Roteiros homiléticos

Publicado em maio-junho de 2023 - ano 64 - número 351 - pp.: 54-58

11 de junho – 10º domingo do Tempo Comum

Por Marcus Mareano*

Deus quer misericórdia

I. INTRODUÇÃO GERAL
Passadas as celebrações do tempo pascal e das solenidades seguintes, retomamos os domingos do Tempo Comum e o itinerário formativo da humanidade de Jesus. É tempo de seguimento, de amadurecimento da experiência de fé e de aprofundamento no conhecimento de Cristo. As leituras desta liturgia apresentam a preferência de Deus pelos pecadores. A profecia de Oseias declara que a misericórdia e o conhecimento de Deus são mais importantes do que sacrifícios e holocaustos. Paulo, na segunda leitura, argumenta que Abraão foi justificado pela fé e por confiar nas promessas de Deus. O Evangelho narra Jesus rebatendo a oposição dos fariseus por ele tomar refeição com os publicanos e pecadores. Deus se importa com quem mais precisa dele: os pecadores, os empobrecidos, os excluídos etc., pois quem se enche de si mesmo e das coisas não dá espaço ao amor de Deus. Mais do que com atividades religiosas e práticas de piedade, cabe nos comprometermos com a autenticidade da nossa fé, que se manifesta na prática da misericórdia. Assim como Deus age com compaixão por nós, podemos agir da mesma maneira uns com os outros.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Os 6,3-6)
O profeta Oseias atuou durante o reinado de Jeroboão II (782-753 a.C.), último grande rei (do Reino do Norte) antes que Israel caísse nas mãos dos assírios (2Rs 17,1-23). Era uma época de paz política (dinastia de Jeú – 2Rs 14,23-17,23), de prosperidade material e de decadência religiosa. O texto de Oseias se refere à época posterior a Jeroboão II e reflete a instabilidade política nas últimas décadas do Reino do Norte. O trecho selecionado para a primeira leitura é um convite ao retorno ao Senhor, pois o povo tinha se desviado e praticado a idolatria. A passagem se inicia com um apelo ao conhecimento de Deus, que significa experiência e relação com o Senhor, pois ele agirá certamente como a aurora ou como a chuva em terra seca (v. 3). Em contrapartida ao certo agir divino, o amor dos povos de Efraim e Judá era passageiro como um orvalho que seca ao nascer do sol (v. 4; 13,3). Por isso, Deus enviou sua palavra pelos profetas para fazer com que seu direito apareça como luz radiante entre os povos. Por fim, Deus expressa sua vontade (v. 6): mais hesed (amor, misericórdia, fidelidade à Aliança) e conhecimento de Deus do que sacrifício ritual e holocaustos. Conforme a profecia, agir de acordo com a Aliança significa mais do que cumprir os preceitos cultuais. É preciso um modo de vida pautado na misericórdia.
2. II leitura (Rm 4,18-25)
A carta aos Romanos foi escrita por Paulo durante sua terceira viagem missionária, quando ficou três meses na Grécia (Corinto), pouco antes de sua volta a Jerusalém em 57-58 d.C. Ela se inicia com o cabeçalho (praescriptum, 1,1-7) e termina com uma saudação de despedida (post-scriptum, 15,33), notícias de projetos pessoais (15,14-33), um bilhete de recomendação de Febe (16,1-2), saudações finais (16,3-23) e uma doxologia de conclusão (16,25-27). O corpo da carta, a seção central, divide-se em duas partes principais: a primeira de orientação mais dogmática (1,18-11,35), e a segunda de orientação mais exortativa ou parenética (12,1-15,13). O texto da segunda leitura se localiza na primeira parte da carta, quando Paulo conclui parte de sua explicação de que a justificação acontece por meio da fé em Jesus Cristo e não pelas obras da Lei, como pensavam os judeu-cristãos. Paulo acolhia na comunidade cristã todos aqueles que aderiam à fé em Jesus Cristo, sem que primeiro passassem pelo judaísmo. Isso suscitava a questão da necessidade do cumprimento da Lei (costumes judaicos) para alguém alcançar a “justificação” (a amizade com Deus). A resposta desenvolvida na carta aos Romanos consiste em que o ser humano é justificado pela fé em Jesus Cristo (Rm 3,28). Paulo rejeita, como uma atitude de orgulho inaceitável, as obras que contabilizamos para apresentá-las a Deus como mérito. A figura de Abraão, pai da fé, é evocada na argumentação do apóstolo (v. 18). Porque ele acreditou (Gn 15,5), tornou-se pai de muitos povos, apesar de sua velhice e da esterilidade da esposa Sara (Gn 17,1.19; Hb 11,11). Ele esperou contra toda esperança. Diante da promessa de Deus, Abraão não vacilou na fé por causa das aparentes impossibilidades. Ele glorificou a Deus, aguardando o agir divino e acolhendo o cumprimento da promessa em Isaac (Gn 18,14). Assim, os cristãos creem em Deus, que ressuscitou Jesus dentre os mortos para a justificação de quem crer. Portanto, o ser humano se justifica (torna-se amigo de Deus) por essa fé, não cumprindo os antigos preceitos mosaicos. Tanto na primeira quanto na segunda leitura, lemos a relativização da prática externa da Lei. Não adianta fazer inúmeras coisas “em nome da Lei” sem que
3. Evangelho (Mt 9,9-13)
A comunidade mateana era majoritariamente formada por cristãos convertidos do judaísmo. Alguns termos, a estrutura literária, a argumentação rabínica, a maneira de citar o Antigo Testamento e as categorias teológicas demonstram o caráter judaico de Mateus. Havia uma preocupação com a organização da vida em comunidade, distinguindo-se do judaísmo, que se reordenava após a destruição do templo. Os cristãos assistiram à Guerra Judaica (66-70 d.C.) e sabiam do que acontecera a Jerusalém. Aos poucos, as sinagogas vão excluindo os seguidores de Jesus da participação dos ritos. Então, Mateus conscientiza os cristãos de que eles são o verdadeiro Israel, pois, em Jesus, a herança de Israel se tornou universal, como fora prometido a Abraão (Gn 12,2-3). O episódio do Evangelho deste domingo mostra o chamado de Mateus e a convivência de Jesus com os cobradores de impostos e publicanos. Após o Sermão da montanha (Mt 5-7), o evangelista descreve a atividade de Jesus por meio de dez milagres em favor do povo (Mt 8- 9). Jesus ensina a agir com acolhida e misericórdia, ao contrário dos fariseus, que murmuravam e o criticavam. Passando pelas ruas, Jesus viu Mateus exercendo seu ofício de cobrador de impostos (v. 9). Essa profissão era malvista pelos líderes religiosos judaicos, porque demandava contato com pagãos (impuros) e recolhimento do dinheiro deles para o Império Romano, envolvendo, muitas vezes, injustiça e favorecimento próprio. Jesus não se importa em se aproximar de alguém “desprezado” pela religião do seu tempo. Ele chama Mateus para segui-lo, da mesma forma que Deus agia no Antigo Testamento, contando com pessoas frágeis para realizar grandes coisas (Ex 3,11; Jz 6,15; Is 6,4). Em seguida, Jesus se encontra na casa de Mateus, à mesa com publicanos e pecadores (v. 10). Tomar refeição juntos significava amizade e comunhão. Os fariseus, então, criticam Jesus por se rodear de gente mal-afamada e tratá-la como “amigos” (v. 11). Provavelmente, não era um comportamento comum entre os mestres de Israel. Jesus se mistura com gente impura perante a Lei. A reação à reprovação dos fariseus é um ensinamento: os doentes precisam de médico, logo são os pecadores que precisam da misericórdia de Deus manifestada em Jesus (v. 12). A presença de Jesus entre os rejeitados pela religião trazia a salvação pela misericórdia, não por ameaças. Aqueles fariseus se achavam justos e, por isso, não acolhiam a Boa-nova anunciada e praticada por Jesus. Como um mestre diferente, Jesus ainda recorre ao profeta Oseias para fazê-los pensar no que significa “misericórdia eu quero, não sacrifícios” (Os 6,6; Mt 9,13). Enquanto outros interpretavam a Lei para viverem melhor conforme a Lei, Jesus partia da realidade das pessoas com as quais se encontrava para interpretar a Lei. Ele aproximava o Reinado de Deus das pessoas.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
As religiões se cercam de ritos, costumes, práticas e regras para se organizarem e ajudar as pessoas em seu processo espiritual. Todavia, algumas vezes as normas se sobrepõem ao humano, prejudicando-o na finalidade de crescimento pessoal. As leituras mostram que Deus prefere a sinceridade interna para a conversão a uma externalidade julgadora do próximo. Quem são hoje os que observam mais os outros que a si mesmos? Quem são os que ficam recomendando o que Deus deve ou não fazer com as pessoas, como se fossem “donos” de Deus? Quem são os apegados às rubricas e à letra da Lei para julgar os outros? Cada um deve dirigir essas questões primeiramente a si próprio, a fim de se abrir livremente para a misericórdia consigo e com os outros. Por fim, o papa Francisco, na Carta Apostólica de conclusão do Jubileu da Misericórdia, afirma que “a misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando, transforma e muda a vida. É assim que se manifesta o seu mistério divino. Deus é misericordioso” (Misericordia et Misera, n. 2). Nosso modo de viver reflete nossa fé em Deus. Se crermos em um Deus castigador e severo, assim seremos com as pessoas. Se confiarmos na misericórdia divina, agiremos com compaixão uns com os outros.

Marcus Mareano*

*Pe. Marcus Mareano é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece); bacharel e mestre
em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); doutor em Teologia Bíblica com dupla
diplomação: pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven); professor adjunto de
Teologia na PUC-MG e de disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador
paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]