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Publicado em julho-agosto de 2022 - ano 63 - número 346 - pág.: 28-39

Os 200 anos da (in)dependência e os desafios sociopastorais à luz das propostas da 6ª Semana Social Brasileira

Por Eduardo Brasileiro*

O presente artigo pretende abordar, à luz da conjuntura política, econômica e cultural atual, quais são os reflexos destes 200 anos na sociedade brasileira e como os desafios deverão ser interpretados do ponto de vista pastoral e eclesial. Nesse sentido, o autor buscará saídas a partir da 6ª Semana Social Brasileira, agenda vivida transversalmente por todas as pastorais do Brasil após deliberação da CNBB de alguns anos atrás, com o tema: “Mutirão pela vida: por terra, teto e trabalho”.

1. Um balanço conjuntural

Pensar os impactos da Independência de 1822 na vida dos brasileiros e brasileiras de hoje, 200 anos depois, é grande desafio. Dizer que não houve independência seria coligar-se a um negacionismo de coturno que se vê atualmente no Brasil, mas não problematizá-la seria um erro crasso: independência para quem? O quadro majestoso de Pedro Américo, pintado em Florença mais de 60 anos depois do evento, sob a encomenda de Dom Pedro II, exprime a fábula criada pelo Império e retroalimentada pelas classes dominantes para manter acesa a esperança no 7 de setembro de 1822 como tempo inaugural de liberdade para o povo brasileiro. A movimentação para o Brasil se tornar independente de Portugal teria irrompido neste discurso de Dom Pedro I: “As cortes querem mesmo escravizar o Brasil. Cumpre, portanto, declarar já a nossa independência. Desde este momento estamos definitivamente separados de Portugal: independência ou morte seja a nossa divisa” (MACAULAY, 1986, p. 53). Nossa independência foi uma revolução conservadora, pois o Brasil mudava para continuar igual. Tratou-se de uma movimentação do príncipe e de setores da classe dominante para conservar uma grande nação unida, com coesão econômica – recusando o retorno do Brasil a colônia servil de Portugal -, a fim de manter a escravidão e o latifúndio de pé.

Passados 200 anos, esta pátria reflete os mesmos desafios, aprofundados, contudo, por questões políticas, sociais e econômicas próprias de nossa época. Num recuo de cem anos, em 1922 a Semana de Arte Moderna também buscará interpretar o Brasil, a sua brasilidade, e avaliar a própria forma como nos vemos enquanto nação. Nesse sentido, nosso olhar é convidado a deter-se na compreensão fantasiosa do sentido de “pátria”. Quando Caetano Veloso canta: “A língua é minha pátria, e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria”, apresenta o DNA das lutas populares dos séculos XIX e XX, voltadas para a construção de outra sociedade, emancipada da escravidão e do latifúndio a partir da fraternidade. É difícil assumir, mas o Brasil nunca teve uma cultura societária que configurasse sua identidade como pátria – afinal, na condição de país de geografia continental, teve sempre profundas dificuldades de se reconhecer, de ver suas belezas e contradições. Este é um traço que a nova geração de jovens identitários vem buscando por meio da comunicação: exprimir um discurso, uma voz e um rosto brasileiros. É bonito gostar de si próprio, da sua cor, dos seus traços, e reconhecer suas lutas. O Brasil, para além desses aspectos, detém uma herança do reconhecimento popular de suas profundas desigualdades, cindindo seus cidadãos entre privilégio e miséria.

Dois aspectos obrigam-nos a fazer um recuo historiográfico para nos reconhecermos melhor. Um primeiro desafio é a leitura essencial da concepção dialética da história, pois, em tempos de avanço do obscurantismo, “jogar luzes” sobre a história é honrar aquilo que Walter Benjamin chamava de “escovar a história a contrapelo”, compreendendo a função de ler a história não a partir da transmissão do vencedor, e sim dos vencidos. O Brasil precisa ainda romper com heróis falsamente criados, movidos verdadeiramente por interesses privados sob a aparência de espírito público. Certamente, necessita ainda contar a histórica heroica de um povo que lutou em e por Palmares, onde 20 mil negros resistiram por 50 anos, até seu fim em 1694, e em todos os quilombos brasileiros, como o Quilombo da Mola, liderado por Felipa Maria Aranha, no estado do Pará (1750), o Quilombo Confederação de Itapocu, o Quilombo Rio das Mortes e outros tantos.

Os excluídos e excluídas da história (PERROT, 2010) construíram uma historiografia de sangue, memória e rebeldia. É a memória da Conjuração Baiana (1798) e daquelas revoltas posteriores a 1822, como a Balaiada (1830) – ocorrida no Maranhão, reunindo escravos, pobres, sertanejos, lavradores e camponeses, sob a liderança de Preto Cosme e outros/as tantos/as – e a Revolta dos Malês (1835). Mencionem-se também as revoltas que se seguiram à República, como a das Laranjas (1889), que deveria se chamar “Revolta da Negra Sabina”, a Revolta da Chibata (1910), a primeira greve geral do país (1917) e o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no Ceará (1936), movimento cujos adeptos foram brutalmente assassinados pelas forças do governo de Getúlio Vargas, tendo seus corpos jogados numa vala comum, crime pelo qual até hoje o Estado brasileiro nunca se responsabilizou. É importante lembrar também a Marcha da Panela Vazia (1953) – greve de 300 mil trabalhadores –, as Ligas Camponesas (1955), a Revolta Estudantil (1956) e a Revolta das Barcas (1959). Além dessas citadas, há mais de cem outras revoltas populares do passado e outros milhares da atualidade que marcam uma história de apagamento e expulsões de povos, robustecendo formações predatórias da economia (SASSEN, 2016).

Um segundo aspecto é a consolidação do projeto civilizatório capitalista, que trouxe, no século XX, a dependência como novo processo colonial (neocolonialismo), no qual o mito do subdesenvolvimento é construído como estágio, e não como condição permanente. O Brasil, como projeto do que nunca seria, fomentou um estilo de consumo e de vida das classes dominantes baseado nos padrões do capitalismo central (a Europa), sem que houvesse um projeto de acumulação de consumo, de elevação da produtividade, de diversificação da oferta e do consumo. Em verdade, tornamo-nos um país de abissais desigualdades. Estabeleceram-se mitos como o da igualdade racial (FREYRE, 2003) e o do homem branco cordial (HOLANDA, 2011) e, com a entronização do neoliberalismo nos anos 1970 até sua concretização, na redemocratização do Brasil, consolidaram-se o desmonte da sociedade do trabalho, os extrativismos, que abriram enormes crateras de mineração, com seus rejeitos tóxicos, as imensas lavouras de soja, os grandes pastos para gado e uma economia de exportação primária que nos faz reféns do mercado internacional, mostrando a incapacidade dos conglomerados capitalistas de promover uma revolução democrática e uma revolução nacional. O que fizeram, na verdade, foi uma contrarrevolução (PRADO JR.; FERNANDES, 2005) de ordem fiscal, na qual o Brasil do retorno ao mapa da fome briga com o “Brazil” da ordem fiscal, a qual não permite uma renda básica para todos os cidadãos, como afirmou o papa Francisco em discurso aos movimentos populares (FRANCISCO, 2021).

Num momento histórico difícil como o nosso, o primeiro passo a dar é ter a noção de que estamos diante de uma encruzilhada civilizatória. A civilização pode trilhar seu curso focada na globalização financeiro-neoliberal, uma sociedade do cansaço e do fim das perspectivas (HAN, 2015), ou pode seguir um caminho aonde convirjam as inúmeras frentes, articulações e lutas que tenham como centro o resgate da vida por meio de uma transição socioecológica.

Para isso, é preciso método. Maneiras de comunicar a conversão que os movimentos populares provocam dentro da história (FT 116) e com eles iniciar a mudança de caminhos. Uma decisão política que supere o velho e o novo paradigma de governança, que estabelece quem tem o poder de controlar, o poder de desenvolver, o poder de libertar, o poder de empobrecer, endividar, alienar. É por isso que os movimentos eclesiais e populares criaram as Semanas Sociais Brasileiras, com o objetivo de entender o “nó górdio” da organização social no país. A 1ª Semana Social debateu sobre o trabalho (1991), a 2ª sobre a exclusão social e os novos atores sociais emergentes (1993), a 3ª sobre as dívidas (1997), a 4ª sobre a sociedade brasileira (2003) e a 5ª sobre o Estado (2011). A 6ª Semana Social Brasileira assume-se como um “mutirão pela vida, por terra, teto e trabalho”, lembrando o chamado do papa Francisco aos movimentos populares e incentivando uma ação organizada em torno desse programa de ação que convoca o país para construir sua independência real. No Brasil, por meio da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, e no mundo, organiza-se o Realmar a economia, para que, no lugar de uma economia voltada para o mercado, ela seja movida pela solidariedade e pela ecologia integral. Partem daí reflexões e propostas de transição, como a teoria monetária moderna, que promove um debate amplo sobre o papel político da economia em restabelecer os parâmetros de dignidade, e não os interesses do cassino do mercado financeiro; os comuns, que, no mundo inteiro, vêm radicalizando políticas públicas que impulsionam o uso comum dos bens, a partilha das comunidades, a vivência ecológica e solidária e a perspectiva de desenvolvimento humano integral; o Green New Deal, que, em países como os Estados Unidos, vem exigindo grande industrialização verde, com base em novas relações socioecológicas. Transições das quais vamos nos apropriando nesse amplo pacto global proposto pelo papa Francisco, o qual vai ao encontro dos saberes e práticas dos povos dos nossos territórios. Vale destacar que educadores do mundo inteiro se organizam em torno do pacto global educativo, convocado pelo papa Francisco, para fazer a aldeia que educa por meio da cultura do encontro. A 6ª Semana Social Brasileira, portanto, bebe também dessas duas chaves de reflexão e promove um mutirão de ação popular, num esforço de síntese: uma ação organizada provocada pela pedagogia do encontro, reunindo forças que convirjam para mudanças educativas; um enfrentamento da economia neoliberal por meio de políticas que construam a solidariedade e a ecologia integral, causem uma fissura no deserto do realismo distópico e, por fim, possibilitem ao poder popular transformar a realidade, a partir de comunidades cada vez mais autogestionárias.

2. A caminho do mutirão brasileiro de independência: a pedagogia do papa Francisco

Em 5 de julho de 2020, no dia do meio ambiente e em meio à turbulência da pandemia da covid-19, o papa Francisco lançou, por meio das plataformas digitais, a Universidade do Sentido, coordenada pela Fundação Scholas Ocurrentes (“escolas dos encontros”). Ele nos convidava a pensar, diante da crise, com um pouco de loucura (fugir do racionalismo) e um pouco de intuição (sentir). Trouxe três imagens para dialogar conosco: o louco de A estrada, de Fellini; O chamado de Mateus, de Caravaggio; O idiota, de Dostoiévski. O sentido do louco, o chamado de Mateus e a beleza.

As três histórias são histórias de uma crise, e nas três se põe em jogo a responsabilidade humana. Crise significa originalmente ruptura, atalho, abertura, perigo, mas também oportunidade. Quando as raízes necessitam de espaços para continuar crescendo, o vaso se parte […]. Assim é a vida, cresce e se rompe (FRANCISCO, 2020).

Diante da crise gerada pela pandemia e do aprofundamento do capitalismo, o papa Francisco insiste: “[…] não levantem os punhos para brigar com a cultura, tampouco abaixem os braços em total passividade”, mas “saiam às ruas para escutar os corações” (SAYAGO, 2019, p. 17). Retomar os sentidos diante da globalização neoliberal, buscar uma evangelização da sensibilidade, é tarefa primeira para recompor um corpo místico que seja, no concreto da vida das pessoas, respiro para a retomada de uma Igreja pobre e para os pobres. Desse modo, o desafio evangelizador reside no compreender nosso corpo diante dos corpos coletivos e suas ausências. O neoliberalismo provocou uma desterritorialização, e isso se sente no fato de as pessoas já não pertencerem às lutas populares, às pastorais, às associações de moradores.

O chamado, segundo Francisco, é “a abertura para o outro que não sou eu” (FRANCISCO, 2020). A pedagogia, insiste ele, é apontar para a escuta, para a abertura ao outro e para a complexidade, diante de suas escolhas, renúncias e dores. A complexidade de uma sociedade meritocrática, competitiva e consumidora traz-nos à mente o que o teólogo Gustavo Gutiérrez, em meio à discussão sobre a legitimidade da teologia da libertação, dizia:

o problema da teologia não é discernir se há ou não enfrentamento de classes sociais. Este é um terreno fundamentalmente sociológico, que a teologia terá de seguir atentamente se quiser estar a par desse esforço. […] a pergunta é outra: se há luta de classes, como ser cristão, uma vez que esse enfrentamento existe? (GUTIÉRREZ, 2000).

O chamado que Francisco insiste em nos fazer é para que as comunidades sejam atravessadas pela realidade; portanto, a prática pastoral deve ser atravessada por um olhar crítico para as estruturas de morte. O centenário Paulo Freire, em sua obra Pedagogia do oprimido, já afirmava:

na verdade […], os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em “seres para outro”. Sua solução, pois, não está em “integrar-se”, em “incorporar-se” a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se “seres para si” (FREIRE, 1970, p. 39).

O chamado serve para perceber a condição, sem romantismos, romper o imediatismo do consumo e propor a convivialidade (TEIXEIRA, 2006). Em 2017, a paróquia Nossa Senhora do Carmo, em Itaquera, zona leste de São Paulo, a que pertenço e onde sou ministro da Palavra, definiu que a evangelização da crisma passaria a ter quatro momentos, nos quais os jovens conviveriam com pessoas sem-teto do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), com o povo caimbé da terra indígena de Guarulhos, com a população em situação de rua do centro de São Paulo, junto ao padre Júlio Lancellotti, e com membros de um terreiro de umbanda da região, Ilé Asé Maroketú Ogún e Osóssi. Metodologicamente, seria um café da manhã em mutirão, no qual se viveria, por meio da comensalidade, o “mistério eucarístico” do encontro com o outro. Chamado.

A segunda dimensão de Francisco é o sentido. O papa acredita muito na sensibilidade da intuição. Mover-se pelo mundo novo que não se conhece e se aproximar dele. Todos temos sentidos, todos temos escolhas e com elas devemos nos mover, criar o que há de vivo na dimensão comunitária, na dimensão da partilha. Francisco (2020) afirma: “Todos temos algo que dar. Todos temos algo que receber”. É importante que não haja vida sem sentido, risco presente onde o consumo coloca todos na redoma da sociedade do desempenho (HAN, 2015, p. 126).

Por fim, a beleza. Cuidadosamente vamos cuidando da criação, com a pedra de cada um edificando a cultura do encontro, como afirma Francisco: “Não se pode educar sem induzir à beleza, ao coração. Uma educação não é exitosa se não sabe criar poetas” (SAYAGO, 2019). O papa Francisco insiste, na encíclica Fratelli Tutti, que a visão econômica fechada e monocromática do mundo acaba por banir o povo da sociedade e definir que o que vale é o mercado. O povo, muito pelo contrário, gesta as origens da mudança, pois nele os corações se tocam e constroem solidariedade.

Neste sentido, são “poetas sociais” que à sua maneira trabalham, propõem, promovem e libertam. Com eles, será possível um desenvolvimento humano integral, que implica superar “a ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida num projeto que reúna os povos” (FT 169).

Essa síntese metodológica de Francisco deve provocar uma conversão da ação popular no Brasil, levando a uma pedagogia do encontro e a práticas cada vez mais colaborativas de organização popular.

3. Fazer mutirão por outra economia, democracia e soberania

A 6ª Semana Social Brasileira apresenta os eixos que fazem nosso povo possuir terra, teto e trabalho. Foi com base na praxiologia, presente no diagnóstico e na formação em mutirão dos movimentos sociais, que se descobriu o golpe sobre as nações, sobretudo as mais pobres, traduzido na criação de um sistema de governo que usa a roupagem da democracia, nos assalta a reação em defesa da soberania e constrói nova ordem econômica. O neoliberalismo é, hoje, o único sistema político, econômico, social e cultural hegemonizado em todas as sociedades. Segundo os sociólogos Christian Laval e Pierre Dardot, no seminal A nova razão do mundo – ensaios sobre a sociedade neoliberal, o capitalismo, neste estágio do tempo, é também uma subjetivação. Tratamos de pessoas desumanizadas e tornadas sujeitos-empresas: “Cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 371). O sujeito empreendedor de si mesmo faz de sua vida uma gestão, como uma empresa. É um dos nós da ideologia neoliberal presente em nossas comunidades que deve ser combatido na chave da solidariedade e da ecologia integral, dimensões insuportáveis para um sistema que produz apenas o homem-empresa e a meritocracia.

O neoliberalismo hegemonizado na sociedade possui uma essência antissocial porque é operado pela financeirização. O capital liberal ainda pensava no bem-estar dos seus trabalhadores (welfare state), mesmo com a matriz de exploração intacta; já o capital financeiro produz riqueza com base no dinheiro, e não nas pessoas. Portanto, uma lógica se impõe sobre nossos ombros: a financeirização é, acima de tudo, a especulação. Papéis (títulos = dinheiro) empurram outros papéis para privilegiar interesses, privatizar espaços públicos, promover gentrificações e favorecer negócios.

O problema central da economia capitalista neoliberal financeirizada é seu cerco ao bem comum. A acumulação por despossessão (HARVEY, 2016, p. 267) ocorre mediante duplo movimento: os mercados estimulam a precarização de políticas públicas por meio de privatizações e, em seguida, pedem a desoneração de impostos para fazerem negócios em áreas precarizadas que se tornaram interessantes aos negócios. Porém, do mesmo jeito que é fundamental, para o capital, o controle do espaço e a submissão deste à lógica da acumulação, movimentos como o MTST e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), na força de mutirão, ocupam segundo outra lógica, cujo elemento central é o valor de uso, e não o valor de troca; fazem despontar novo elemento: a economia pela solidariedade, e não pelo sistema financeiro; têm como elemento central a produção e a proteção da vida, e não o lucro e os juros. Cada espaço de mutirão é, concretamente, um limite para a expansão do capital. Essas existências não mercantilizadas são resistências e projetos populares. E o capital não pode encontrar limite, do contrário lhe sobrevém a crise. Está aqui a raiz da insurreição: o mutirão.

Três elementos são centrais na democracia de baixa intensidade em que vivemos: 1) a influência do poder econômico nos processos decisórios (processos eleitorais, partidos, políticas públicas, decisões de Estado, tanto no executivo quanto no legislativo e no judiciário etc.); 2) a sub-representação de vários segmentos nos espaços de poder (periferias, mulheres, negras e negros, povos tradicionais, juventudes, camponeses/as, LGBTI+, trabalhadores/as em geral); 3) a ausência do povo nos processos decisórios (democracia formal, mas sem participação popular). Eis a identidade da luta: o mutirão traz um corpo místico de afeto e de solidariedade. A democracia brasileira, hoje, é feita para a manutenção da burocracia interna das classes dominantes; romper essa lógica é introduzir uma novidade. Afeto, na política, faz-se deslocando o Estado para os territórios, fomentando escolas, centros culturais, associações etc., para participação direta na democracia, e fazendo as forças populares convergir para os duros embates com a burocracia do mercado. Afinal, a mística do girassol, como símbolo da Semana Social Brasileira, historicamente quer mostrar que é preciso nutrir a esperança organizada.

A soberania é uma escolha que envolve reconhecer a cidadania planetária. Aqui em nossa terra, há quem confunda soberania com o bordão “Brasil acima de todos” – um exemplo da soberba de querer ser diferente e maior do que outros povos (STÉDILE, 2020, p. 7). Povos e culturas devem estar acima dos negócios e dos interesses neoliberais do mercado, contrariamente ao que houve quando se instalou no país uma política mitigante, de compensação social, mas não de mudança da estrutura política e econômica. O assistencialismo ganha força, assim como o manejo do orçamento público segundo a lógica clientelista. O mutirão propugna pela governança territorial. O papa Francisco, ao convidar os jovens do mundo inteiro a iniciar o processo da Economia de Francisco e Clara, insistiu em dizer que é preciso realmar a economia, e seu chamado se deu ao mostrar a vocação de um lugar: Assis. Portanto, é necessário realmar a partir da vocação dos nossos lugares, vilas, ruas, bairros, comunidades, condomínios, voltados para relações com a alma. Reside aqui a esperança do mutirão.

4. O método da 6ª Semana Social Brasileira: mutirão pela vida

[…] a Semana Social Brasileira se apresenta como um espaço privilegiado para o cultivo comunitário da espiritualidade através dos debates, dos momentos celebrativos com elementos lúdicos das regiões brasileiras e da cultura popular. A valorização do símbolo, que nas semanas sociais está representada com o girassol, remete ao significado desta flor, que na cultura popular significa felicidade, trazendo em suas cores a marca da vitalidade, do calor, do sol e sua energia que nasce para todas as pessoas, para todos os seres vivos, refletindo a energia positiva necessária para a construção das lutas cotidianas e para as grandes transformações estruturais necessárias para a sociedade do Bem Viver (Portal da 6ª Semana Social Brasileira: https://ssb.org.br/).

Devolver aos brasileiros e brasileiras o dever da esperança é a disposição da espiritualidade que vive nos territórios e nos povos tradicionais e se manifesta como projeto coletivo. A solidariedade atravessada por uma espiritualidade que bebe dos vasos constituintes dos territórios (memória eucarística e compromisso) está mais próxima não da vitória líquida e certa, mas sim da queda de Cristo, na terceira estação da via crucis. A queda é também ato de amor e se revela pela fragilidade, como sinal de contradição diante do discurso vencedor dos fundamentalismos que segregam nossas comunidades.

O mutirão traz essa dimensão do amor como ferramenta revolucionária. É uma política de afeto que irrompe no dia a dia pela pedagogia da presença, do engajamento e do envolvimento. Retoma os sentidos perdidos em meio à tempestade neoliberal e provoca o sentido maior: o encontro com Deus no empobrecido e na terra. Afinal, estes três lugares – Deus, a terra e o pobre – suscitam a germinação de novas relações, de novas economias, de outra lógica de poder, numa verdadeira autoafirmação da identidade. O mutirão educa para o encontro com a diversidade, fomenta a partilha da economia e do poder, alarga a vida como encontro transformador com o sagrado pela dignidade da terra e dos irmãos e irmãs.

O sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea (2021) afirma que a periferia sempre lutou contra a invisibilidade. Periferia é espaço das políticas do descontínuo, do incompleto e do improviso; é um território-outro do pensamento hegemônico e, antes da consciência ou da identidade, é uma condição, pois realiza uma responsabilidade compartilhada. As periferias são potências econômicas, e é nelas que o neoliberalismo 4.0 quer investir, com o empreendedorismo e a meritocracia. É necessário um movimento a favor da solidariedade revolucionária que já não permita a ação do neoliberalismo contra nosso povo. Reconhecer a história das periferias, que tem familiaridade com a gratuidade e a coletividade, pode dar vida a novas economias, como o movimento social de economias solidárias, redes de bancos comunitários, economia ecológica, redes de orçamento participativo etc., criando novas tessituras de finanças. As finanças solidárias imprimem uma dinâmica capaz de libertar do império da financeirização do mercado.

O que está em risco é a vida de milhões de pessoas. Por conseguinte, é urgente mobilizar e articular as forças sociais, conjugando-as para uma evangelização da sensibilidade, a qual Francisco nos propõe com a beleza, o chamado, o sentido e a força de um projeto popular resumido no tema: “O Brasil que queremos: o bem viver dos povos”. Ser sensível ao outro é um ato revolucionário em um mundo insensibilizado, violento e deprimido, e a sensibilidade é um caminho honesto para o Brasil real das periferias, pois nutre a hospitalidade, a fraternidade, a amabilidade e o cuidado como práxis da vida cotidiana. Por isso um mutirão constituído por nova forma de envolver as pessoas, por novos espaços de compartilhamento da justiça e da solidariedade, à luz da chave do sentir-pensar, que conecta o saber dos camponeses ao saber dos periféricos, os sempre considerados atrasados. Duzentos anos depois, o Brasil continua dizendo que sua independência se constrói por outros caminhos e seguirá fazendo novos pactos sociais, econômicos e educativos, como pegada humanista de novos processos civilizatórios possíveis.

Referências bibliográficas

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Eduardo Brasileiro*

*educador e sociólogo, mestrando em Sociologia pela PUC Minas. Membro do Nesp (Núcleo de Estudos Sociopolíticos), participa da “Casa Comum” (Escola de Formação Política para Cristãos Humanistas) e do Grupo de Reflexão e Trabalho pela Economia de Francisco e Clara, ambos na PUC Minas. É consultor do Instituto Cultiva e integrante da coordenação executiva da 6ª Semana Social Brasileira da CNBB em nome da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC). E-mail: [email protected]