As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça’” (Lc 9,57-58).
  • “Quando a festa já estava pela metade, Jesus subiu ao Templo e começou a ensinar. Os judeus ficaram admirados e diziam: ‘Como é que esse homem tem tanta instrução, se nunca estudou?’” (Jo 7,14-15). Jesus não frequentou a escola dos rabinos! Mas, em Nazaré, na pequena vila dos judeus, Jesus foi criado, aprendeu e guardou as tradições de Moisés e dos profetas, vivenciadas e transmitidas pelos pobres camponeses que lutavam pela sobrevivência. Os atos, ensinamentos, ditos e parábolas de Jesus estavam enraizados em sua experiência da vida camponesa da sua terra; sobretudo, nas instruções sapienciais decorrentes das preocupações e angústias cotidianas dos pobres da Galileia: “Nessa mesma hora, Jesus exultou de alegria no Espírito Santo e disse: ‘Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos’” (Lc 10,21).
  • “Quando chegou ao lugar onde estava Jesus e o viu, Maria caiu a seus pés e disse: ‘Senhor, se estivesse aqui, meu irmão não teria morrido’. Ao ver que Maria e os judeus que iam com ela estavam chorando, Jesus se comoveu interiormente e se perturbou. E disse: ‘Onde vocês colocaram Lázaro?’ Disseram-lhe: ‘Senhor, vem e vê’. E Jesus chorou” (Jo 11,32-35). O episódio da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-44), o último dos setes sinais, descreve o poder de Jesus sobre a morte, preparando os leitores para o Grande Sinal: sua morte e a ressurreição. Apesar de ser marcado pela ação libertadora e pela soberania de Jesus, o episódio traz à tona a memória da vida de Jesus com seus seguidores e seguidoras, representados por Lázaro, Marta e Maria. Diante da fragilidade da existência humana – a morte –, Jesus chora sozinho ao ver o túmulo. O sentimento de perda! A vida ensina e faz o ser humano crescer… Assim foi a vida do homem Jesus de Nazaré.

Em comparação com os evangelhos sinóticos, o Evangelho de João destaca a soberania e a divindade de Jesus. Mas, ao mesmo tempo, procura descrever a humanidade de Jesus: ele é o Verbo encarnado, o filho de José, de Nazaré, que age na história e na vida cotidiana do povo da Galileia.

A descrição da humanidade de Jesus tem sua importância na comunidade joanina, porque ela sofre com o movimento da “gnose”. É um movimento, com influência grega, que separa o humano do divino, a terra do céu. Os cristãos gnósticos procuram obter a salvação somente pelo conhecimento da divindade de Cristo Jesus – o Verbo encarnado – e chegam a ponto de negar sua humanidade. Pregam um Jesus divino e soberano, desprezando a palavra e a prática de Jesus nazareno em sua existência humana: ele é carne.

Por isso, o Evangelho de João emprega o termo “conhecer” no sentido existencial (Jo 14,4-17; 17,20-26; cf. 2Jo 1-2). Nesse evangelho, o conhecimento não provém de um exercício puramente intelectual, espiritual e elitista, mas da experiência e convivência humana. O verdadeiro conhecimento do amor de Deus é conhecer e praticar o amor de Jesus em suas palavras e seus atos: “Eu sou o bom pastor: conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai, e exponho a minha vida pelas ovelhas” (Jo 10,14-15).

Hoje como ontem, podemos constatar a existência de muitos movimentos cristãos que acentuam o Jesus divino e glorioso, menosprezando o Jesus humano, o Verbo encarnado na história. Quem confessa e segue Cristo Jesus, bom pastor, como um dos caminhos para construir o Reino de Deus é chamado a praticar as palavras e os atos de Jesus de Nazaré nas atividades cotidianas: conscientizar e promover a vida; ser solidário com os mais desprezados e rejeitados pelos poderes do mundo, seduzidos pela ambição desenfreada de bens, poder, prazer e honra que promove a morte: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6).

Shigeyuki Nakanose, svd

Religioso verbita, assessor do Centro Bíblico Verbo, leciona no Itesp (São Paulo) e na Faculdade Católica de São José dos Campos. Juntamente com a equipe do Centro Bíblico Verbo, tem publicado todos os anos pela Paulus um subsídio para reflexão e círculos bíblicos para o mês da Bíblia. Para o ano de 2015, o subsídio é Permanecei no meu amor para dar muitos frutos – entendendo o Evangelho de João.
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