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Publicado em janeiro-fevereiro de 2021 - ano 62 - número 337 - pág.: 31-37

Pedro Casaldáliga: o mártir que não conseguiram matar

Por Marcelo Barros

Qualquer pessoa que teve a graça de conhecer pessoalmente Pedro Casaldáliga e pôde alguma vez escutá-lo, se tiver alguma referência de fé bíblica e evangélica, certamente compreenderá a verdade do que o mártir Ignacio Ellacuría escreveu sobre o bispo mártir Óscar Romero: “Na pessoa dele, Deus passou por El Salvador”. O padre Ellacuría sabia que Deus não somente “passa”. Está presente e atuante em nós e através de nós, ainda que essa presença seja oculta. Para ser procurado, Deus gosta de permanecer presente, mas escondido. Pessoas como Óscar Romero e Pedro Casaldáliga devem frustrar muito a Deus, porque nem o deixam se esconder. Em sua pele e em seu jeito de ser, a presença divina transparece como luz amorosa que encanta o universo e chama a humanidade a se renovar.

De fato, desde o início do seu ministério, o bispo Pedro nos revelava Deus na alegria das crianças se banhando nas margens do Araguaia. Mostrava-nos o Pai de amor cuidando dos pescadores que voltam para casa depois de uma noite em busca do alimento. Reconhecia Jesus atuante na resistência dos peões de trecho e na pele negra dos quilombolas e nordestinos em busca de trabalhos nas fazendas. Adorava os encantados, como manifestação do Espírito divino na resiliência dos povos indígenas e no protagonismo das mulheres na luta pela vida. Adorava a Deus e o testemunhava presente em qualquer lugar e tempo nos quais a vida teima em ressuscitar das cinzas do egoísmo e da ambição.

Para quem o conheceu mais de perto e teve a graça de conviver com ele, não será fácil ver o mundo sem sua presença. Afinal, desde que, como padre ainda jovem, recebeu a missão de coordenar a nova prelazia de São Félix do Araguaia (1970), ninguém o encontrou sem, de alguma forma, ficar marcado. No contato com ele, as pessoas abertas ao apelo divino da justiça e da paz receberam sempre alento e força. Aqueles que, por interesses pessoais ou por alienação da vida, não aceitaram o anúncio do Reinado divino o rejeitaram. Alguns o odiavam. Diante de sua palavra e suas posturas proféticas, era impossível ficar indiferente. Agora, cabe a todos nós, que nos sentimos seus companheiros e companheiras no discipulado e no seguimento de Jesus, resgatar a profecia de Pedro e prosseguir seu caminho. Entre os muitos elementos que podemos recolher como herança que esse profeta nos deixa, podemos destacar três, que nos parecem mais urgentes e indispensáveis para o hoje de Deus em nossa vida e missão:

1º) A espiritualidade martirial

“Vidas pela Vida, / vidas pelo Reino, / todas as nossas vidas / como as suas vidas, / como a vida dela, / como a vida dele, / o mártir Jesus” (Zé Vicente).

Em todo o Brasil, esse cântico do Zé Vicente recorda Pedro Casaldáliga. Foi Pedro que, ainda nos anos 1970, já nos falava de Jesus como mártir, título que não era comum dar a Jesus. O cristianismo tradicional fala de muitos santos e santas como mártires de Cristo. Jesus é a meta e objeto do testemunho dos mártires. No entanto, o livro do Apocalipse nos apresenta Jesus como mártir, ou seja, testemunha fiel (Ap 1,5 e 3,14).

A espiritualidade da caminhada e, a partir dela, as teologias da libertação (teologias cristãs negras, indígenas, feministas e outras) têm nos ensinado a descontruir a teologia sacrificial e a compreender a paixão e ressurreição de Jesus nessa dimensão martirial, como testemunho do projeto divino no mundo e proposta de nova vida no Espírito.

Quando, em agosto de 1999, no Recife, falecia dom Helder Câmara, a querida amiga Clelia Luro publicava na Argentina, sobre dom Helder, o livro: El mártir que no mataron (PODESTÁ, 2000). Agora, Pedro Casaldáliga pode ser proclamado o mártir que não conseguiram matar. E não foi por falta de tentativas e ameaças. Pedro sempre fez questão de ser um da imensa nuvem de testemunhas do Reino que são “mártires da caminhada”.

Desde os anos 1960, milhares de irmãos e irmãs, ao darem a vida pela causa da terra, da justiça e dos direitos dos pobres, ensinaram-nos a repensar a espiritualidade e a teologia decorrente do martírio. Como velho militante dessa causa, tive o privilégio de conviver com alguns desses irmãos e irmãs mártires e até de tê-los como companheiros em encontros de pastoral. No entanto, podemos dizer que, sem dúvida, junto com dom Óscar Romero e a irmã Dorothy Stang, Pedro Casaldáliga é quem, de forma explícita, mais nos ajudou a unir a espiritualidade e a teologia martirial à opção social e política de um novo mundo possível.

Até hoje, por toda a América Latina, ressoa a advertência feita por dom Óscar Romero, ao pregar uma homilia alguns dias antes do seu martírio:

Tenho sido frequentemente ameaçado de morte. Devo dizer-lhes que, como cristão, não creio na morte, mas sim na ressurreição. Se me matarem, ressuscitarei no povo salvadorenho. Isto lhes digo sem nenhum orgulho, mas com a maior humildade […]. Como pastor, estou obrigado por lei divina a dar minha vida por aqueles que amo, que são todos os salvadorenhos, mesmo por aqueles que vão me matar. Se chegarem a cumprir as ameaças, desde já ofereço a Deus o meu sangue pela redenção e salvação de El Salvador. O martírio é uma graça que não creio merecer. Mas se Deus aceita o sacrifício de minha vida, que meu sangue seja semente de liberdade e sinal de que a esperança será em breve uma realidade […] (ROMERO apud TOJEIRA, 2005, p. 164-165).

Pedro Casaldáliga, em 1971, já ameaçado de morte por ter denunciado os crimes do latifúndio, escrevia um de seus mais belos poemas:

“Eu morrerei de pé como as árvores.

Me matarão de pé.

O sol, como testemunha maior,
porá seu lacre

sobre meu corpo duplamente ungido. […]

Eu direi a minhas palavras:

– Não mentia ao gritar-vos.

Deus dirá a meus amigos:

– Certifico

que viveu com vocês esperando este dia.

De golpe, com a morte,

minha vida se fará verdade.

Por fim terei amado!”

Pedro conviveu continuamente com o martírio. Assumiu-o não só como ideal místico, mas como estilo de vida doada. Nos primeiros anos da década de 1980, em todo o Brasil se multiplicaram os assassinatos de irmãos e irmãs. Só para citar alguns: na Paraíba, Margarida Alves; em Goiás, Nativo da Natividade; em Rondônia, o padre Ezequiel Ramin; em Eldorado de Carajás, a irmã Adelaide Molinari. Quando, em julho de 1986, as comunidades eclesiais de base se encontraram para o VI Encontro Intereclesial de CEBs em Trindade-GO, havia apenas dois meses tínhamos celebrado a páscoa do padre Josimo Tavares. Ali, o bispo Pedro assessorou as comunidades, conduzindo-as a refletir sobre o martírio e sobre nossa responsabilidade de sermos uma Igreja dos mártires. Na carta de conclusão do encontro, as comunidades escreveram: “Nós queremos nossos mártires vivos, e não mortos”. Pedro nos ajudou a descobrir que o martírio não é apenas uma forma de morrer, mas sobretudo um modo de viver. Assim se desenvolveu verdadeira espiritualidade dos mártires da caminhada. Ele gostava sempre de repetir: “Uma Igreja que não celebra seus mártires não seria Igreja do mártir Jesus”. Celebrar os mártires da caminhada é nos colocarmos, cada um de nós, também como testemunhas do Reinado divino nesse mesmo processo de luta, resistência, fé e esperança.

Foi essa espiritualidade e teologia dos/das mártires da caminhada que fez Pedro, em 1971, no mesmo dia em que foi ordenado bispo, publicar sua primeira carta pastoral: Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. Naquele dia, na celebração litúrgica, ao ser perguntado pelo bispo oficiante qual seria sua prioridade como pastor da prelazia, respondeu: “Inserir-se na vida dos mais pobres e ser presença solidária na luta de libertação dos oprimidos”.

Era este o objetivo da missão: uma Igreja toda mártir, testemunha do amor divino no serviço solidário aos pobres e no compromisso prioritário com as causas da libertação. E ninguém se engane: isso não o fazia cuidar menos da organização interna da Igreja e das tarefas de catequese e liturgia. Ao contrário, quanto mais mergulhava na solidariedade aos pequenos, mais insistia na formação bíblica e teológica para todos/as das comunidades. Já nos anos 1970, publicava as cartilhas de catequese e o livro Orações da caminhada. Era a espiritualidade dos mártires da caminhada que o levava a repetir, como lema de sua vida e proposta para todos nós:

“Ser o que se crê.

Falar o que se crê.

Crer no que se prega.

Viver o que se proclama,

até as últimas consequências”.

2º) A dimensão macroecumênica da fé

Em setembro de 1992, estávamos em Quito, Equador, na I Assembleia do Povo de Deus (APD), encontro continental de comunidades negras e indígenas que protestavam contra as celebrações triunfalistas que a Igreja católica e governos faziam dos 500 anos da conquista. Ali houve um começo de conflito. Os índios propunham a “desevangelização”. Um chefe indígena repetiu a palavra de um índio ao papa Paulo VI em Bogotá em 1968: “Quando vocês, cristãos, chegaram aqui, vieram com a Bíblia e nós tínhamos terra. Vocês nos deram a Bíblia e tomaram nossas terras. Agora queremos lhes devolver a Bíblia e pedir que devolvam nossas terras”.

Com paciência e humildade, Pedro assumiu a defesa da proposta dos índios, mostrando que seu sentido era descolonizar a fé e a missão cristã. E ali cunhou o novo termo “macroecumenismo”, ou seja, um caminho ecumênico não só entre as Igrejas cristãs, nem apenas um diálogo inter-religioso concernente às diversas religiões, mas um processo espiritual que envolva todas as pessoas, religiosas ou não, que aceitem se pôr a serviço da libertação da humanidade. Trata-se de um ecumenismo a partir dos pobres e da fé, na direção do Reinado divino da justiça e da libertação.

Essa espiritualidade macroecumênica já estava, de alguma forma, presente no projeto que, no final dos anos 1970, levou Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra a escrever juntos a letra dos cânticos da Missa da Terra sem Males, musicada por Martin Coplas, e depois, em 1980, a Missa dos Quilombos, musicada por Milton Nascimento. Não se tratava propriamente de uma missa diferente, e sim de cânticos para uma missa que se pudesse celebrar em comunhão com a utopia indígena e a espiritualidade afrodescendente.  Assim que conseguiu, o Vaticano proibiu a experiência. Ainda no X Encontro das CEBs em Ilhéus-BA, em julho de 2000, quando se quis cantar a Missa dos Quilombos, Pedro coordenou um ágape fraterno com pão, vinho, pipoca e cocada. No âmbito da música popular brasileira, Rolando Boldrin compôs a canção Novo amanhecer, que retoma a introdução de Pedro Casaldáliga na abertura da Missa da Terra sem Males:

“Em nome do Pai de todos os povos,

Maíra de tudo, excelso Tupã.

Em nome do Filho, que a todos os homens nos faz ser irmãos.

No sangue mesclado com todos os sangues,

em nome da aliança da libertação.

Em nome da luz de toda cultura,

em nome do amor que está em todo amor.

Em nome da Terra-sem-males,

perdida no lucro, ganhada na dor,

em nome da Morte vencida,

em nome da Vida,

cantamos, Senhor!”

Que essa profecia, proclamada de um jeito próprio no começo dos anos 1980, reencontre os modos atuais de ressoar o amor e o cuidado da Igreja com as populações indígenas e afrodescendentes.

3º) A eclesialidade para além da própria dimensão religiosa

Desde muito novo, ao assumir em sua vida o Evangelho, Pedro casou com a Igreja. Ele a amava como se fosse seu próprio corpo. No entanto, tinha um jeito próprio de ser Igreja, de viver, em cada poro da pele e em cada célula do corpo, a identificação com a Igreja.

Ao ser ordenado bispo, entre as prioridades que assumiu em seu trabalho na prelazia, junto com a “inserção na luta dos pobres a serviço de sua libertação”, propôs-se organizar uma Igreja que fosse verdadeiramente sacramento de comunhão, ensaio do mundo novo que desejamos: irmandade, igualdade entre homem e mulher e participação de todos no serviço do Reino divino.

Ainda nos anos 1970, em um encontro de bispos, um diplomata do Vaticano lhe diz: “Dom Pedro, é preciso saber que a Igreja não é e não pode ser uma democracia”. Pedro respondeu: “Estou de acordo. Democracia para a Igreja é pouco. Jesus quer que ela seja comunhão. Vá muito além da democracia. Seja ensaio do jeito novo que Deus quer para o mundo”.

Para assumir a missão episcopal, Pedro exigiu que todos os irmãos e irmãs da equipe missionária votassem, dizendo que só assumiria o episcopado se o grupo todo o escolhesse. A partir dali, todo o trabalho era organizado e realizado em comum. As equipes pastorais eram compostas de padres, religiosas e leigos, sem que nenhum fosse superior ao outro. Tudo era feito em comum. Uma vez, Pedro definiu isso como “uma eclesialidade para fora da própria esfera religiosa”, porque ensaiava, no mundo, um jeito de viver, de trabalhar e de propor a educação e a organização das relações humanas.

O Concílio Vaticano II chamou isso de colegialidade, mas a palavra acabou usada quase exclusivamente para a missão conjunta dos bispos: colegialidade episcopal. Quando Pedro começou a missão em São Félix do Araguaia, o irmão Roger Schütz animava o projeto de um “concílio de jovens”. Atualmente, o papa Francisco propõe a sinodalidade como modo de a Igreja ser. A prelazia de São Félix do Araguaia vivia isso já nos anos 1970.

Em um dos primeiros encontros intereclesiais, um bispo confessou: “O que mais me impressionou aqui foi ouvir lavradores e índios apresentarem os bispos, dizendo: ‘Tomás é o bispo da minha Igreja’. E o outro completava: ‘Apresento a vocês Pedro Casaldáliga, pastor da minha Igreja’”. Aqueles lavradores que tinham apresentado Tomás e Pedro como “bispos de suas Igrejas” eram homens inseridos nas lutas da terra e nas cooperativas e sindicatos de trabalhadores rurais. Não eram agentes de pastoral de paróquia – que, aliás, nem existia em São Félix do Araguaia. A Igreja era realmente uma “Igreja em saída”. E o sair não tinha sido na forma de uma Igreja em passeio, que sai e volta ao lugar de onde saiu. Era a Igreja seguidora dos passos de Jesus, que afirmou: “O Filho do Homem não tem nem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20). No Centro de Encontros de São Félix do Araguaia, ainda sem luz elétrica e no dormitório comum, muitas vezes, Pedro perguntava: “Em qual cama vou dormir?”

No livro em que nos presenteia com o testemunho da vida de Pedro Casaldáliga, o amigo Pedro Ribeiro de Oliveira conta que, há poucos anos, o reencontrou em sua casa em São Félix do Araguaia, já muito fragilizado pelo Parkinson. Este é seu testemunho:

Depois do café, aproveitei para uma conversa a sós […]. Falei que seu verso “queremos terra na Terra, já temos terra no céu” é o fundamento da minha espiritualidade político-libertadora. Ele explicou que a inspiração lhe veio quando, junto com os posseiros, resistia a uma ação armada de intimidação. Na falta de papel, escreveu o poema a canivete num tronco de bananeira. A conversa seguiu e aproveitei para perguntar-lhe como definir a missão evangelizadora. A resposta veio de pronto: “Nossa missão é transmitir ressurreição”. Assim mesmo. Tenho certeza. Ele não usou o verbo “anunciar” nem reduziu a ressurreição com o artigo que a restringiria a Jesus. É isso que ele fez durante toda a vida e que nos pede que façamos: levar ressurreição aonde a morte agora está vencendo. Afinal, como diz outro verso dele, somos “combatentes derrotados de uma causa invencível” (OLIVEIRA, 2018, p. 174).

Queridos irmãos e irmãs, essa é a profecia que recebemos de Pedro Casaldáliga como missão comum para todos nós. Como me disse dom Helder Câmara em nossa última conversa nesta terra: “Não deixe cair a profecia”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASALDÁLIGA, Pedro. Orações da caminhada. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

OLIVEIRA, Pedro Ribeiro. Fé e política: uma trajetória. Vila Velha: Quatro Irmãos, 2018.

PODESTÁ, Clelia Luro. El mártir que no mataron. Buenos Ayres: Nueva Utopia, 2000.

TOJEIRA, José María. El martirio ayer y hoy: testimonio radical de fe y justicia. San Salvador: UCA, 2005.

Marcelo Barros

é monge beneditino, biblista e escritor. Assessora, em todo o Brasil, as comunidades eclesiais de base e movimentos sociais como o MST. Tem 57 livros publicados no Brasil e alguns outros no exterior. Seu livro mais recente é Teologias da libertação para os nossos dias, Ed. Vozes, 2019. Publicou pela Paulus, Evangelho e Instituição, e Dom Helder Câmara – Profeta para os nossos dias. E-mail: [email protected]