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Publicado em maio-junho de 2023 - ano 64 - número 351 - pp.: 04-09

O Papa Francisco e a reforma litúrgica

Por Francisco Taborda*

O artigo pretende mostrar a concepção de liturgia do papa Francisco, os passos dados para restaurar a compreensão de liturgia da constituição Sacrosanctum Concilium e algumas decisões práticas que haviam sido descuradas.

1. O projeto do papa Francisco no tocante à liturgia

Quando Jorge Mario Bergoglio assumiu a função petrina, reinava, nos círculos romanos, forte resistência à reforma litúrgica. Quatro anos mais tarde, o papa Francisco, em discurso aos participantes da 68ª Semana Litúrgica Nacional da Itália (24/8/2017), apresenta o que pode ser considerado seu texto programático no que se refere à fidelidade da Igreja à Sacrosanctum Concilium (SC), constituição sobre a liturgia do Concílio Vaticano II. Francisco inicia seu discurso com um retrospecto do Movimento Litúrgico a partir de Pio X até o Concílio, com menção especial às reformas de Pio XII, revolucionárias para seu tempo. Recorda as decisões do Concílio e sua implementação sob a orientação de Paulo VI. Concluindo esse retrospecto, Francisco afirma que não é hora de repensar a reforma litúrgica, mas sim de compreendê-la e interiorizar os princípios que a inspiram, o que requer formação contínua de todos os fiéis, a começar pelos pastores. Por fim, declara solenemente: “Depois desse magistério e após este longo caminho, podemos afirmar com certeza e com autoridade magisterial que a reforma litúrgica é irreversível” (grifo meu). Desde então se observa um percurso de restauração gradual do espírito e da letra da SC.

2. A teologia da liturgia

A audiência aos participantes da 68ª Semana Litúrgica Nacional da Itália, cujo tema era “Uma liturgia viva para uma Igreja viva”, foi oportunidade para Francisco expor com clareza sua concepção de liturgia, que é a do Concílio. Embora se trate de mero discurso sem valor jurídico, esse texto deve ser reconhecido como central para a compreensão de liturgia do papa Francisco e ilumina os textos jurídicos que procuram voltar à intenção e às decisões
conciliares.

1) A liturgia é viva pela presença de Cristo. Um dos artigos teologicamente mais importantes da SC é o nº 7, que enumera as diversas maneiras da presença de Cristo na liturgia. Quando se fala da presença de Cristo, imediatamente vem à mente a presença real sob as espécies de pão e de vinho. Como reação a Berengário de Tours (†1088) e posteriormente aos reformadores do século XVI, a Igreja católica inculcou fortemente – diria mesmo, exclusivamente – a presença eucarística. Se esta é – como dirá Paulo VI na encíclica Mysterium Fidei (3/9/1965) – a presença por antonomásia, não é menos real e verdadeira sua presença no ministro que preside a Eucaristia e na assembleia que a celebra. Cristo, porém, está presente também nos outros sacramentos, pois, conforme ensina Agostinho: “Quando Pedro batiza, Judas batiza, é Cristo quem batiza” (Joannis Evangelium Tratatus VI, c. I, n. 7: PL 35, 1428). Ou seja, o valor e a força dos sacramentos não residem na eventual santidade do ministro, mas no Senhor que atua por meio do ministro. Ora, se é o Senhor quem atua, então ele está presente. O mesmo, contudo, vale para a proclamação da Palavra, pois, mediante o ministro que a proclama, é Jesus que fala a seus discípulos. Aliás, em toda pregação do Evangelho, Cristo está presente com seu Espírito, pois, se compreendemos e acolhemos a Boa-nova, é a ação do Mestre interior, o Espírito de Jesus, que nos ensina e permite que a acolhamos e assimilemos (cf. Decreto Ad Gentes, n. 9). Por fim, toda vez que fiéis se reúnem em nome do Senhor, ele está presente, porque, “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). Todas essasformas de presença são reais e não mero “faz de conta”. E é essa presença que torna viva a liturgia.

2) A liturgia é vida para toda a Igreja. Com esse princípio, Francisco recorda uma asserção importante da SC: As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é “sacramento de unidade” […]. Por isso, tais ações pertencem a todo o Corpo da Igreja, manifestam-no, atingindo, porém, cada um dos membros de modo diverso, segundo a variedade de estados, funções e participação atual (SC 26). Além disso, o papa reforça a ideia da participação de toda a Igreja (ministros e não ministros) na celebração litúrgica, aludindo à etimologia da palavra “liturgia”, que vem de laós (= povo eleito) e ergon (= obra, ação). A união desses dois morfemas evoca tanto uma ação em benefício do povo como uma ação do povo. De fato, a liturgia tem essas duas dimensões, descendente e ascendente: é uma ação de Deus que santifica e reúne seu povo e, por isso mesmo, uma ação do povo em adoração a Deus. Há, no entanto, ainda outro aspecto a ser ressaltado, com base no texto da SC: em tão grande obra, pela qual Deus é perfeitamente glorificado e os seres humanos santificados, Cristo associa sempre a si a Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca seu Senhor e, por meio dele, rende culto ao eterno Pai. Com razão se considera a liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo. Nela, os sinais sensíveis significam e realizam, cada um à sua maneira, a santificação do ser humano e é exercido pelo corpo místico de Jesus Cristo, Cabeça e membros, o culto
público integral (SC 7; grifos meus). Na Carta Apostólica Desiderio Desideravi (DD), o papa sintetiza de forma lapidar: “O sujeito que age na liturgia é Cristo-Igreja, o corpo místico de Cristo” (DD 15). Com isso, o papa afasta a tentação de imaginar a liturgia como ação exclusiva do clero. Não só os ministros que presidem a celebração (ordenados ou não) devem ser considerados “celebrantes”, mas também a inteira
assembleia, cada membro, de acordo com sua função e carisma. Aqui o papa toca um ponto crucial, no qual tem insistido desde que assumiu a função petrina: o combate ao clericalismo, que reduz a Igreja ao clero e desqualifica o restante do povo de Deus. Não é assim, como ensina Agostinho; senão que ser cristão, ser batizado, constitui nossa
dignidade. O resto é responsabilidade de cada um e pode constituir um perigo, já que, quanto maior o encargo recebido, tanto maior poderá ser o mau desempenho e o fracasso.

3) A liturgia é vida, é uma experiência que deve ser vivida no momento de celebrar e, a partir daí, na vida cotidiana. Como sintetizou de forma muito feliz o teólogo calvinista holandês E. Van Waelderen: “Não há Eucaristia sem lava-pés”. Aliás, é a lição dos próprios Evangelhos: enquanto os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) narram a instituição da Eucaristia na última ceia com o mandato: “Fazei isto em memória de mim”, o evangelista João traz nesse lugar a narração do lava-pés com uma ordem paralela: “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13,14). À instituição da Eucaristia segue-se a ordem de realizar o rito; ao gesto concreto do lava-pés segue-se a ordem de praticar o que Jesus praticou: o serviço humilde ao próximo. Muitas vezes a Igreja transformou em rito o que Jesus queria que fosse prática. Talvez por isso Francisco prefira celebrar a missa da Quinta-feira Santa não na basílica de São João de Latrão, como era costume, lavando os pés de clérigos, mas em algum local onde lava os pés de pessoas marginalizadas, como é o caso das cadeias de Roma. Para que se vivencie a liturgia como ação viva e

3. A necessária formação litúrgica permanente

A reforma litúrgica do Vaticano II jamais alcançaria seus frutos sem a formação litúrgica do povo de Deus. O Concílio teve consciência dessa necessidade (SC 15-19), e a revivescência das decisões conciliares no tocante à liturgia não pode efetivar-se sem essa formação. O papa Francisco percebeu, com razão, a urgência da formação litúrgica e procurou providenciar remédio com a Carta Apostólica Desiderio Desideravi (29/6/2022).

O ponto de partida da reflexão proposta por Francisco é a participação ativa na liturgia como encontro com Cristo, pois, como já ensinava o papa Leão Magno, “o que no nosso Salvador era visível, passou para os seus mistérios”, os sacramentos (Sermão na Ascensão do Senhor, n. 72, 2, 1). Vale dizer: o Senhor vem a nosso encontro na liturgia, “por ritos e preces”, como recordava o Concílio (SC 48). É preciso que entremos na dinâmica ritual para compreendermos a liturgia, não de modo puramente intelectual, mas vivencial. O papa nos convida a “distinguir dois aspectos: a formação para a liturgia e a formação pela liturgia. O primeiro está em função do segundo, que é essencial” (DD 34).

Formar-nos pela liturgia é vivenciar que nela o Senhor vem ao nosso encontro em sinais que estão em continuidade com a encarnação. Cabe captar os símbolos, que são realidades concretas como “pão, vinho, azeite, água, perfume, fogo, cinzas, pedra, tecido, cores, corpo, palavras, sons, silêncios, gestos, espaço, movimento, ação, ordem, tempo, luz”, coisas que são o oposto de abstrações espirituais (DD 42).

Se nos deixamos formar pela liturgia, percebemos, admirados, “a beleza da verdade da celebração cristã”, já descrita na SC 7: “a liturgia é o sacerdócio de Cristo a nós revelado e doado na sua Páscoa, hoje tornado presente e atuante mediante sinais sensíveis (água, azeite, pão, vinho, gestos, palavras) para que o Espírito, submergindo-nos no mistério pascal, transforme toda a nossa vida, conformando-nos cada vez mais a Cristo” (DD 21).

Formados pela liturgia, encontraremos a “arte de celebrar”, que não é meramente algo a ser executado por quem preside, mas “atitude que todos os batizados são chamados a viver” ao realizar unanimemente “os gestos e palavras que pertencem à assembleia. […] Realizar todos juntos o mesmo gesto, falar todos juntos a uma só voz, transmite a cada um a força de toda a assembleia” (DD 51).

Entre esses gestos comuns, o papa acentua o silêncio, que “ocupa um lugar de importância absoluta” como “símbolo da presença e da ação do Espírito Santo que anima toda ação celebrativa”. Dessa forma, o silêncio litúrgico “muitas vezes constitui o ápice da sequência ritual” (DD 52).

4. Restauração das decisões conciliares

A formação proposta exigia que se restaurassem algumas decisões conciliares abandonadas ou postas em questão no decorrer dos anos. Consideremos duas: a questão das traduções litúrgicas e a reforma da liturgia da missa.

A SC 36 abriu a possibilidade da adoção das línguas vernáculas na liturgia, abandonando parcialmente o uso do latim. No entanto, traduções litúrgicas são um problema delicado, pois requerem dupla fidelidade: ao texto original, que em geral nos foi transmitido por uma venerável tradição, e ao vernáculo, cujas características e beleza devem ser respeitadas pelo tradutor. Isso significa que a tradução não pode ser literal, pois se tornaria incompreensível, nem livre demais, a ponto de desfigurar o sentido do texto original. Desde o início se teve consciência do árduo e delicado trabalho que exigiria a tradução litúrgica. Em 1969, o cardeal Giacomo Lercaro (†1976), presidente do Consilium instituído por Paulo VI para implementar a SC, enviou aos presidentes das conferências episcopais uma carta em que comunicava ter-se chegado a um consenso sobre estilo e método da tradução de textos litúrgicos. Tratava-se de buscar uma “equivalência dinâmica” entre o original latino e a versão vernácula (cf. Carta Comme le Prévoit, 1969).

Em 2001, a Congregação para o Culto Divino publicou a instrução Liturgiam Authenticam, que se mostrou claro e grave retrocesso em relação ao Concílio. Nela se exigia a tradução literal dos textos litúrgicos, revogando as disposições anteriores sobre a “equivalência dinâmica”.

Outro ponto delicado diz respeito a quem compete o reconhecimento e aprovação das traduções litúrgicas. Nos art. 22 §§ 1 e 2 e 36 § 4, a SC estabelecera que caberia às conferências episcopais ou organismos equivalentes a aprovação requerida. Nada mais justo, pois esses organismos tinham a possibilidade de involucrar, no trabalho de tradução, pessoas que dominassem a língua vernácula. Entretanto, a Cúria romana, acostumada ao sistema centralizador até então vigente, atribuiu a si a correção e aprovação dos textos traduzidos. O Código de Direito Canônico de 1983, no cân. 838, transformou em regra essa prática.

Em 3/9/2017, o papa Francisco, por meio do motu proprio (MP) Magnum Principium, restabelece a vontade dos padres conciliares. O documento começa afirmando que o Concílio confiou aos bispos “a importante tarefa […] de introduzir a língua vulgar na liturgia e de preparar e aprovar as versões dos livros litúrgicos”. Em decorrência, o papa modifica a redação do cânon 838.

Não obstante a clara intenção do papa com seu MP, o cardeal Robert Sarah, então prefeito da Congregação para o Culto Divino, houve por bem publicar um texto em que interpretava o documento do papa como se nada tivesse sido mudado (“Humilde contribuição para uma melhor e correta compreensão do MP Magnum Principium”, 1/10/2017). Num gesto sem precedentes, o papa reagiu com uma carta em resposta ao cardeal, em que não só rejeitava a interpretação dada por Sarah ao MP, mas também lhe determinava que fizesse pública a resposta papal em todos os sites em que havia aparecido a “Humilde contribuição” e enviasse o texto do papa “a todas as conferências episcopais, aos membros e aos consultores desse dicastério” (Francisco, Carta ao cardeal Sarah, 15/10/2017).

A segunda decisão que suscitou polêmica dizia respeito ao Missal composto segundo as determinações da SC e promulgado por Paulo VI. Progressivamente, abriram-se exceções, permitindo o uso do chamado Missal de Pio V. É verdade que se tratava da sua edição retocada por João XXIII, às vésperas do Concílio, mas o papa tinha feito essa adaptação expressamente na espera da reforma definitiva que se aguardava fosse ordenada pelo Concílio. O uso do velho missal foi primeiro concedido aos padres idosos, acostumados a ele. Nessas condições, era uma concessão provisória, já que – mais cedo ou mais tarde – essa geração haveria de passar. A preocupação com o cisma de Lefebvre levou a concessões no uso das formas litúrgicas abolidas pela reforma de Paulo VI, até que Bento XVI chegou ao extremo com o MP Summorum Pontificum (7/7/2007), criando a estranha figura de uma “expressão extraordinária” da mesma lex orandi, da qual o Missal de Paulo VI seria a “expressão ordinária”. Escancaravam-se as portas para o uso indiscriminado do Missal anterior. Dava-se razão aos que propugnavam pela “reforma da reforma”.

Aproveitando a consulta feita aos bispos de todo o mundo sobre os eventuais frutos derivados da prática do MP Summorum Pontificum, de Bento XVI, Francisco houve por bem revogar a estranha figura jurídica criada por seu antecessor, segundo a qual seria possível a coexistência de duas expressões da lex orandi do rito romano. A partir do MP Traditionis Custodes (16/7/2021), já não se admite a coexistência de duas expressões da lex orandi do rito romano, mas uma única, a do Missal de Paulo VI, abrindo-se misericordiosamente exceções para o uso do missal anterior em casos e situações especiais, devidamente confinados para que não se expandam a círculos mais amplos.

Assim, a Igreja é devedora à persistência do papa Francisco por sua fidelidade à SC. Cabe a cada membro da Igreja acolher suas propostas – que são as do Concílio – para que floresçam, em seu esplendor, a beleza e a simplicidade da liturgia romana clássica, longe de rubricismos estéreis e de criatividades selvagens.

Francisco Taborda*

*Pe. Francisco Taborda, sj, é professor emérito da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo
Horizonte-MG. Entre outras obras, publicou pela Paulus A Igreja e seus ministros: uma teologia do sacramento da
ordem e pela Loyola O memorial da Páscoa do Senhor. E-mail: [email protected]