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Publicado em novembro-dezembro de 2020 - ano 61 - número 336 - pág.: 21-25

PEQUENAS COMUNIDADES MISSIONÁRIAS: Uma saída pastoral para a Igreja pós-pandemia?

Por Normando Martins Leite Filho

CONTEXTO ECLESIAL

Desde março de 2020, tivemos no mundo uma situação nova, com a qual a Igreja católica teve de se defrontar: a pandemia da Covid-19. A partir do momento em que foi decretada a pandemia pela Organização Mundial da Saúde, os órgãos governamentais adotaram protocolos rígidos de distanciamento social, impedindo a aglomeração de pessoas e exigindo-lhes que permanecessem em casa. Essas medidas impactaram diretamente a vida nas paróquias e comunidades, com a suspensão de celebrações abertas à presença de todos, assim como das reuniões e encontros, para evitar a aglomeração de pessoas e a contaminação que poderia ocorrer nesses espaços. Passados alguns meses, em certos países já se começou a promover uma flexibilização gradual do distanciamento social, com a liberação de celebrações com número restrito de pessoas e com cuidados de proteção e higienização rígidos. Diante dessa nova situação, a Igreja católica vê-se desafiada a continuar seu trabalho de evangelização. Por isso, cabe perguntar: como organizar a vida paroquial das comunidades depois da pandemia?

1. A IGREJA EM SAÍDA MISSIONÁRIA

Várias experiências da Igreja em sua história bimilenar, que remontam às primeiras comunidades cristãs, poderiam oferecer uma saída para esse problema e, ao mesmo tempo, promover uma revitalização dos próprios processos eclesiais. Com um discernimento pastoral espetacular, o papa Francisco já tinha identificado essa necessidade na sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho). Olhando para o Documento de Aparecida, vislumbrou o desafio de sair de uma pastoral de conservação para uma pastoral em chave missionária (DAp 370); a necessidade de repensar as estruturas das comunidades eclesiais e da própria Igreja segundo outro ponto de referência missionário.

Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de “saída” e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade (FRANCISCO, 2019, p. 25).

A própria paróquia, a estrutura eclesial que tem congregado a vida comunitária, pode assumir novos formatos, adaptando-se à dinâmica da vida cotidiana, às exigências do tempo presente, em que homens e mulheres vivem e convivem diante da sua realidade específica, clamando pela presença da Igreja.

A paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque possui uma grande plasticidade, pode assumir formas muito diferentes que requerem a docilidade e a criatividade missionária do Pastor e da comunidade. Embora não seja certamente a única instituição evangelizadora, se for capaz de se reformar e adaptar constantemente, continuará a ser “a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas” (FRANCISCO, 2019, p. 26).

Portanto, uma Igreja verdadeiramente missionária, em saída, como preconiza o papa, deve rever sua caminhada, abrir-se à ação do Espírito, permitindo que surjam novas formas pelas quais se evangeliza nos tempos atuais e anunciando a mensagem do Evangelho a todas as pessoas. Nesse sentido, o papa recorda a riqueza das experiências vindas das próprias comunidades que, abertas ao discernimento da presença e atuação do Espírito Santo, inauguram novas formas de viver como comunidades cristãs.

As outras instituições eclesiais, comunidades de base e pequenas comunidades, movimentos e outras formas de associação são uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes e setores. Frequentemente trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja. Mas é muito salutar que não percam o contato com esta realidade muito rica da paróquia local e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da Igreja particular. Esta integração evitará que fiquem só com uma parte do Evangelho e da Igreja, ou que se transformem em nômades sem raízes (FRANCISCO, 2019, p. 27).

2. AS COMUNIDADES MISSIONÁRIAS

A Igreja no Brasil, representada pela CNBB, observou atentamente os princípios emanados dos documentos do magistério e atualizou seu plano pastoral, propondo um caminho que contemple as novas diretrizes da evangelização. No Documento 109 da CNBB, emergem as diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil no período de 2019 a 2023. O Documento 109 recolhe as vivências e reflexões dos bispos em diálogo com padres, diáconos, pastorais e todos os leigos e leigas que colaboram no processo de evangelização nacional. Nesse documento encontramos uma novidade que poderá contribuir como possível alternativa para os tempos pós-pandemia que se avizinham: as comunidades eclesiais missionárias.

A vida fraterna em pequenas comunidades – abertas, acolhedoras, misericordiosas, de intensa vida evangélica – constitui fundamento sólido para o testemunho da fé. […] Pequenas comunidades oferecem um ambiente humano de proximidade e confiança que favorece a partilha de experiências, a ajuda mútua e a inserção concreta nas mais variadas situações (CNBB, 2019, p. 25; 29).

Essas pequenas comunidades missionárias podem servir, neste tempo de pandemia, para congregar as pessoas de acordo com o critério de proximidade, alargando o campo de atuação da Igreja e propiciando uma evangelização mais perto de cada pessoa. Assim, a nova organização eclesial nessas comunidades menores visa garantir que não sejam desrespeitados os critérios sanitários para conter o vírus e, ao mesmo tempo, permite que a Igreja possa estar mais próxima de suas ovelhas. Uma possibilidade de implementá-las deve levar em conta a realidade local de cada paróquia, com suas diversas comunidades. Devem-se ouvir as lideranças, as pastorais, os ministros ordenados e leigos, enfim, todos os envolvidos com a ação evangelizadora paroquial.

De maneira esquemática, apresentamos a seguir uma das possíveis formas ou estratégias que podem nortear a ideia de formar pequenas comunidades missionárias no âmbito paroquial. Trata-se de pequeno esboço no qual se apontam alguns princípios, pensando muito mais na estruturação mais ampla do que nas especificidades, normalmente a cargo das múltiplas realidades existentes na (arqui)diocese. A tabela, de nossa autoria, detalha as linhas gerais da proposta, apenas sugerindo alguns caminhos, como opções para esse trabalho. As comunidades podem evidentemente escolher outras abordagens que lhes sejam mais adequadas.

PROPOSTA DE DIVISÃO DE PEQUENAS COMUNIDADES MISSIONÁRIAS

PARÓQUIA

Geralmente é organizada em várias comunidades eclesiais. Continua a existir normalmente, recebendo novas comunidades menores.

COMUNIDADES ECLESIAIS PAROQUIAIS

Serão o ponto de partida para as novas comunidades. Com base nessas comunidades eclesiais, propõe-se a subdivisão em pequenas comunidades missionárias. Pode-se usar a referência das comunidades de base, tendo os círculos bíblicos como alicerce dessas novas comunidades menores.

PEQUENAS COMUNIDADES MISSIONÁRIAS

Organizadas com base em algumas famílias ou no grupo de círculo bíblico, se for o caso. Reúnem-se para celebrar, organizando a vida comunitária naquele pequeno núcleo de fé. Pressupõem a coordenação, a equipe de celebração, de dízimo, de catequese e outros serviços. Podem reunir-se nas casas, praças ou em um espaço alugado ou cedido. Estão ligadas às comunidades eclesiais de origem, mantendo uma relação de comunhão com a paróquia. Por reunirem até 20 ou 30 pessoas, favorecem a proximidade e um vínculo mais próximo.

VANTAGENS DESSAS NOVAS COMUNIDADES

Criam laços e proximidade. Nesse novo formato, pode-se viver a fé de maneira mais próxima e estimula-se uma coerência maior entre fé e vida, com todos se conhecendo e sabendo de suas dificuldades e desafios. São espaços para formação bíblica, litúrgica e pastoral. Oferecem uma estrutura eclesial mais simples que favorece o encontro e a vivência da fé.

O que importa, efetivamente, é que cada comunidade eclesial possa descobrir como fazer acontecer esse novo modelo de organização das comunidades. A sugestão oferecida parte da experiência das comunidades de base. Partimos do princípio de que, em tais comunidades, essa dinâmica já está presente em seu modo de ser, em seu fazer cotidiano, marcado por relações próximas. Os grupos de círculos bíblicos já cumprem o papel de serem polos aglutinadores de pequenas comunidades. Conhecemos algumas comunidades eclesiais nascidas de um grupo de pessoas que se reuniam nos círculos bíblicos para oração e para a reflexão sobre a Palavra de Deus. Daí surgiram novas comunidades, originárias desses grupos, as quais foram assumindo seu papel na paróquia, numa perspectiva de rede de comunidades.

3. UM CAMINHO

Essa proposta cabe não somente para a organização da paróquia, mas também pode ser adaptada para outros grupos, pastorais e movimentos. Por exemplo, temos, na proposta pastoral do diaconato permanente na arquidiocese de Belo Horizonte, um projeto que visa à constituição de pequenas comunidades de vivência diaconal. A ideia é que tais fraternidades diaconais congreguem diáconos, esposas e vocacionados numa forania ou cidade, reunindo-se em pequenos grupos para oração, reflexão, formação e convivência. Esse projeto foi iniciado logo após serem baixadas as regulamentações sanitárias que permitiram a saída da situação de distanciamento social, em vigor no primeiro semestre de 2020. Portanto, são várias as possibilidades que podem estar no bojo da proposta de pequenas comunidades missionárias. Por fim, fica o chamado para que cada comunidade ou grupo conheçam e discutam essa proposta e possam encontrar o caminho mais adequado para que cada realidade particular realize a evangelização da melhor maneira possível nestes tempos. O que deve ficar em relevo, sobretudo, é o desejo de não desistir nem desaminar, tendo presente que o que nos espera como Igreja que somos, peregrina nesta terra, é o encontro com a própria humanidade, para com ela anunciar o Cristo ressuscitado. O desafio final nos é dado pelo Evangelho de Lucas, que nos instiga a continuar o caminho: “Não tenha medo, pequeno rebanho, porque o Pai de vocês tem prazer em dar-lhes o Reino” (Lc 12,32).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bíblia. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2014.

CELAM. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe (DAp). São Paulo: Paulus, 2008.

CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2019-2023. Brasília, DF: CNBB, 2019.

Francisco, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus, 2019.

Normando Martins Leite Filho

é professor universitário no Centro Universitário UNA, mestre em Educação e teólogo, candidato ao diaconato permanente na arquidiocese de Belo Horizonte, membro da Equipe Regional de Liturgia da RENSA/arquidiocese de BH. Entre outros livros, é autor de O individualismo na pós-modernidade, publicado em 2012 pela CRV. E-mail: [email protected]