Carta do editor

Julho-Agosto de 2020

A Mística do cotidiano como experiência autêntica do Deus da Vida

Prezadas irmãs, prezados irmãos, graça e paz!

“Pra toda parte que eu óio, vejo um verso se bulí.” O verso aqui é do poeta Patativa do Assaré, declamando o sertão. Uma expressão aparentemente simples revela um olhar sensível, capaz de adentrar o profundo, a complexidade e o contraditório da vida. Um olhar fino, porque contém o que há de mais fino no mundo: o sentimento. Ver um verso se bulindo em toda parte é ter nos olhos a esperança, é fazer valer o brilho do olhar, e dessa luminosidade adentrar o fenômeno: a flor que desabrocha, a formiguinha, o pássaro, a criança que sorri, o andar trôpego do idoso, o crepúsculo. A sensibilidade poética faz a existência toda valer a pena com tão somente o soprar do vento, a nuvem que se desfia nos céus, o luar ou o ladrar do discreto vira-lata. O bulício aponta para a vida que está em movimento. Nesse movimento, a vida pulsa naquilo que parece óbvio e para além dele. A vida simples, em sua cotidianidade, também marcada pelo conflito, pode estar arraigada de poesia.

Esse arraigamento permeia também a dureza da vida, naquilo que os místicos chamam de a noite escura ou a aridez da alma. A inspiração poética é como água de cacimba: brota leve e boa para saciar a sede, refrescar a garganta já rouca, quando embarga de saudade ou solidão. Poesia é arte, e como dizia Ferreira Gullar: “a arte existe porque a vida não basta”. A vida que não basta é aquela da rotina e dos protocolos frios.

Esta edição de Vida Pastoral não é exatamente sobre poesia, mas é sobre isso também. A verdadeira mística pousa e faz voo no terreno da poesia, transcende. Que se saboreie a obra de Santa Teresa d’Ávila: “vivo sem em mim viver / e tão alta a vida espero, / que morro de não morrer”. Que se degustem poemas de São João da Cruz: “À medida que a noite se aproxima, / faz-me de novo lembrar / que a alma que caminha no amor, / não descansa nem se cansa”.

Este número da revista quer discorrer sobre o aspecto da mística para a missão. O primeiro artigo, de André Luiz Boccato de Almeida e Francisco Galvão, discute o conceito de mística, relacionando-o ao papel do comunicador, e sua relação com a mídia. Aborda a importância do silêncio, da oração e da reflexão para uma comunicação autêntica. Na sequência, Douglas Alves Fontes apresenta o tema da mística na perspectiva da vida presbiteral. Com base em textos da Escritura e do magistério e em poesias de dom Hélder Câmara, o autor reflete sobre a figura daquele que permanece sendo a ponte entre Deus e a humanidade. Edson Oriolo, por sua vez, parte dos gestos simbólicos do papa Francisco e lança um olhar profundo para a sua eclesiologia, que subjaz nesses gestos, mas não se reduz a eles, no sentido de adentrar a compreensão sobre o sacerdócio na perspectiva do bispo de Roma. Por fim, Faustino Teixeira observa os aspectos místicos ou “roteiro de Deus”, o “pedaço do infinito” na obra clássica de Guimarães Rosa – Grande sertão: veredas –, buscando sobretudo captar o traço espiritual de Riobaldo Tatarana em suas andanças pelo sertão.

Para iluminar nossa reflexão sobre a Palavra de Deus, temos os Roteiros homiléticos, desta vez com a preciosa colaboração de Ir. Rita Gomes.

Desejamos a todos que a missão de cada um seja permeada da mística do Evangelho, de modo que não nos falte entusiasmo para semear o bem, que gera a justiça e a paz.

Boa leitura!

Pe. Antonio Iraildo Alves de Brito, ssp
Editor