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Publicado em janeiro-fevereiro de 2021 - ano 62 - número 337 - pág.: 4-13

O SÍNODO PARA A AMAZÔNIA: conveniência pastoral e audácia socioecológica

Por Paulo Suess

Introdução

A Amazônia, com seus mais de 7 milhões de quilômetros quadrados, é uma das maiores regiões de biodiversidade do planeta Terra. Dessa biodiversidade fazem parte as múltiplas culturas dos seus aproximadamente 33,6 milhões de habitantes, dos quais entre 2 milhões e 2,5 milhões são indígenas (DFSA). Esses habitantes são cidadãos de nove países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela.

A Amazônia é uma terra de grandes distâncias geográficas, riquezas ecológicas e diversidades culturais (ILSA 18). Por causa disso, é um território ameaçado. A pastoral pós-sinodal precisa responder a esses desafios. Desde sua colonização, a partir do século XVI, até hoje, a Amazônia é disputada, invadida e depredada por interesses econômicos externos e aventureiros, em busca de um Eldorado mitológico. A Amazônia é “um espelho de toda a humanidade, que, em defesa da vida, exige mudanças estruturais e pessoais […], dos Estados e da Igreja” (DPSA 2). Na encíclica Laudato Si’, o papa Francisco incentiva “nova solidariedade universal” (LS 14), porque “tudo está interligado” (LS 16; 91; 117; 138; 240) – os micro e macrossistemas ecológicos estão interligados com os micro e macrossistemas sociais. Onde se rompe essa interligação, rompe-se a corrente que garante a transmissão da vida. O macrobioma do planeta Terra, que é de todos e de cada um, exige cooperação, solidariedade e justiça mundial e planetária. Essa é a causa proposta pela encíclica Laudato Si’ e pelo Sínodo para a Amazônia.

1. Itinerário do sínodo

Na origem próxima desse sínodo está o IV Encontro Pastoral da Amazônia, que se realizou em Santarém, de 24 a 30 de maio de 1972 (QUARTO ENCONTRO, 1972, p. 9-28). O evento, que fez parte de uma série de encontros pós-Vaticano II (1962-1965) e pós-Medellín (1968), insistiu na descolonização da pastoral amazônica, propondo quatro linhas prioritárias: encarnação na realidade, evangelização libertadora, formação de agentes de pastoral e comunidades cristãs de base. A pastoral indígena, estradas e outras frentes pioneiras, institutos de pastoral e meios de comunicação social entraram no documento desse encontro como propostas de serviços pastorais.

Em 2007, a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, em Aparecida, repercutiu o grito dos povos agredidos da Amazônia depredada (DAp 84) e as condições precárias da presença pastoral e ainda bastante colonial da Igreja (DAp 100 e). No dia 15 de outubro de 2017, dez anos depois de Aparecida, o papa Francisco convocou, a pedido de várias Conferências Episcopais, uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica. Os prelados que pediram a realização desse sínodo pretendiam, com base em sua experiência pastoral na região, avançar em algumas questões pastorais e chamar a atenção do mundo para a tragédia ecológica ali presente. Um Sínodo para a Amazônia seria boa oportunidade de encarnar em um território concreto a Carta Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum e a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual.

Na Constituição Apostólica Episcopalis Communio (EC), de 2018, o papa redefiniu a função dos sínodos na Igreja católica, porém sem mudar as estruturas, o que seria um pressuposto para transformar essa redefinição em nova prática:  “O Sínodo dos Bispos deve sempre mais se tornar um instrumento privilegiado de escuta do povo de Deus: ‘Para os padres sinodais pedimos, antes de mais nada, do Espírito Santo, o dom da escuta: escuta de Deus, até ouvir com Ele o grito do povo; escuta do povo, até respirar nele a vontade de Deus que nos chama’” (EC 6). Entre os dois anos que se passaram da convocação à realização do Sínodo para a Amazônia, ocorrido entre os dias 6 e 27 de outubro de 2019, foram ouvidas e sintetizadas as vozes de mais de 87 mil pessoas em múltiplas consultas, assembleias, fóruns e rodas de conversa (DFSA 3).

O sínodo foi um kairós, fazendo ouvir a voz de Deus na voz dos últimos. Estes, segundo a exortação Querida Amazônia, “são os principais interlocutores, dos quais primeiro devemos aprender, a quem temos de escutar por um dever de justiça e a quem devemos pedir autorização para poder apresentar as nossas propostas. A sua palavra, as suas esperanças, os seus receios deveriam ser a voz mais forte em qualquer mesa de diálogo sobre a Amazônia” (QA 26). Essas escutas pareciam reforçar o tema do evento:  “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. No entanto, a mera escuta do povo de Deus, sem a transformação de sua voz em decisões sinodais, revelou-se também nesse sínodo como bloqueio estrutural e desconfiança no “instinto da fé” com que “Deus dota a totalidade dos fiéis” (EG 119; cf. LG 12).

No final do sínodo, como previsto na Episcopalis Communio, as conclusões da assembleia foram votadas e compiladas em um Documento Final, que foi entregue ao papa. Francisco agradeceu, de improviso, no final da assembleia sinodal:  “Estamos aprendendo a pôr em prática este espírito sinodal” (PAPA FRANCISCO, 2019). Escutou “todos os tipos de injustiças” praticadas na Amazônia. Falou da “criatividade em novos ministérios”. Reconheceu que no sínodo “apareceram algumas coisas que precisam ser reformadas: a Igreja tem de se reformar sempre a si mesma”. Falou da formação ministerial in loco, não nas salas de aula. Admitiu: “O que foi dito no documento e no decorrer do sínodo sobre a mulher é pouco”. Mencionou a possibilidade de criar “conferências episcopais setoriais”, “pequenas conferências episcopais” ao lado das conferências nacionais. Também na Cúria Romana se deve “abrir um setor amazônico no Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral”. Registrou, de maneira muito espontânea, a necessidade de “uma reforma ritual”.

No final de seu discurso de despedida e agradecimento, Francisco pediu que quem venceu e quem perdeu (relativamente a suas propostas pontuais) não olhassem para as coisas pequenas. O melhor do sínodo foram “os diagnósticos, que são a parte mais consistente” – a saber, o diagnóstico cultural, social, ecológico e pastoral. “Todos vencemos com os diagnósticos que fizemos e até onde fomos em questões pastorais e intraeclesiásticas”. Depois citou Péguy, que fala de grupos que insistem no “pequeno” e esquecem o “grande”. Por quê? “Porque não têm coragem de estar com o mundo, pensam que estão com Deus. Porque não têm a coragem de se comprometer com as escolhas de vida do homem, eles acreditam que estão lutando por Deus. Porque não amam ninguém, acreditam que amam a Deus”. Afirmou não ser o caso de perder tempo com este ou aquele ponto intraeclesial e perder de vista “o corpo do Sínodo, que são os diagnósticos que fizemos nas quatro dimensões” (PAPA FRANCISCO, 2019).

Entretanto, os diagnósticos macroestruturais não estariam também interligados com as microestruturas nas quais acontece o “pequeno”? Os quatro sonhos da Querida Amazônia não estariam também interligados? O sonho de uma Amazônia “que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos” (QA 7) não estaria também interligado com os sonhos das comunidades cristãs de certo protagonismo pastoral, sacramental e ministerial, nos confins do mundo? A defesa do sonho de uma Amazônia “que guarde zelosamente a sedutora beleza natural” e “a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas” (QA 7) ganha força em comunidades que – dependendo por séculos de visitas externas e agendas alheias – almejam que sua sacramentalidade essencial não seja “terceirizada”

2. Uma carta de amor

A Exortação Apostólica Querida Amazônia, do papa Francisco, inscreve-se no gênero literário “carta de amor”, dirigida aos povos da Amazônia e do mundo. Nas quatro partes de sua carta, o papa fala com a Amazônia como se fala com uma amada e conta seus quatro sonhos (QA 7), que procuram antecipar novas realidades e horizontes concretos nos campos social (QA 8-27), cultural (QA 28-40), ecológico (QA 41-60) e eclesial (QA 61-110) e correspondem, em grande parte, às cinco conversões mencionadas no Documento Final dos padres sinodais: a conversão integral, pastoral, cultural, ecológica e sinodal.

Nas três primeiras partes de sua exortação – que transmitem, em seu conjunto, sonhos mais corajosos e inovadores do que o quarto –, o papa dirige-se a “todas as pessoas” e ao “mundo inteiro” (QA 4 e 5), enquanto, na quarta parte, em seu sonho eclesial, se dirige aos “pastores e fiéis católicos” (QA 60). Muitas inspirações da exortação Querida Amazônia se encontram na encíclica Laudato Si’, na exortação Evangelii Gaudium, no Instrumentum Laboris (ILSA) e no Documento Final (DFSA) do sínodo.

Nos três primeiros sonhos da Querida Amazônia, o papa Francisco fala com sua amada Amazônia mais ou menos assim: “Além de sermos uma aliada estratégica (DFSA 4), nós, a Igreja, te amamos apaixonadamente (QA 3), aprendemos muito de você (QA 26 e 55) e te defendemos (QA 63) – tua vida, teus direitos, tuas culturas e terras. Podes contar conosco para o que der e vier”. Essa declaração de amor e solidariedade vale muito, sobretudo em uma situação na qual o avanço das motosserras, dos garimpos, da plantação de soja e da criação de gado tem feito aumentar a pressão sobre os territórios dos povos da Amazônia. No quarto sonho, em que o papa se dirige aos “pastores e fiéis católicos” (QA 60), ele muda o tom, seguramente pressionado por setores internos da Igreja. Avanços pastorais discutidos com liberdade durante o sínodo não contribuíram para a almejada “harmonia pluriforme” (QA 61; EG 220) do papa.

Na realidade do nosso mundo secularizado, pode-se perguntar: de que depende o futuro da Amazônia? Depende, de fato:

• da luta pelos direitos dos mais pobres;

• da preservação da riqueza cultural;

• do zelo pelos rios e pelas florestas.

Na realização desses sonhos, a Igreja é aliada entre outras aliadas. Do “sonho eclesial”, cuja realização, por ora, enfrenta extremas dificuldades, não depende o futuro da humanidade.

O futuro da humanidade:

• não depende de uma Igreja com “rostos novos com traços amazônicos” (QA 7);

• não depende diretamente de condicionantes da Igreja católica para o celibato dos padres;

• não depende da superação do vácuo sacramental nas regiões amazônicas afastadas dos centros urbanos;

• e, a rigor, não depende da cristalização de conceitos patriarcais sobre o papel possível da mulher no interior da Igreja.

Pode-se relativizar a importância do sonho eclesial para o futuro da Amazônia e para a vida do mundo, embora a centralização pastoral, os vácuos ministeriais nas comunidades e as restrições ministeriais para o pleno exercício da igualdade das mulheres tenham contribuído para ampliar a esfera de influência de grupos fundamentalistas em espaços públicos. O que não se pode relativizar, nesse sonho eclesial, é sua coerência e sua relevância para a própria Igreja.

A Igreja se apresenta como uma aliada dividida e enfraquecida, somando seus esforços em defesa da Amazônia com os de outros aliados, também enfraquecidos e divididos (por outros motivos). Na força dessa aliada – sua experiência histórica e sua motivação religiosa – está, ao mesmo tempo, sua fraqueza: suas cristalizações culturais, suas contradições doutrinárias e seu tradicionalismo político, representado por um setor em luta permanente por hegemonia.

3. Harmonia pluriforme e audácia

Dois documentos oficiais marcarão a caminhada pós-sinodal: primeiro, o Documento Final da própria Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos, que assumiu como título o tema definido por Francisco: “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral” e foi entregue ao papa no último dia da assembleia (27/10/2019); em segundo lugar, o documento com o qual o papa Francisco, como de costume, repercutiu o evento sinodal mediante uma exortação apostólica pós-sinodal que denominou Querida Amazônia. Essa exortação se dirige “ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade” e faz parte do “magistério ordinário do sucessor de Pedro” (EC, art. 18, § 1).

A comparação do Documento Final, dos padres sinodais, com a Querida Amazônia, do papa, permite-nos ver dois polos que podem gerar luz para longo caminho que ainda deve ser percorrido, sem vencedores nem vencidos. Polos geram luz por serem diferentes. Um pensamento esclarecido só é capaz de compreender a si mesmo quando se relaciona com seu “outro”, que pode ser oposto ou complementar, concomitantemente universal e regional.

Enquanto, no Documento Final, prevalece a paixão contextual, sobretudo quando se trata de propostas concretas para o tempo pós-sinodal, na Querida Amazônia sente-se mais a responsabilidade universal, que não se esquece da “paixão contextual”. Na exortação, o Documento Final não é explicitamente citado. Francisco, porém, apresenta-o “de modo oficial”, convida “a lê-lo integralmente” e atesta que seus autores têm um conhecimento bom da “problemática da Amazônia, porque são pessoas que nela vivem, por ela sofrem e a amam apaixonadamente” (QA 3). Por isso, a exortação Querida Amazônia deve ser articulada com o Documento Final do próprio Sínodo dos Bispos para a Amazônia, ainda que ele não responda a algumas propostas concretas.

Ao longo do sínodo, o papa ouviu as intervenções e, além do Documento Final – como assegurou –, leu também, com interesse, as contribuições dos círculos menores. Francisco não se propôs, como deixou claro, “desenvolver todas as questões amplamente tratadas no documento conclusivo” (QA 2). Tampouco se propôs substituir ou repetir o Documento Final (QA 2). Na Querida Amazônia, desejou “apenas oferecer breve quadro de reflexão que encarne na realidade amazônica uma síntese de algumas grandes preocupações já manifestadas […] em documentos anteriores, que ajude e oriente para uma recepção harmoniosa, criativa e frutuosa de todo o caminho sinodal” (QA 2). Poder-se-ia pressupor que as propostas concretas do Documento Final foram silenciosamente assumidas pelo papa e que a Querida Amazônia devolve questões regionais não a uma conferência episcopal nacional, mas regional ou setorial?

Diversidade cultural e distância geográfica dificultam a “harmonia pluriforme” (QA 61; EG 220) e a “recepção harmoniosa” (QA 2), que são ideais de convivência do “bem viver”. Também nos escritos do papa Francisco, a construção dessa “harmonia pluriforme” está sempre presente como a meta de ofício de um construtor de pontes e diálogos.

Na Evangelii Gaudium, Francisco já explicou que a diversidade cultural não é uma ameaça à unidade da Igreja:  “O Espírito Santo constrói a comunhão e a harmonia do povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia […]. É Ele que suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade” (EG 117). A “harmonia pluriforme” (EG 220) é um processo lento e árduo. Na Laudato Si’, Francisco insere essa “harmonia pluriforme” no contexto mais amplo da “ecologia integral” e propõe que dediquemos “algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação” (LS 225). Precisamos “refletir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre nós e naquilo que nos rodeia” (ibid.).

Os povos indígenas, descendentes de culturas e civilizações anteriores às colonizações portuguesa e espanhola, chamam essa harmonia integral, que inclui todas as dimensões da vida, de condição do “bem viver”.

Trata-se de viver em harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os seres humanos e com o ser supremo, pois existe uma intercomunicação entre todo o cosmos […]. Para eles (os povos indígenas), bem viver é entender a centralidade do caráter relacional transcendente dos seres humanos e da criação, e supõe um bem fazer (DFSA 9).

O “bem viver” e o “bem fazer” são sonhos do porvir histórico de todas as culturas, e não realizações de unanimidade.

Na “harmonia pluriforme”, não se trata de unanimidade, nem de um “consenso de escritório” (EG 218). Segundo Francisco, a aproximação à “harmonia pluriforme” é possível ao enfrentar o conflito e “transformá-lo no elo de ligação de um novo processo” (EG 227). A “harmonia pluriforme” (QA 61; EG 220) e a “recepção harmoniosa” (QA 2), na perspectiva do papa, não são panos quentes sobre o espírito profético na Igreja. “As verdadeiras soluções nunca se alcançam amortecendo a audácia, subtraindo-se às exigências concretas ou buscando culpas externas. Pelo contrário, a via de saída encontra-se por ‘transbordamento’ […] para poder, assim, reconhecer um dom maior que Deus está oferecendo” (QA 105). A Amazônia desafia-nos a “buscar caminhos mais amplos e ousados” de presença e defesa.

4. “Quando o galo insistir em cantar” (Chico Buarque)

A partir do momento em que o papa Francisco começou a acenar com a concretização pastoral de seu pensamento, sentiu forte resistência de setores tradicionalistas, sem conhecimento histórico da região e sem vínculo pastoral com a Amazônia. Esses setores conseguiram se impor na redação final da Querida Amazônia, ameaçaram romper com a unidade eclesial e acusaram o papa de herético. Atrás de afirmações excessivas de ortodoxia, há geralmente uma “inflamação silenciosa” que, no campo da saúde, acompanha as doenças crônicas e, sem causar sintomas, destrói a vida dos pacientes. Na Igreja, essas “doenças crônicas” têm nomes específicos: desconhecimento histórico, colonialismo, clericalismo, tradicionalismo e preconceito. Por causa do desconhecimento histórico, do preconceito cultural e do raciocínio econômico, colocou-se em decisões pastorais inovadoras um rótulo mediante uma doutrina descontextualizada.

Aparentemente, pouco mudou em nossa prática pastoral pós-sinodal. Continuamos a chegar depois de meses ou anos às comunidades. O povo, que avistou nosso barco de longe, reunido na beira do rio, solta foguetes para avisar à comunidade: o padre está chegando. No porto, a professora do lugar com as crianças, que cantam uma canção de boas-vindas, troca de abraços com os/as catequistas e com o povo. Depois, em procissão, não muito litúrgica, todos subindo para a capela, partilha de novidades, catequese para as crianças, confissões noite adentro, enquanto os/as catequistas estão ensaiando os cânticos para a celebração da missa. No outro dia, mais uma missa, batizados devidamente preparados pelos catequistas, casamentos, visita aos doentes, almoço em clima de festa. À tarde, despedida no porto, canções, abraços de adeus, e o Jonas – nome do nosso barco – afasta-se devagar da ribanceira, rumando ao encontro com a próxima comunidade. Quando essas comunidades terão seus próprios sacerdotes, “podendo ter uma família legitimamente constituída”, como os bispos pediram no Documento Final (DSA 111)?

Contudo, o espaço conjuntural do Sínodo para a Amazônia não nos deixou totalmente na penumbra. De madrugada, o galo insistirá em cantar. Desde o Vaticano II, sabemos que as mudanças na Igreja e a participação do povo de Deus precisam ser ancoradas no Direito Canônico. Isso vale também para a assembleia do Projeto de Constituição da Conferência Eclesial da Amazônia (PCCEA), realizada virtualmente nos dias 26 a 29 de junho de 2020. Segundo uma proposta do Documento Final do próprio Sínodo para a Amazônia, “trata-se de um organismo episcopal permanente e representativo que promove a sinodalidade na região amazônica” (DFSA 115). Dessa conferência – um organismo em construção, articulado ao Celam, à Repam, à Clar, à Cáritas e às Igrejas locais –, espera-se “que ajude a delinear a face amazônica desta Igreja e que continue a tarefa de encontrar novos caminhos para a missão evangelizadora, incorporando especialmente a proposta da ecologia integral”, tornando-se “o canal eficaz para assumir, a partir do território da Igreja na América Latina e no Caribe, muitas das propostas surgidas neste sínodo” (DFSA 115).

Descentralização institucional, regionalização cultural e participação do conjunto do povo de Deus – elementos que podem ser considerados horizontes desse novo organismo, que “reflete a unidade na diversidade de nossa Igreja e seu chamado a uma sinodalidade cada vez maior” e quer ser “uma resposta oportuna aos gritos dos pobres e da irmã-mãe Terra” (PCCEA) – necessitam de um amparo constitucional e jurídico para não se tornarem vítimas de arbitrariedades hermenêuticas e de hegemonias regionais ou curiais centralizadas.

Para o tempo pós-sinodal, a Constituição Apostólica Episcopalis Communio lembra que “cada princípio geral […], se quiser ser observado e aplicado, precisa ser inculturado” e que “o processo sinodal não apenas tem seu ponto de partida, mas também o seu ponto de chegada no povo de Deus” (EC 7). Existem portas abertas para continuar o processo de descolonização e libertação, de inculturação e descentralização. A súplica do papa é uma ordem para a Igreja: “Deus queira que toda a Igreja se deixe enriquecer e interpelar por este trabalho” (QA 4). A “recepção harmoniosa” do sínodo, a qual “nos permitirá chorar pela Amazônia e gritar com ela diante do Senhor” (QA 56), é o veto contra uma recepção sem conversão, com vencedores e vencidos.

O Sínodo para a Amazônia foi, como todos os sínodos, um sínodo episcopal, não um sínodo do povo de Deus. Os incentivos da Episcopalis Communio para consultar esse povo de Deus (EC, art. 6º), antes e depois da realização de um sínodo episcopal, não encontram a ressonância que permitiria um voto deliberativo do povo de Deus. Os avalistas do futuro da Amazônia são a resistência dos seus habitantes, a solidariedade do mundo, regras constitucionais bem definidas e a esperança – que não é a última que morre. Segundo Charles Péguy, ela é a “filhinha menor” de Deus. A Fé é uma Esposa fiel. A Caridade é uma Mãe bondosa. Por sua vez, “a Esperança é uma menininha danada […]. Entretanto, é essa menininha” que é “invencível”, “imortal”, “uma chama ansiosa que atravessou a espessura das noites, […] impossível de apagar-se”. “E é essa filhinha menor” – inesgotável como o rio-mar Amazonas – “que atravessará os mundos” (PÉGUY, 1912).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSEMBLEIA DO PROJETO DE CONSTITUIÇÃO DA CONFERÊNCIA ECLESIAL DA AMAZÔNIA (PCCEA). Comunicado oficial. Secretariado Geral do Sínodo dos Bispos, 29 jun. 2020. Disponível em: <http://www.synod.va/content/sinodoamazonico/pt/noticias/celam-_-repam–comunicado-oficial-da-assembleia-do-projeto-de-co.html>. Acesso em: 19 ago. 2020.

CELAM. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (DAp). São Paulo: Paulus, 2007.

PAPA FRANCISCO. Querida Amazônia: Exortação Apostólica Pós-Sinodal ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade (QA). Brasília: Ed. CNBB, 2020.

______. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum (LS). 2. ed. São Paulo: Paulus, 2019.

______. Discurso no final da Assembleia Sinodal. Secretariado Geral do Sínodo dos Bispos, 26 out. 2019. Disponível em: <http://www.synod.va/content/sinodoamazonico/pt/noticias/discurso-do-papa-francisco-no-final-da-assembleia-sinodal.html>. Acesso em: 19 ago. 2020.

______. Episcopalis Communio: Constituição Apostólica sobre o Sínodo dos Bispos (EC). Brasília: Ed. CNBB, 2018.

______. Evangelii Gaudium: Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual (EG). São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.

PÉGUY, Charles. O pórtico do mistério da segunda virtude. In: ALMEIDA, Guilherme de (Org.). Poetas de França. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958.

QUARTO ENCONTRO PASTORAL DA AMAZÔNIA. Linhas prioritárias da pastoral da Amazônia. Santarém, 24 a 30 maio 1972. In: CNBB. Desafio missionário: documentos da Igreja na Amazônia. Coletânea. Brasília: Ed. CNBB, 2014. p. 9-28.

SÍNODO DOS BISPOS PARA A AMAZÔNIA. Documento Final do Sínodo para a Amazônia (DFSA). Brasília: Ed. CNBB, 2019.

______. Instrumentum Laboris do Sínodo para a Amazônia (ILSA). Brasília: Ed. CNBB, 2019.

______. Documento Preparatório do Sínodo para a Amazônia (DPSA). 2. ed. Brasília: Ed. CNBB, 2018.

Paulo Suess

é doutor em Teologia Fundamental (Universidade de Münster, Alemanha, 1977). Desde 1967 trabalhou como pároco e depois como professor na Amazônia. Fundou e dirigiu o Departamento de Pós-Graduação em Missiologia, em São Paulo. Entre 2000 e 2004, foi presidente da Associação Internacional de Missiologia (IAMS). Atualmente, é assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em 2019, foi perito no Sínodo para a Amazônia. Publicou Introdução à teologia da missão, 4ª ed., Petrópolis: Vozes, 2015; Dicionário da Laudato Si’, São Paulo: Paulus, 2017; Dicionário da “Querida Amazônia”, São Paulo: Paulus, 2021 (no prelo). E-mail: [email protected]
[Uma versão preliminar deste texto encontra-se em: Caminhos de Diálogo, PUCPR, jan./jun. 2020.]
E-mail: [email protected]