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Publicado em maio-junho de 2022 - ano 63 - número 345 - pág.: 20-27

O sofrimento: reflexões pastorais “Felizes os que choram, porque serão consolados” (Mt 5,4)

Por Vicente Ferreira*

O sofrimento é realidade complexa da existência humana. Território sagrado que exige solidariedade e discernimento. Reconhecemos que a vulnerabilidade socioambiental é marca forte de nossa cultura. Ela convida-nos a ser corpo fraterno numa Igreja samaritana, nascida das chagas redentoras de Cristo. Assim, a partir das feridas dos tempos atuais, moldaremos um mundo novo, de justiça e paz, na força do Ressuscitado.

Introdução

O sofrimento é dimensão complexa de nossa vida. Território sagrado, que deve ser tratado com muito cuidado e compaixão. É encontrado nas passagens mais importantes da Bíblia. A aflição é nomeada como bem-aventurança, na proclamação de que felizes são os aflitos (Mt 5,1-12). Como aprofundar esse drama que faz parte de cada um de nós? De que maneira, a partir da paixão de Cristo, podemos enfrentar, com esperança, as dores da vida, de modo especial as que são causadas pela violência?

Além de estarmos atravessando uma pandemia, escrevo sob o signo de uma tragédia. “O que me restou foi a fé”, disse a mãe, entre soluços, depois da notícia de que seu filho único havia sido morto pelo rompimento da barragem da mineradora Vale, na mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Envolvido por um amor compassivo, iniciei um novo tempo em minha história, por ocasião desse crime socioambiental, que matou 272 pessoas e destruiu a bacia do Paraopeba. Fé, a chama divina que sustenta; caridade, a resposta humana que se traduz em obras; esperança, do verbo esperançar, de estar juntos, como disse nosso educador Paulo Freire.

Uma situação é o declinar natural da vida, com suas dores; outra, é a morte, o sofrimento provocado pela violência. Ao escrever esta reflexão, uno-me às comunidades atingidas de Brumadinho e região. Minha narrativa se dá com base no sofrimento provocado por um dos maiores crimes socioambientais da história do Brasil. E, depois de um ano de trabalho com os atingidos pela mineração, iniciamos a difícil pandemia da covid-19. É no meio de tudo isso que nascem estas palavras sobre o sofrimento.

1. Corpos aflitos: o sofrimento causado pela violência sistêmica

Em muitos aspectos, a cultura atual trata o sofrimento de maneira perigosa. As promessas de felicidade, na perspectiva de uma vida baseada no ter, põem em segundo plano os dramas mais sérios de nosso existir. Papa Francisco nos alerta: “O mundo não quer chorar: prefere ignorar as situações dolorosas, cobri-las, escondê-las. Gastam-se muitas energias para escapar das situações onde está presente o sofrimento, julgando que é possível dissimular a realidade […]” (GE 75). Negar o sofrimento traz consequências individuais e coletivas sérias.

 Há alguns anos, fiz uma pesquisa sobre vulnerabilidade e cristianismo nos dias atuais (FERREIRA, 2017). Buscava elementos filosóficos e teológicos relacionados às dores agudas que atravessamos como comunidade global. Mostrei que a fragilidade é o lugar por excelência de nosso testemunho cristão, hoje. Mais do que em outras épocas, habitamos um mundo ferido. Com as vivências em Brumadinho e com os dramas da pandemia, tenho comprovado essa constatação. Além da finitude, que é natural a todos, sofremos com um estilo capitalista que privilegia minorias, pondo o lucro acima da vida. Enquanto isso, os pobres e a Terra padecem inúmeras violações.

Se, por um lado, a avançada medicina cura tantos males e alivia dores, por outro, a busca desenfreada pelo dinheiro faz pesar sobre nosso corpo muitas doenças. Diante disso, a vida cristã nos exige a compaixão que ampara, mas também é nossa missão combater as cruzes impostas por sistemas de morte. “Temos de lembrar sempre para não esquecermos o porquê de tantas mortes”: essa frase, sempre dita em Brumadinho, expressa bem nosso chão comum contemporâneo. Fazer memória é dar às vítimas o direito de uma palavra sem a qual não haverá mundo novo. Esconder nossos mortos e os sofredores é caminho de perdição.

2. Fragilidades psíquicas: sofrimentos sem explicação?

Muitos de nós já deparamos com esta afirmação: “Ah, isso é psicológico”. Como se se dissesse: “Não é nada!” E seguimos vida afora sem prestar atenção em nosso corpo, em nossos sentimentos, em nossos desejos. Muitas vezes, a cultura na qual vivemos não se importa com nossa subjetividade; com aquilo que somos, no fundo de nossa alma. O que ela nos cobra, o tempo todo, é que sejamos produtivos e consumidores. Uma lógica perversa. Vivemos como se fôssemos mercadorias. Enquanto isso, nosso corpo, com suas pulsões dinâmicas, produz seus sintomas.

Depressão e suicídio são realidades que se impõem em nossa época. E quais as respostas mais comuns? Ansiolíticos, terapias que resolvam logo, negação etc. No entanto, há dor que, se não se transformar em linguagem, produz mais dor. Um sintoma de nossa alma que não ganhe escuta atenta pode nos jogar numa solidão perigosa. “A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar nossos estilos de vida, nossas relações, a organização das nossas sociedades e, sobretudo, o sentido da nossa existência” (FT 33).

Nossa subjetividade humana é constituída de pulsões dinâmicas. Sempre inacabadas, esperam de nós muito empenho no cultivo da vida interior. Afetos são territórios polissêmicos, terrenos espinhosos e prazerosos ao mesmo tempo. E o que nos move, numa cultura capitalista? Eficiência, pressa, concorrência, controle, para produzirmos mais. Quando algo não “funciona”, é catalogado como doença. Vivemos em um sistema que discrimina o que foge de suas ordens, impondo ideias e práticas que adoecem nossa existência.

Enquanto sonhamos em conquistar o espaço, seria mais urgente reconquistar nossa corporeidade como lugar do sagrado mistério de nossos desejos, relações, alegrias e frustrações. Há tantos corpos negros, indígenas, com diferentes orientações sexuais, que sofrem racismo e preconceito simplesmente porque não se enquadram em padrões impostos por uma lógica dominadora. Nossa vulnerabilidade corpórea pesa, sobretudo, sobre alguns corpos específicos, o corpo dos mais pobres.

Foi por meio da escuta dos excessos corpóreos que Freud fez suas grandes descobertas (FREUD, 1996). Há algo operando em nós que não tem origem apenas física. Então, quando falamos de corpo, também falamos de espírito, de desejos mais profundos, de memória, de inconsciente. Que exige elaborações pela palavra, pela arte, pela simbolização. A pressa cotidiana, como se nosso corpo fosse máquina, roubou-nos a atenção para com nossos ciclos. Os ritos, o silêncio, a roda de palavra partilhada ou a escuta profissional atenta são muito importantes para o cuidado de nossa memória afetiva. E o que dizer dos corpos discriminados, descartados, invisíveis?

3. Não é possível um corpo saudável em um planeta doente

Atravessamos uma crise global socioambiental. Cerca de 1% da população mundial dominou o planeta e concentra riquezas equivalentes ao que possui metade dos seres humanos que habitam a Terra (SHIVA; SHIVA, 2019). Ou seja, o modelo de economia que põe o lucro acima da vida é responsável por verdadeira fábrica de morte de pessoas e de outros seres vivos. Um sofrimento imposto de maneira cruel. Somos chamados, cada vez mais, a escutar esses gritos dos pobres e da Terra.

A Laudato Si’ apresenta-nos a ecologia integral como tema transversal. É urgente que mudemos nosso estilo de civilização global. A transformação passará, sem dúvida, pela construção de nova relação com toda a criação. A concepção de vida humana separada da complexidade de tantos seres vivos jogou-nos na arrogante postura de que podemos fazer da natureza o que bem entendermos. Distanciamo-nos da vocação de cuidadores e estamos, cada vez mais, imersos numa posição de destruidores. “Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la” (LS 2).

Os dois crimes da mineração – em Bento Rodrigues, Mariana-MG, da Samarco/Vale/BHP Billiton, e em Brumadinho-MG, da Vale/Tüv Süd – exemplificam o horror da violência lançada sobre o corpo de trabalhadores, pequenos agricultores, famílias e sobre a natureza. Levaram a riqueza e deixaram a lama da morte. Infelizmente, esses não são os únicos traumas abertos pelo capitalismo neocolonialista. A hegemonia de um estilo de economia que sobrevive pelo acúmulo tem feito aumentar a morte, a fome, o número de refugiados, a escassez da água e tantos outros sofrimentos.

Em forma de prosa e poesia, tentei partilhar um pouco de nossa caminhada no livro Brumadinho: 25 é todo dia (FERREIRA, 2020). De acordo com a estratégia das mineradoras, quanto mais rápido esquecer, melhor. No entanto, nossa presença pastoral se faz na garantia da memória. Eram vidas, não números. Aos poucos, os projetos de resistência vão aparecendo, com possibilidade de abrir horizontes novos de vida. É uma luta mística. O grito por justiça e reparação integral ecoa em nossa voz como sinal da fé que professamos.

Sem proximidade pastoral junto aos atingidos, é impossível fazer caminho. Criar rede de afetos favorece a tomada de consciência de nova coletividade, que nasce do trauma. Em muitas situações, os atingidos se sentem abandonados. A presença de uma Igreja samaritana torna-se indispensável. Literalmente, é preciso pisar na lama. Dessa atitude nasce a profecia da denúncia e do anúncio. Quando não soltamos as mãos dos atingidos, eles nos motivam a viver verdadeiros processos de conversão.

Em muitas situações, pecamos pela divagação. Dizer, por exemplo, que devemos construir o Reino de Deus é uma coisa; outra coisa é nos reunirmos com o Coletivo de Atingidos e construir projetos concretos de agroecologia, de reformas para as capelas, de iluminação solar, participando de intermináveis reuniões. Há muito discurso sem obras concretas. Como afirma o papa Francisco: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49).

Os ritos são lugares privilegiados do cuidado. Essa dimensão simbólica é essencial na elaboração do luto, na representação das dores de um trauma, no encontro de uma palavra de sentido, ainda que se viva o absurdo de uma tragédia/crime. Acender uma vela pode ser a última coisa que resta para um corpo desesperado. Nosso “sarau pastoral” é um tempo de declamar poesias, de resgatar uma palavra, um gesto de vida no meio do caos. Hora da narrativa nova, que não se conforma com os padrões impostos pela comunicação maquiada de reparações violentas. Nesse sentido, a poesia é perigosa, porque ajuda a aprofundar as contradições da violência mortífera.

4. As chagas de Cristo e a Igreja samaritana

“Ele sempre se mostrou cheio de misericórdia pelos pequenos e pobres, pelos doentes e pecadores, colocando-se ao lado dos perseguidos e marginalizados.” Com esse trecho da Oração Eucarística VI-D, herdamos de Jesus essa proximidade extraordinária com os mais feridos de nossa carne humana. Em que sentido suas chagas são redentoras? No sentido de que, ao combater as posições políticas, sociais e religiosas injustas, foi crucificado, sendo coerente com o Reino de Deus que pregava. Como ele disse de si mesmo: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois me ungiu para anunciar o Evangelho aos pobres […]” (Lc 4,18-19). A morte redentora de Jesus é consequência de uma vida toda de amor.

Ele tocou, com acolhida, os corpos excluídos, e por isso o feriram até a morte. Carregou sobre si nossas dores para abrir o caminho de libertação: o sentido do sofrimento, nós o encontramos na paixão de Cristo, à qual somos incorporados (BOFF, 2003). E o que se espera de sua Igreja? Assim diz a Oração Eucarística VI-D:

Dai-nos olhos para ver as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos e irmãs; inspirai-nos palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos; fazei que, a exemplo de Cristo e seguindo o seu mandamento, nos empenhemos lealmente no serviço a eles. Vossa Igreja seja testemunha viva da verdade e da liberdade, da justiça e da paz, para que toda a humanidade se abra à esperança de um mundo novo (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, 2008, p. 864).

O Verbo se fez carne para que não desprezássemos nenhum corpo, por mais ferido que esteja (Lc 10,29-37). Afirma São João Paulo II na Salvifici Doloris – Carta Apostólica sobre o sentido do sofrimento humano – que, graças a tantas expressões de “bom samaritano” na Igreja e na sociedade, vemos claro que

os valores morais fundamentais, como o valor da solidariedade humana, o valor do amor cristão ao próximo, compõem o quadro da vida social e das relações inter-humanas e aí fazem frente às diversas formas do ódio, da violência, da crueldade, do desprezo pelo homem, ou até da simples “insensibilidade”, ou seja, da indiferença para com o próximo e os seus sofrimentos (SD 29).

Conclusão

No drama de nossas dores, nestes tempos de travessias, convoquemos a profecia de Maria (Lc 1,46-55). Força do Espírito que age desde os miseráveis. Há situações em que a única saída é sustentar Cristo na cruz. E esperançar os acenos pascais. O transbordar da presença misericordiosa, nos limites do sofrimento, toca o coração de Deus. Ele também padece conosco. De modo que nosso amor fraterno salva em nós a caridade que nos salva.

Assim afirmou outra mulher, antes de morrer nos campos de concentração:

Uma coisa, porém, torna-se cada vez mais evidente para mim, ou seja, que Tu não nos podes ajudar, mas que somos nós que te ajudamos e, desse modo, ajudamos a nós mesmos. A única coisa que podemos salvar destes tempos, e também a única coisa que conta de verdade, é um pequeno pedaço de ti em nós mesmos, meu Deus (HILLESUM, 2012, p. 713).

Maria de ontem e tantas Marias de hoje. Na cruz do Calvário, no ódio genocida de Auschwitz, nas ditaduras latino-americanas, na lama criminosa de Brumadinho, nos hospitais, em época de pandemia. O amor persevera em Maria! Amor que acolhe o sofredor, mas também denuncia as causas injustas de seu sofrimento.

Referências bibliográficas

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução oficial da CNBB. Brasília: CNBB, 2018.

BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo, paixão do mundo. Petrópolis: Vozes, 2003.

CARRARA, Paulo Sérgio; FERREIRA, Vicente de Paula. A mística de Etty Hillesum, interfaces com a espiritualidade cristã. Interações, Belo Horizonte, v. 15, n. 2, p. 330-353, jul./dez. 2020.

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Missal Romano. 12. ed. São Paulo: Paulus, 2008.

FERREIRA, Vicente de Paula. Brumadinho: 25 é todo dia. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

______. Vulnerabilidade pós-moderna e cristianismo. Aparecida: Santuário, 2017.

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium: Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual (EG). Brasília: CNBB, 2013. (Documentos Pontifícios, 17).

______. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum (LS). Brasília: CNBB, 2020.

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______. Gaudete et Exsultate: Exortação Apostólica sobre a chamada à santidade no mundo atual (GE). Roma: Tipografia Vaticana, 2018.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 21.

HILLESUM, Etty. Diario: edizione integrale. Milano: Adelphi, 2012.

JOÃO PAULO II, Papa. Salvifici Doloris: Carta Apostólica sobre o sentido cristão do sofrimento humano (SD). Roma: Tipografia Vaticana, 1984.

SHIVA, Vandana; SHIVA, Kartikey. Il pianeta di tutti: come il capitalismo ha colonizzato la Terra. Milano: Feltrinelli, 2019.

Vicente Ferreira*

*é bispo auxiliar da arquidiocese de Belo Horizonte, atua na região episcopal Nossa Senhora do Rosário, cuja sede está em Brumadinho-MG. Membro da Comissão de Ecologia Integral e Mineração, acompanha as comunidades atingidas por violações socioambientais. Poeta e escritor, tem doutorado em Ciência da Religião e pós-doutorado em Teologia. E-mail: [email protected]