Roteiros homiléticos

Publicado em maio-junho de 2023 - ano 64 - número 351 - pp.: 51-54

08 de junho – Corpo e Sangue de Cristo

Por Marcus Mareano*

Comer o corpo e beber o sangue de Cristo

I. INTRODUÇÃO GERAL
A solenidade de Corpus Christi ocorre na quinta-feira após o domingo seguinte a Pentecostes. Embora a instituição da Eucaristia seja celebrada no início do Tríduo Pascal (na Quinta-feira Santa), hoje se recorda, de modo semelhante, o mesmo mistério. A mensagem da nossa redenção se mantém nas festas celebradas sucessivamente à Páscoa. A primeira leitura (Dt 8,2-3.14b-16a) convida o povo de Israel a um olhar retrospectivo sobre a própria história para reconhecer os cuidados de Deus no deserto. Ele guiou e sustentou seus eleitos rumo à Terra Prometida. Paulo, na segunda leitura (1Cor 10,16-17), explicita o significado do pão e do vinho na ceia eucarística: o corpo e sangue do Senhor para formar unidade. No Evangelho (Jo 6,51-58), Jesus esclarece o sentido do pão dado por ele, relacionando-o consigo mesmo. Ele é o pão vivo descido do céu (Jo 6,51). Tradicionalmente, esta liturgia se realiza em meio a grandes pompas, honras, cânticos e suntuosas procissões. Belos tapetes são confeccionados nas ruas para que o cortejo, carregando o ostensório com o corpo de Cristo, passe por ali. Todavia, é igualmente importante uma procissão interna, deixando o corpo de Cristo circular por nosso corpo, para que este fique mais “cristificado”. Somos convidados a ser ostensórios vivos que portam a presença de Cristo por onde passamos, manifestando seu amor no mundo.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Dt 8,2-3.14b-16a)
A leitura se inicia com a indicação para recordar o passado, a fim de perceber os feitos de Deus na história do povo de Israel. Os acontecimentos transcorridos atestam quanto Deus conduziu seu povo, cuidou dele, alimentou-o no deserto e lhe ensinou que não se vive apenas de pão, mas de tudo que sai da boca do Senhor (v. 3). A imagem do deserto representa também a pedagogia de Deus com seu povo, que não consiste em fazer o povo sofrer, passando por diferentes penúrias. A travessia do êxodo é período de transformação, no qual aquele bando de gente se constitui o povo de Deus e reconhece, em meio a tudo o que passa, o sustento de Deus, fazendo jorrar água da pedra e dando-lhe um alimento descido do céu para que se satisfaça (v. 16a). Esse olhar retrospectivo também serve para nossa história pessoal. Contemplando-a, verificamos a ternura de Deus nos diferentes processos de nossa vida. Da mesma forma que alimentou e sustentou seu povo no deserto, ele cuida de nós para nos mantermos firmes e perseverantes em seus caminhos. A Eucaristia celebrada se torna momento dessa memória agradecida e sustento para o porvir.
2. II leitura (1Cor 10,16-17)
A leitura se insere em um conjunto de orientações de Paulo (1Cor 8-10) para os coríntios se conscientizarem da nova maneira de viver, conformados a Cristo. Muitos membros da comunidade queriam continuar com práticas antigas, do tempo em que pertenciam ao paganismo. Alguns coríntios insistiam em se alimentar de carnes sacrificadas aos ídolos, vendidas nos açougues públicos, e em participar de ritos e banquetes pagãos (1Cor 8,1). Os imaturos na fé, recém-convertidos, viam nesses atos uma sedução para recair na idolatria, enquanto os mais antigos na comunidade se preocupavam com a satisfação pessoal e não se importavam com o escândalo que causavam aos mais débeis. As celebrações eucarísticas também manifestavam as rupturas comunitárias e a incompreensão daquela ceia. Havia confusão sobre o sentido eucarístico daquela reunião, que se tornara momento de consumação de comidas e bebidas por parte dos ricos, com exclusão dos mais pobres (1Cor 11,17-22). O problema não era tanto o rito eucarístico, mas a consequência efetiva da celebração, que deveria ser a ágape fraterna. A identidade religiosa se relacionava com a identidade social, de modo que Paulo exigia, na aceitação da nova fé, uma mudança também na conduta, com o abandono de costumes tradicionais. A fé em Cristo não era conciliável com as variadas práticas pagãs. Os versículos da leitura propõem duas interrogações importantes para a compreensão da Eucaristia. O vinho abençoado não é comunhão com o sangue do Senhor? E o pão partilhado não é comunhão com o corpo do Senhor (v. 16)? Paulo quer ensinar que o pão e o vinho, alimentos da celebração, não podem ser confundidos com qualquer coisa, mas devem ser compreendidos como o que são, na realidade: o corpo e sangue do Senhor, isto é, sua história humana, sua carne, sua vida, seus sonhos, seu projeto etc. Alimentar-se na Eucaristia é acolher o mistério de Cristo e comprometer-se com ele. No v. 17, Paulo demonstra outro aspecto da Eucaristia: a unidade. Um único pão, tornado corpo de Cristo, é repartido para todos, e todos se tornam o corpo de Cristo (At 2,42; 1Cor 12,27; Rm 12,5). Portanto, entre os coríntios não deveria haver divisões, exclusões ou acepções de pessoas. A Eucaristia faz a “comum-unidade”!
3. Evangelho (Jo 6,51-58)
O Evangelho desta solenidade não repete a cena da instituição da Eucaristia. Lemos uma catequese eucarística que se desenrola em Cafarnaum (Jo 6,24-25), por consequência da multiplicação dos pães (Jo 6,1-14). O trecho bíblico em questão nos revela que a união ativa do discípulo com Jesus se expressa, doravante, mediante a metáfora do comer e do beber. Jesus sintetiza seu ensinamento, explicitando qual alimento ele oferece. O pão vivo que desceu do céu é sua carne para a vida do mundo (v. 51). O sermão poderia se concluir aqui. Antes (Jo 6,35-50), Jesus falava do pão que o Pai daria; agora, ele explicita seu anúncio, falando do dom de sua vida (sangue e carne) na cruz. Exatamente nesse momento, Jesus será, mais do que nunca, mensagem e Palavra do Pai, Palavra de amor até o fim. Evidentemente, os judeus não entendem seu ensinamento (v. 52) e murmuram contra ele, como os antepassados no deserto (Jo 6,41.43; Ex 16,2; 17,3; Nm 11,1; 14,27). Jesus não ameniza suas palavras nem diminui a força de sua mensagem por causa da incompreensão de alguns. Ele explica que quem não come a carne do Filho do Homem e não bebe seu sangue não tem vida em si. Em contrapartida, quem come (literalmente “mastiga”) sua carne e bebe seu sangue tem a vida eterna oferecida por ele e participará da ressurreição do último dia (v. 53- 54). Portanto, aquelas pessoas que celebram o memorial do corpo e sangue do Senhor acolhem a eternidade por meio do comer o pão e beber o vinho. Jesus permanece nelas e elas com Jesus (v. 56- 57). A palavra “carne”, preciosa para João (1,14), designa a realidade humana com suas possibilidades e fraquezas (Jo 3,6; 8,15). A humanidade de Jesus, sua existência terrena e o mistério de sua vida são oferecidos para que quem nele crê possua a vida eterna. É preciso participar da comunidade reunida em torno do sacramento, refeição material na qual Jesus se torna presente pelo dom de sua vida humana (sua carne) e de sua força vital (seu sangue derramado na cruz). Optar por Jesus não é questão meramente individual, mas também comunitária. Ninguém é fiel sozinho. Quem se alimenta do que Jesus oferece tem a vida dele em si. Por fim, a fala de Jesus se conclui com um eco do que foi lido nos v. 48-51. Jesus é o pão que desceu do céu. Não é como aquele pão que os antepassados comeram. Eles morreram! O que come deste pão viverá para sempre (v. 58). A passagem se encerra com a afirmação de que quem crê em Jesus tem a vida eterna (Jo 3,15.16.36). Ele é o pão da vida. Os antepassados dos interlocutores de Jesus comeram o maná no deserto e morreram por lá. O maná saciava apenas a matéria, que se deteriora com o tempo. Jesus é alimento que vem de Deus, pois desceu do céu para gerar vida eterna em quem dele se aproxima. Ele não apenas dá a vida, mas também possui a vida em si mesmo (Jo 1,4; 5,26). A Eucaristia dada por Jesus e celebrada por nós é o memorial dessa entrega de si que culminou na cruz. Cada vez que comungamos do pão “eucaristizado”, estamos acolhendo o dom de sua vida, entregue por amor a cada um de nós. Esse alimento gera a vida eterna em nós e nos conduz à eternidade definitiva, para a qual fomos criados.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Os cristãos que celebravam a Eucaristia se sentiam impelidos a assumir o que o sacramento significava, conscientes de que recordavam o que Jesus tinha sido e comprometendo-se a viver como ele viveu. É preciso sacudir nossa rotina e mediocridade. Não podemos comungar com Cristo na intimidade de nosso coração sem comungar com os irmãos e irmãs que sofrem. Não podemos compartilhar o pão eucarístico ignorando a fome de milhões de seres humanos, privados de pão e de justiça. É uma ofensa darmos a paz uns aos outros ao mesmo tempo que somos canais propagadores de ódio, preconceito e intolerância. É um engano manifestar que estamos em comunhão junto à mesa quando, na realidade, somos mediadores da “cultura da indiferença”. Participar da Eucaristia não pode ser mero cumprimento de preceito religioso, mas deve ser comprometimento com o que se celebra. Recebemos o corpo e sangue do Senhor para nos tornarmos sua presença no mundo atual. Assim como o Senhor amou até o fim, comungamos para amar com esse amor com o qual somos amados.

Marcus Mareano*

*Pe. Marcus Mareano é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece); bacharel e mestre
em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); doutor em Teologia Bíblica com dupla
diplomação: pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven); professor adjunto de
Teologia na PUC-MG e de disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador
paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]