Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2023 - ano 64 - número 350 - pp.: Edição Especial

06 de abril – Ceia do Senhor

Por Celso Loraschi*

Celebração: memória e compromisso

I. INTRODUÇÃO GERAL

O povo de Israel faz memória dos atos libertadores de Deus ao longo de sua história. A Páscoa israelita é celebração da memória do grande acontecimento do êxodo. Deus suscita o movimento dos escravizados e os põe em caminhada rumo a uma terra sem males. A graça divina está ligada à disposição humana. Cada família, unida à comunidade, celebra a libertação num espírito de caminhada e compromisso (I leitura). As comunidades cristãs reúnem-se frequentemente para celebrar a memória de Jesus morto e ressuscitado por meio da ceia sagrada. Esta deve refletir um relacionamento comunitário baseado na solidariedade, na justiça e na fraternidade. A Eucaristia é a grande graça que proporciona comunhão com o Senhor e com o próximo (II leitura). Jesus, o Mestre e o Senhor, deixou o exemplo de serviço humilde como caminho de uma sociedade fraterna. Os discípulos devem praticar o que Jesus ensinou, lavando os pés uns dos outros (Evangelho). Nós, como seus seguidores, não podemos quebrar a corrente do amor que nos une uns aos outros. Como fez Jesus, somos convidados a entregar humildemente nossa vida, promovendo as condições de vida digna para todos.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Ex 12,1-8.11-14)

O relato da celebração da Páscoa israelita está inserido no contexto do movimento de libertação da escravidão no Egito. É a atualização de um ritual antigo, realizado entre os pastores para reconciliar-se com a divindade, afastar os maus espíritos e, assim, assegurar o bem-estar das famílias com seus rebanhos. A experiência da libertação dos escravos no Egito torna-se a marca registrada de sua própria identidade. O povo de Israel nasceu com o êxodo. Diversos grupos de diferentes origens unem-se ao redor de um projeto de liberdade e autonomia. Pouco a pouco, vai se firmando a consciência de pertença ao “povo de Deus”. De fato, somente sob a intervenção divina foi possível a caminhada de libertação. Essa certeza atravessa as gerações, conforme constatamos nos diversos escritos do Primeiro Testamento.

A celebração da Páscoa foi sendo adotada por Israel como memória exemplar do acontecimento fundador do êxodo. Ela atualiza a presença de Deus na história do povo. É presença atenta e atuante na defesa da vida das pessoas oprimidas. Celebrar a memória do êxodo, portanto, significa reavivar a consciência de ser um povo abençoado. Significa reanimar o povo para a fidelidade à aliança com Deus, que é companheiro na caminhada. É comprometer-se, no presente, com o processo de libertação. A Páscoa, portanto, é memória subversiva.

Unindo elementos antigos e novos, a narrativa da Páscoa enfatiza a necessidade da celebração por ordem divina, num dia preciso, no “primeiro mês do ano” (v. 2). Corresponde ao início da primavera, tempo em que desabrocha a vida nova. O cordeiro é essencial nessa celebração: é a oferta de cada família e de toda a comunidade, em reconhecimento à bondade divina. Por isso, é escolhido e preparado um cordeiro sem defeito, para ser imolado. A integridade física do animal é o que de melhor o povo pode ofertar a Deus, como sinal de gratidão por tudo o que ele oferece.

O sangue para marcar a porta da casa tem o sentido de garantia de vida para as pessoas que nela habitam. É um povo eleito, que vive sob a proteção de Deus. Não será atingido pela última praga, ou seja, pela morte dos primogênitos (a narrativa da Páscoa está situada entre a penúltima e a última praga). Assim, o povo terá um futuro garantido, sob as bênçãos divinas.

A refeição é feita num clima de urgência – rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão –, atualizando assim a movimentação do povo escravizado em vista de sua libertação. Com ervas amargas, para lembrar a vida difícil do povo enquanto escravo no Egito; com pães ázimos, pois a pressa não permite que o fermento possa levedar a massa. O pão puro é símbolo de fidelidade ao projeto de libertação, que inclui a caminhada pelo deserto, animada pelo sonho da Terra Prometida. Como se vê, o ritual da Páscoa é memória ligada ao compromisso de caminhar rumo à conquista de um mundo de liberdade, paz e dignidade.

2. II leitura (1Cor 11,23-26)

O texto da segunda leitura corresponde ao relato mais antigo da última ceia de Jesus. São Paulo revela ser a transmissão do que ele mesmo recebeu do Senhor: trata-se da tradição dos apóstolos, a qual, por serem eles testemunhas oculares de Jesus histórico, é respeitada com veneração.

A ceia celebrada pelas comunidades cristãs primitivas não seguia fórmulas fixas e uniformes. De modo comum, era realizada em forma de refeição, ocasião em que se fazia – comemorando sua entrega – a memória de Jesus, cujo corpo é representado pelo pão e pelo vinho. É celebração da Nova Aliança inaugurada por Jesus, da qual os cristãos se tornam participantes.

No texto, percebemos os elementos essenciais da Eucaristia. Jesus a instituiu como memória de sua morte. É sacrifício (= ação sagrada), dom total de Jesus, com consciência e liberdade, pela vida do mundo. É sustento para os que dela participam comprometidos com a vivência do amor, até que Jesus venha.

É bom não esquecer o contexto imediato em que o texto está inserido (1Cor 11,17-24). Paulo pronuncia-se em forma de reprimenda. A Igreja de Corinto reunia-se, a fim de participar da ceia, sem o principal requisito para a celebração: a solidariedade com os pobres. A divisão existente na comunidade revelava uma conduta egoísta e discriminatória. A participação no mesmo pão e no mesmo cálice é comunhão com o corpo do Senhor, a qual não pode estar dissociada da comunhão com os irmãos, ainda mais com o agravante de serem pessoas necessitadas.

3. Evangelho (Jo 13,1-15)

O Evangelho de João não relata a última ceia de Jesus, como fazem Paulo e os Evangelhos sinóticos. Supõe que as comunidades já a conheçam. O que ele faz é introduzir um gesto original de Jesus após a ceia: o lava-pés. Atenta para o fato de Jesus estar ciente da chegada da “hora”, o momento decisivo de sua missão. É seu êxodo definitivo. Pela cruz, deverá deixar este mundo e ir para o Pai. Os discípulos, porém, continuarão nele. Jesus os ama até o fim e contará com eles para que sua obra tenha prosseguimento.

O gesto do lava-pés é, por excelência, o modelo de comportamento que os seguidores de Jesus deverão seguir. O Mestre e Senhor se faz servo dos seus discípulos, também daquele que já consentira em traí-lo. Seu amor é incondicional, como revelara em toda a sua missão. Por isso, rompera com todas as instituições que discriminam e matam. Chegou sua “hora”, e ele a acolhe com plena consciência e responsabilidade. Entrega sua vida não arrastado pelas circunstâncias, mas na liberdade, demonstrando seu amor até o extremo, coerente com sua opção de fidelidade ao plano de salvação de Deus.

O lava-pés simboliza o amor como doação plena. Dá-se em forma de serviço. Caem por terra todo espírito de poder, a vingança e toda espécie de violência. Jesus inverte os valores dominantes na sociedade. Constitui nova comunidade humana, cuja nota característica é o serviço mútuo. Pedro, o líder do grupo, num primeiro momento não consegue entender. É representante dos que ainda procuram um Messias triunfalista, distante das realidades conflituosas deste mundo. O seguimento de Jesus, porém, efetiva-se pelo caminho da “cozinha” e do “avental”. Tudo o que simboliza o lava-pés, cuja síntese é o amor-serviço, leva à participação na mesma vida de Jesus. Pedro entenderá o verdadeiro significado desse gesto após a morte do Mestre. Por causa de sua opção pelo seguimento de Jesus, será também perseguido e partilhará do mesmo destino dele.

A comunidade cristã não pode caminhar na desigualdade. Não é uma comunidade de chefes e súditos, e sim de servidores. A pergunta de Jesus após o lava-pés transforma-se em permanente desafio para todos nós: “Vocês compreenderam o que acabei de fazer? [...] Vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz” (v. 12.15).

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

– Celebrar a Páscoa é pôr-se em caminhada. O povo de Israel reconhece a presença libertadora de Deus na medida em que se organiza para libertar-se da opressão. Cada família é chamada a entrar no grande mutirão pela liberdade e pela vida. Cada pessoa é chamada a participar do êxodo, caminho para uma terra de paz e justiça. A fraternidade depende do empenho de cada um de nós. O povo de Deus tinha pressa para libertar-se. Hoje, também, é urgente a necessidade de nos unirmos, em busca de vida digna para todos, com trabalho, justiça social, sem exploração nem fome. O Tríduo Pascal é tempo propício de reconhecer a presença salvadora de Deus em nosso meio e de renovar, por meio de gestos concretos, nossa fidelidade ao seu plano de vida digna para todos os povos, habitantes desta casa comum chamada Terra.

– Celebramos hoje a instituição da Eucaristia. É o próprio Jesus que se doa inteiramente para a vida do mundo. Participar da Eucaristia é acolher, com gratidão, a grande graça de Jesus, que nos alimenta com seu próprio corpo e sangue. É comprometer-nos a viver na comunhão com Deus e com o próximo. É responsabilizar-nos pela administração justa dos bens. Participarmos juntos da mesma mesa sagrada é nos reconhecermos como irmãos. São Paulo lembra aos cristãos de Corinto e a nós que Eucaristia e solidariedade estão vinculadas. O amor efetivo às pessoas que sofrem é o requisito fundamental para que a Eucaristia se torne sacramento de salvação.

– Jesus é o modelo do verdadeiro amor. Ele, antes de sua morte, institui a nova comunidade humana, representada pelos discípulos. Pelo gesto do lava-pés, revela-lhe o caminho que garante as relações de igualdade e justiça: o serviço mútuo. O Filho de Deus se faz servidor. Somos chamados a viver como seus discípulos missionários. Jesus nos chama deste modo: “Vocês dizem que eu sou o Mestre e o Senhor. E vocês têm razão... Vocês devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz”. Como isso se concretiza no cotidiano da vida de cada um de nós?

Celso Loraschi*

*é mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos.