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Publicado em novembro – dezembro de 2018 - ano 59 - número 324

Leigo: um conceito em evolução

Por Jean Poul Hansen

Introdução

A palavra “leigo” (em grego laïkós, e em latim laicus) deriva da palavra grega laós, que quer dizer “povo”. No entanto, o termo teve sempre uma conotação negativa: “leigo” é aquele que não sabe, que não domina determinado conhecimento, que não tem o conhecimento ou a habilidade necessária para determinada arte ou ciência, que não possui conhecimento aprofundado sobre determinada área do saber. Pode ser tomado como sinônimo de ignorante. Foi usado assim, sobretudo na Idade Média, para diferenciar o povo, muitas vezes iletrado, sem acesso à cultura, de uma elite cultural e muitas vezes clerical. Na modernidade, o termo se estendeu ao nível geral, sendo usado em praticamente todas as áreas humanas com este sentido pejorativo.

Foi o Concílio Vaticano II (1962-1965) – sem dúvida, o maior evento eclesial do século XX – que, entre outras tantas questões, superou essa compreensão negativa e estabeleceu um conceito positivo de “leigos”, designando-os da seguinte forma na Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium:

Todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo batismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo, exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão na Igreja e no mundo (LG 31).

O ponto de partida é ainda negativo, ou seja, a negação do estado clerical e religioso, mas logo em seguida aparecem o batismo e o povo de Deus, os dois grandes fundamentos da teologia conciliar e pós-conciliar do laicato.

  1. Nas Sagradas Escrituras, a raiz

As Sagradas Escrituras, contudo, não conhecem essa palavra nem esse conceito, muito embora a sua raiz, laós (povo), esteja muito presente em toda a Bíblia, especialmente no Primeiro Testamento (cf. Ex 6,6-7; Dt 7,6-10; 29,12; 2Sm 14,13; Jr 7,23). Também no Segundo Testamento, em que normalmente pretenderíamos encontrar a palavra e o conceito de “leigo”, eles não aparecem.

Durante os dois primeiros séculos, as comunidades cristãs viveram sua experiência de fé como um povo eleito, todo ele consagrado e santificado em Jesus Cristo (cf. 1Cor 11,1), dirigindo-se uns aos outros como “santos” (cf. At 9,13; Rm 1,7; 15,25.31; 2Cor 1,1; Ef 1,4; 1Ts 5,27), pois se sabiam todos “eleitos”, igualmente “herdeiros da promessa” (cf. Gl 3,19; At 20,32) e chamados a exercer um sacerdócio real, oferecendo a Deus um culto verdadeiro no Espírito (cf. 1Pd 2,9).

Encontramos, nessa época, uma diferenciação de dons e carismas, a serviço do crescimento da comunidade e da missão. Há clara distinção de funções e de tarefas – apóstolos, colaboradores, líderes locais e membros da comunidade etc. –, sem que isso realize uma diferenciação hierárquica na comunidade (cf. FAIVRE, 2001, p. 25-27). As cartas autênticas de Paulo são disso um testemunho, pois nelas não aparece uma hierarquia definida, visto que, na sua redação, ainda não se tinha institucionalizado o carisma.

  1. Na Igreja primitiva, o primado da unidade

O primeiro a usar a palavra “leigo” foi são Clemente de Roma (35-97 d.C.), por volta dos anos 90 d.C., não para distinguir nem para hierarquizar os ministérios no movimento cristão, mas simplesmente para designar as pessoas que não chegaram ao conhecimento espiritual, ou seja, à vida nova em Cristo, e pensam que sua salvação vem da observância dos preceitos e do culto da antiga aliança. São Clemente Romano fala de “homens leigos sujeitos a preceitos leigos”.

Os fiéis em Cristo foram homens e mulheres que, compartilhando lado a lado as condições ordinárias da vida das pessoas do seu tempo, caminhavam como povo chamado à santidade, inseridos na vida social, na qual, conscientes de serem escolhidos por Deus para tornar realidade seu projeto de amor no meio do mundo, anunciavam e testemunhavam o evangelho, vivendo como discípulos no seguimento de Jesus Cristo e testemunhando sua centralidade na própria vida.

A conversão não supunha para eles, regra geral, o abandono de suas famílias, de seu estado de vida, de suas ocupações profissionais etc. Sua vida no meio do mundo, isso sim, era paradoxal (cf. LÓPEZ, 2012, p. 54-70), como testemunha a Carta a Diogneto (V e VI):

Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por sua língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e a especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em casas gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e em toda pátria são estrangeiros. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, lhes é dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio.

Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim estão os cristãos no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo, e os cristãos estão em todas as partes do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os cristãos são vistos no mundo, mas sua religião é invisível. A carne odeia e combate a alma, embora não tenha recebido nenhuma ofensa dela, porque esta a impede de gozar dos prazeres; embora não tenha recebido injustiça dos cristãos, o mundo os odeia, porque estes se opõem aos prazeres. A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; também os cristãos estão no mundo como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita em uma tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada em comidas e bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos, maltratados, a cada dia mais se multiplicam. Tal é o posto que Deus lhes determinou, e não lhes é lícito dele desertar.

Os cristãos estiveram, portanto, inseridos em sua realidade, trabalhando, convivendo nos lugares públicos e habituais, mantendo quanto possível o mesmo jeito e modo de ganhar a vida, e evitando apenas os espetáculos do circo e as obscenidades do teatro (cf. Tertuliano, Apologética, 38,4). A ambiguidade da história, a presença nela de realidades e estruturas de pecado, não foram ocasião de fuga para os primeiros cristãos, senão de fazer-se presentes no meio dela como sal e luz (cf. Mt 5,13-16). E foi essa inserção, ademais, o próprio método de evangelização.

  1. Na cristandade, cresce a diferenciação e se torna separação

Se algo caracteriza a Igreja primitiva é a escassa diferenciação entre “leigos” e “clérigos”, o que fica patente quando constatamos que a presença dos leigos na organização institucional ocupa um papel relevante na comunidade eclesial e, depois do ano 313 d.C., nas próprias estruturas do Império. Leigos conscientes de que o ponto de partida é o batismo. Ele é o início do ser cristão, ou como afirmou são Jerônimo (347-420 d.C.), de maneira breve, mas eloquente: “O batismo é o sacerdócio do leigo” (Dialogus contra luciferianos, n. 4).

Podemos dizer que a igualdade de todos os fiéis perante Deus é um dos princípios basilares da sociedade cristã. A diferenciação que lentamente ocorreu, durante os séculos I e II, com o aparecimento de estruturas organizativas na comunidade, respondia à necessidade de propor um intermediário visível entre Deus e as pessoas, donde surgiria uma classe particular e eleita, o clero. Isso só acontece claramente no século III. É só a partir de santo Ireneu (130-202 d.C.) que se pode falar de uma diferenciação hierárquica entre clero, no qual se agrupam os ministérios, e leigos (cf. LÓPEZ, 2012, p. 44-46).

Não nos esqueçamos de que foi a partir do século IV que se estabeleceu o uso de lugares diferenciados na celebração litúrgica para o clero e o povo. Este detalhe foi testemunhado pelo Codex Theodosianus, um século mais tarde, ao determinar que os clérigos fossem postos na abside ou capela-mor e os fiéis, na nave da igreja, denominada “o lugar de oração do povo” (Codex Theodosianus, 9,45). Nessa época, clérigos e leigos se vestiam da mesma maneira e, ademais, levavam um mesmo estilo de vida, sendo também habitual ao clero o trabalho manual. Nem sequer a recomendação paulina da continência (cf. 1Cor 7,1-2.7-9.32-35) se havia transformado ainda na lei canônica do celibato.

A mudança das relações internas da comunidade, com a institucionalização da hierarquia sacerdotal e com a desigual participação na vida litúrgica, produziu variadas reações. A mais ferrenha foi a do Montanismo, um grupo de cristãos que vivia separado da Igreja e se denominavam “pneumáticos” (inspirados pelo sopro do Espírito), em oposição aos demais cristãos, considerados “psíquicos” (ou racionalistas). A resistência que o Montanismo impunha à instituição eclesiástica tornava-o perturbador à hierarquia, uma vez que o movimento respondia às necessidades e anseios de largas camadas cristãs, desiludidas ante o retardamento da parúsia, razão de sua rápida expansão. Também Orígenes (185-253 d.C.) sentiu na pele essas mudanças, pois ele, que era leigo e professor de Teologia em Alexandria e sempre pregara nas eucaristias diante dos bispos que as presidiam, acabou sendo proibido de pregar. Larga controvérsia se estabeleceu, até que, no século V, são Leão Magno (400-461 d.C.) colocou um ponto final na questão, afirmando:

Ninguém, seja monge ou leigo, atreva-se a atribuir-se o direito de ensinar e de pregar […]. Não se deve permitir que ninguém que não pertença à Ordem Sacerdotal se atribua a prerrogativa de pregar, sendo conveniente que, na Igreja de Deus, todas as coisas sejam ordenadas (LÓPEZ, 2012, p. 95).

Estava assim estabelecida a distinção e a distância entre clérigos e leigos, acentuada por um laicato medieval desprovido de acesso à cultura, o que provocou e reforçou a ausência dos leigos na tarefa da difusão da fé. Só o Concílio Vaticano II, no século XX, é que veio redimir e redimensionar, com sua eclesiologia de comunhão, o papel do leigo na Igreja, preconizado pelo aflorar da Ação Católica durante o pontificado de Pio XII (1939-1958) e pelos contemporâneos movimentos bíblico, litúrgico e ecumênico, os quais o Concílio retomou para fazer ressurgir uma imagem de Igreja menos hierárquica, descrita como Corpo Místico, comunhão de pessoas. Isso se expressará de maneira especial com a imagem bíblica da Igreja povo de Deus, termo que, em padres tão significativos como são João Crisóstomo (349-407 d.C.), é referido como laós.

Conclusão

O Concílio Vaticano II, na perspectiva de sua eclesiologia de comunhão e do resgate do conceito fundamental de povo de Deus, é o primeiro concílio, na bimilenar história da Igreja, a dedicar-se ao tema da atividade apostólica dos cristãos leigos e o faz com a publicação do decreto Apostolicam Actuositatem, na última sessão conciliar, em 18 de novembro de 1965. Como não podia ser diferente, subjaz ao decreto uma concepção do leigo como destinatário da ação da Igreja.

Após o Sínodo de 1987, João Paulo II foi o primeiro papa da história da Igreja a publicar um documento pontifício sobre os leigos. Vinha a público, em 30 de dezembro de 1988, a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christifideles Laici, sobre a vocação e missão do cristão leigo na Igreja e no mundo, uma tentativa de retomar, aprofundar e até mesmo redirecionar o caminho conciliar. Dez anos passados, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma Instrução acerca de algumas questões sobre a colaboração dos fiéis leigos no sagrado ministério dos sacerdotes. O título já deixa notar o claro incômodo causado por algumas Igrejas locais que investiram no protagonismo laical, outrora solicitado e instigado.

Foi então a vez de os bispos do Brasil entrarem em cena e indicarem, de modo claro, qual era o direcionamento para a “missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas na Igreja e no mundo”, título dado ao Documento 62 da CNBB, aprovado na sua 37ª Assembleia Geral, em abril de 1999. Aqui o conceito de leigo já não é de destinatário, mas surge como interlocutor da Igreja, ou seja, alguém que está em condições de dialogar.

Passados 18 anos, os bispos do Brasil empenharam-se numa atualização daquele documento e publicaram, em 2017, o Documento 105, Cristãos leigos e leigas na Igreja e na sociedade, sal da terra e luz do mundo, claro avanço no conceito em questão, pois agora nossos bispos chamam os cristãos leigos e leigas a serem sujeitos plenos da Igreja. Para tanto, convocou-se um Ano Nacional do Laicato, de 26 de novembro de 2017 a 25 de novembro de 2018, com o objetivo de investir na formação destes que são a incontável maioria do povo de Deus, os leigos e leigas, para que tenham clara sua identidade, vocação e missão, na Igreja e na sociedade. Esta configura o seu primeiro e prioritário âmbito de ação, naquela se realiza sua segunda tarefa, em colaboração com a missão dos pastores.

Estamos diante de uma grande oportunidade para tomar consciência do enorme processo que passa por nós e continua no amadurecimento da compreensão do projeto de Deus, revelado em Jesus Cristo, projeto que vai tomando corpo em nós, pastores e fiéis, clero e laicato, quando juntos nos empenhamos na mesma tarefa de edificar o Reino de Deus em nosso mundo carente do fermento, do sal e da luz do evangelho.

Bibliografia

FAIVRE, Alexandre. Los primeros laicos: cuando la Iglesia nascía al mondo. Burgos: Monte Carmelo, 2001.

GONZÁLEZ, Miguel Anxo Pena. La edad patrística y la configuración de una espiritualidad laical. In: LÓPEZ, Elisa Estévez (org.). Hombres y mujeres de espíritu en el siglo XXI. Salamanca: Universidad Pontificia, 2012.

LÓPEZ, Elisa Estévez. Los primeros cristianos como modelo de espiritualidad laical. In: ______. Hombres y mujeres de espíritu en el siglo XXI. Salamanca: Universidad Pontificia, 2012.

______. Hombres y mujeres de espíritu en el siglo XXI. Salamanca: Universidad Pontificia, 2012, p. 95.

Jean Poul Hansen

Pe. Jean Poul Hansen pertence ao clero da Diocese da Campanha (MG). Estudou Teologia no Instituto Teológico Interdiocesano São José, em Pouso Alegre (MG). É mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade de Salamanca, na Espanha, docente na Faculdade Católica de Pouso Alegre (Facapa), coordenador diocesano de pastoral e assessor da Pastoral Catequética na sua diocese. É também membro da equipe de redação da Revista ECOando e pároco da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, em Careaçu (MG). E-mail: [email protected]