Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2024 - ano 65 - número 356 - pp.: 34-37

10 de março – 4º Domingo da Quaresma

Por Maicon André Malacarne*

A fé é permanecer à procura da luz!

I. INTRODUÇÃO GERAL

“É um abismo de luz, você tem de fechar os olhos para não cair nele”, respondeu Kafka ao seu amigo Gustav, ao ser perguntado sobre quem era Jesus (Conversas com Kafka). Esse movimento entre a luz e a escuridão é que conduz a liturgia deste 4º domingo da Quaresma. Como fez Nicodemos, figura central do Evangelho, trata-se de abrir-se ao diálogo com o Senhor, desvelar as perguntas, para “nascer de novo” na direção da luz.

A vida nova, escreve Paulo aos Efésios, “é dom de Deus” que alcançamos “na pessoa de Jesus Cristo”. É verdade que é preciso assumir as responsabilidades para discernir a vida de fé como discípulo e missionário, porém não conseguimos fazer tudo pelas nossas obras. É preciso deixar que a graça de Deus, que nos amou e criou, também nos salve! A história da salvação guarda a memória da fidelidade de Deus, especialmente em tempos de contradições e de abandono. O segundo livro das Crônicas ajuda a perceber a presença de Deus, que não esquece seu povo nem mesmo nos piores momentos da sua história.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (2Cr 36,14-16.19-23)

Estamos no último capítulo, um epílogo, do segundo livro das Crônicas. Dois temas são atravessados: de um lado, a fidelidade do Deus da Aliança; de outro, a infidelidade do povo, que com facilidade abandona a Deus e desanima de permanecer com ele. De fato, o biblista e prefeito emérito do Dicastério para a Cultura, cardeal Gianfranco Ravasi, afirma que esse trecho é como “um ângulo teológico em que se pode ler toda a história do povo de Israel” (Convertitevi e credete al Vangelo, 2003, tradução nossa).

A infidelidade do povo, das autoridades e dos sacerdotes se condensa no trecho “aumentaram os crimes que cometiam, imitando as abominações das nações” (v. 14). Nem mesmo o espaço sagrado era respeitado: “profanaram o templo” (v. 14). Quanto aos mensageiros que Javé havia enviado, “levavam na brincadeira suas palavras e zombavam dos profetas” (v. 16). Aquilo que, depois, parecia ser um castigo de Deus sobre o povo era, na verdade, fruto da escolha desse povo por uma vida desregrada, injusta e infiel.

A esperança, como sempre, vem do mesmo Deus, que não se cansa de perdoar e de despertar a consciência das pessoas, a fim de ajudá-las a erguer uma vida nova. De fato, Ciro, rei da Pérsia, foi enviado para reconstruir a esperança que o povo tinha perdido com o exílio babilônico e com sua opção pela infidelidade. Um sinal será o retorno do exílio e a reconstrução do templo, sob a organização de Ciro: “Ele me encarregou de construir para ele um templo em Jerusalém, na terra de Judá. Todos os que pertencem a esse povo e vivem entre nós podem voltar para lá” (v. 23).

É importante perceber que Javé “despertou a consciência de Ciro” (v. 22). A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, n. 16, afirma que a “consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do ser humano, no qual ele se encontra a sós com Deus, cuja voz ressoa na intimidade do seu ser”. A consciência é lugar da maturidade, do despertar, ouvir, acolher e discernir a voz de Deus, que chamou e chama a caminhar na direção da luz!

2. II leitura (Ef 2,4-10)

A tradição paulina, na continuidade do ensinamento de Paulo, guardou a bonita carta aos Efésios. De fato, por causa do grande amor de Deus, não obstante a condição de pecado, “vocês foram salvos pela graça” (v. 5). Paulo sublinha insistentemente que tudo vem de Deus, tudo é dom, tudo é graça, e que “na pessoa de Jesus Cristo, Deus nos ressuscitou e nos fez sentar no céu” (v. 6). A abundância do amor é um convite a viver a fé de maneira responsável. Não se trata de deixar tudo para Deus resolver, mas de acreditar, de tornar nossa vida um lugar de comunicar a vida divina. A fé é uma resposta ao amor!

Seguir Jesus Cristo é passar do pecado à graça, da morte à nova vida. Jesus “é a porta” de passagem (Jo 10,9). De fato, nele vivemos a vida de ressuscitados, a vida erguida da condição de prostração. A fé em Jesus Cristo se realiza no aqui e agora da realidade e no “ainda não” da eternidade. No movimento da terra e do céu, o cristão é chamado a viver, transformando as condições de escuridão e de pecado e testemunhando a nova luz da graça.

A certa altura da vida, São Paulo percebeu: “basta a tua graça” (2Cor 12,8-9). Confiar totalmente na graça não significa, como vimos, omitir-nos nas responsabilidades, mas é sempre um convite a abrir espaço, expandir aquilo que somos, permitir que o sonho de Deus se realize na história!

3. Evangelho (Jo 3,14-21)

Todo o terceiro capítulo do Evangelho de João apresenta o encontro entre Jesus e Nicodemos, um reconhecido líder judaico, “mestre em Israel” (Jo 3,9) e membro do sinédrio, espécie de tribunal de justiça que, mais tarde, condenará Jesus à morte. Nicodemos vai aparecer em outras duas situações: quando defendeu Jesus de acusações e da tentativa de prisão (“será que a nossa Lei julga alguém antes de ouvir e saber o que ele fez?” – Jo 9,51) e, depois da morte de Jesus, com José de Arimateia, quando foi tirar o corpo de Jesus da cruz e “levou mais de trinta quilos de uma mistura de mirra e resina perfumada. Então pegaram o corpo de Jesus e o enrolaram com panos de linho junto com os perfumes, do jeito que os judeus costumam sepultar” (Jo 19,39-40).

Depois do encontro com Jesus, a vida de Nicodemos foi sendo transformada: “quem pratica o mal tem ódio da luz” (v. 20). É verdade que ele não deixou o sinédrio nem renunciou ao seu poder, mas o diálogo, as perguntas, os silêncios “da noite” configuraram uma vida que, de alguma maneira, já não se distanciou de Jesus.

No fundo, Nicodemos é uma fotografia da nossa fé, que oscila entre a escuridão e a luz. Habita em nós um “Nicodemos” que aparece e silencia, que defende e se esconde, que chega quando Jesus já está morto. Parece que Nicodemos tem boa vontade, mas tem dificuldade em entender como fazer. Confia nas próprias forças e percebe que elas não bastam. Jesus lhe tinha “ensinado tudo”, mas era preciso uma resposta amorosa, aquele “nascer de novo” (Jo 3,3) que muda tudo.

O Evangelho de João distingue aqueles que não creem (v. 20), que trabalham para as trevas, odeiam a luz e realizam obras más, daqueles que creem e se aproximam da luz por meio das obras da verdade (v. 21). Ser um “buscador da luz” é fixar os olhos em Jesus e no seu grande mistério de amor – paixão, morte e ressurreição. De fato, assim se inicia o Evangelho: “ninguém subiu ao céu a não ser aquele que desceu do céu: o Filho do Homem” (Jo 3,13). Como a serpente levantada por Moisés no deserto, a cruz é o novo sinal da salvação (v. 14).

Na continuidade do diálogo, Jesus ajudou Nicodemos a perceber a presença de Deus na história: “Deus amou de tal forma o mundo...” (v. 16). É interessante o uso do verbo no passado – amou –, significando um amor fiel, de sempre e para sempre. Um amor que atravessa o mundo! É como dizer: não há dúvidas sobre o amor de Deus, é um amor seguro. Nossa biografia está marcada com o sinal do amor! Há sempre um antes e um depois da experiência do amor, e Jesus convidava Nicodemos a mergulhar nesse grande mistério.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

A Quaresma é um tempo de fixar os olhos na cruz e encontrar uma luz, um sentido maior para a vida. Trata-se de uma luz que ajuda a transformar, converter as obras na medida de um estilo de vida feliz, conforme o sonho de Deus, “que amou o mundo”. Outro empenho é mudar a imagem de um Deus punitivo, castigador, para o Deus revelado na Escritura, que acompanha a humanidade e lhe “desperta a consciência” a fim de que perceba sua fidelidade para sempre. Que imagem de Deus carrego? Como “procuro a luz” a partir do meu estilo de vida?

Maicon André Malacarne*

*é presbítero da diocese de Erexim-RS. Possui mestrado em Teologia Moral pela Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma), onde atualmente é doutorando na mesma área. É especialista em Juventude no Mundo Contemporâneo pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – Belo Horizonte-MG), formado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia Berthier (Ifibe – Passo Fundo-RS) e em Teologia pela Itepa Faculdades (Passo Fundo-RS). É aluno de doutorado em Teologia Moral da Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma). E-mail: [email protected]