Roteiros homiléticos

Publicado em maio-junho de 2022 - ano 63 - número 345 - pág.: 61-64

13º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 26 de junho

Por Celso Loraschi*

Vocação: liberdade e fidelidade

I. INTRODUÇÃO GERAL

A Bíblia relata muitos episódios de vocações: de Abraão, Moisés, Samuel, dos profetas e de muitos outros. Por meio dessas pessoas, Deus comunica seu plano de amor, estabelece aliança com seu povo e ensina o caminho da fidelidade. A vocação profética, de maneira especial, nasce de uma profunda experiência de Deus no meio da realidade de sofrimento em que o povo está imerso. Elias, considerado o pai dos movimentos proféticos, vive junto às vítimas do regime monárquico de Israel, solidarizando-se com elas. Anuncia a vontade de Deus, denuncia as falcatruas dos grandes e realiza sinais de libertação em meio aos pequeninos e pobres. O profeta é portador do projeto de Deus, o qual precisa ser continuado na história. A pessoa cumpre sua missão e passa, mas o projeto de Deus não pode passar. Eis, então, que surge a vocação do profeta Eliseu (I leitura). Jesus chama os discípulos para ficarem com ele, ensina-lhes e revela-lhes a vontade do Pai, realiza diante deles sinais de libertação no meio do povo necessitado e envia-os para anunciar o Evangelho e libertar as pessoas de toda espécie de mal. Em que pese a missão recebida de Jesus, os discípulos manifestam dificuldades para entendê-lo e aderir plenamente ao seu seguimento. O apego a seguranças pessoais impede a liberdade necessária para seguir verdadeiramente a Jesus (Evangelho). Dentro de nós, carregamos a tendência para os instintos egoístas. Podemos vencê-los se nos deixamos guiar pelo Espírito Santo. Ele nos torna livres em Cristo para uma vida nova na graça de Deus (II leitura). A vocação, portanto, é convite de Deus para a plena realização humana, somente possível se nos desvencilharmos de tudo o que impede a ação amorosa de Deus em cada um de nós e na humanidade inteira.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (1Rs 19,16b.19-21)

O profeta Elias dedicou sua vida à causa da justiça divina, em favor das pessoas desprotegidas. Seu nome significa “Javé é meu Deus”. É portador do projeto do Deus que libertou o povo da escravidão do Egito e lhe deu uma terra “onde corre leite e mel”. Nessa terra, o povo, organizado em tribos, procurou viver a proposta de um poder descentralizado e de uma economia baseada na partilha, segundo a necessidade das famílias. Tudo mudou com o regime monárquico. Elias, cuja atuação profética se dá ao redor do ano 860 a.C., especialmente durante o governo de Acab, levanta a bandeira da proposta javista como caminho de restauração do direito e da justiça. Tendo a Javé como seu Deus, Israel poderia libertar-se da corrupção e mudar sua história.

Elias, inspirado por Deus, preocupa-se com a continuação de sua missão profética. A pessoa tem seu tempo histórico. O projeto de Deus, porém, não pode parar. O movimento profético vai continuar agora com Eliseu. A narrativa da sua vocação é reveladora. Transmite a intenção subjacente ao texto.

Eliseu é trabalhador da roça. Com 12 juntas de bois, cultiva a terra juntamente com outros trabalhadores. Ele conduz a última junta. A ligação simbólica com as 12 tribos é provável neste relato. Assim como Elias, também Eliseu é portador do ideal de uma sociedade governada segundo o projeto de Deus. Ao colocar sobre Eliseu seu manto, Elias lhe transmite a autoridade profética. Imediatamente Eliseu deixa sua profissão e se despede de sua família. Sacrifica a junta de bois e partilha a carne com seus companheiros, aproveitando a madeira do arado para cozinhá-la. Depois, levanta-se e segue Elias. Está em plena liberdade para exercer a missão profética.

2. II leitura (Gl 5,1.13-18)

Um dos problemas sérios que Paulo enfrenta em sua missão é a influência dos pregadores judaizantes, que insistiam na necessidade de os cristãos cumprirem certas normas judaicas, querendo obrigá-los a serem circuncidados. Diante dessas pregações persistentes, alguns membros das comunidades ficaram um tanto abalados e cheios de dúvidas. Geravam-se discussões e intrigas entre grupos com diferentes interpretações. Para Paulo, está totalmente superada a fase da Lei como condição para a salvação. O tempo da minoridade passou. Jesus Cristo nos libertou de todo tipo de escravidão, também a da Lei. Assim, todas as pessoas, independentemente da proveniência, recebem o privilégio de pertencer ao povo santo de Deus.

Há pessoas na comunidade, porém, que interpretam a liberdade como caminho de satisfação de interesses pessoais. Mas não! A liberdade em Jesus Cristo não é pretexto para satisfazer os instintos egoístas. Pelo contrário, é a qualidade que fundamenta o amor mútuo. A pessoa livre em Cristo põe-se inteiramente a serviço dos outros.

Paulo, então, contrapõe os instintos egoístas (ou os “desejos da carne”) às obras que provêm do Espírito Santo. São duas maneiras de viver. Os frutos são diferentes. A vida no Espírito é o jeito característico de quem foi libertado pela morte e ressurreição de Jesus. Assim como Jesus, conduzido pelo Espírito Santo, viveu a vontade do Pai, entregando-se por inteiro para a vida do mundo, também os cristãos recebem a graça de uma vida nova, que se manifesta no amor-serviço.

3. Evangelho (Lc 9,51-62)

O texto situa o exato momento em que Jesus toma a firme resolução de ir a Jerusalém. Inicia-se o “êxodo” de Jesus, cujo principal objetivo é educar seus discípulos, abrindo-lhes os olhos a respeito das condições e consequências do seu seguimento. No texto do domingo passado (Lc 9,18-24), os discípulos, por meio de Pedro, haviam declarado a Jesus que ele era o “Messias de Deus”. Não sabiam, porém, o verdadeiro significado dessas palavras. A concepção triunfalista de messianismo predominava em sua mente. Isso já havia ficado evidente pelo tipo de discussão que tiveram logo depois da confissão de Pedro: quem deles seria o maior? (9,46-48). Fica evidente também pela atitude de Tiago e João diante da hostilidade dos samaritanos. Estes são inimigos ferrenhos dos judeus. Certamente os dois mensageiros que Jesus havia enviado à sua frente deviam ter preparado os ânimos dos samaritanos. Parece, todavia, que fracassaram. O que disseram e como fizeram? O fato é que sua missão não foi eficaz. Jesus repreende a Tiago e João e dirige-se para outro lugar (v. 51-56).

No caminho, são descritas três espécies de vocações. Nelas os discípulos devem reconhecer-se. Em cada uma delas, Jesus define quais devem ser as verdadeiras atitudes dos seus seguidores e seguidoras. O texto é elaborado de tal modo, que situa no centro um chamado feito diretamente por Jesus. A primeira e a terceira personagens desejam seguir Jesus por iniciativa própria. As três são personagens sem nome e, portanto, representativas de todas as pessoas discípulas de Jesus. Lucas quer enfatizar as exigentes condições para o seguimento.

A primeira demonstra disposição incomum: “Eu te seguirei para onde quer que tu fores” (v. 57). A expressão faz lembrar as palavras de Pedro um pouco antes de negar Jesus: “Senhor estou pronto a ir contigo à prisão e à morte” (Lc 22,33). A resposta de Jesus à primeira personagem alerta para a necessidade de ruptura com as seguranças e confortos que impedem a prontidão permanente. As “tocas” e os “ninhos” estão ligados à acomodação do poder em suas instituições. Nesse sentido, não é por acaso que Jesus vai chamar Herodes de “raposa” (Lc 13,32).

A terceira personagem também se oferece espontaneamente para seguir Jesus, com a condição de despedir-se primeiro do pessoal de sua casa. A expressão grega denota o sentido de desvencilhar-se de uma incumbência. A personagem demonstra indecisão, própria de quem tem dificuldades de desapegar-se dos seus negócios e de quem ainda está amarrado a laços afetivos prejudiciais à liberdade e à autonomia necessárias para responder ao chamado divino.

A personagem central é convidada por Jesus. Está, porém, ligada às tradições paternas. Jesus pede-lhe que deixe o passado para entrar na nova dinâmica do Reino de Deus. Lembra a dificuldade manifestada pelos discípulos de desatrelar-se da ideologia judaica.

Os três tipos de vocações sintetizam as atitudes que devem caracterizar o verdadeiro discipulado. A liberdade deve ser radical, para que a opção pelo Reino seja feita com inteireza.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Todos somos chamados por Deus à vida e à santidade. A cada um Deus se revela de maneira original e convoca para viver segundo sua vontade. Ele conta conosco para irradiar seu plano de amor em atos e palavras. O profeta Elias é exemplo de disponibilidade e de dedicação ao projeto de Deus. Preocupa-se com a continuidade da missão profética e, por isso, sob a inspiração de Deus, transmite o chamado a Eliseu. Como ele, podemos nos desapegar de todas as coisas que impedem a vivência plena da vocação que Deus nos dá.

Também o Evangelho alerta para a importância de cultivar as condições para seguir Jesus: não proteger-se em “tocas” nem acomodar-se nos “ninhos” dos interesses pessoais e das instituições de poder; libertar-se das amarras econômicas e afetivas para viver a necessária e saudável autonomia no compromisso vocacional; romper com as tradições passadas para abrir-se à novidade de Deus na história presente, novidade que se manifesta por meio de sinais que nos desafiam ao compromisso em torno de um mundo de fraternidade e paz.

Jesus deseja que sejamos pessoas prontas a superar o individualismo, a acomodação, a administração egoísta dos bens, a tendência a fazer somente o que nos agrada pessoalmente. São Paulo chama essas atitudes de “desejos da carne” ou de “instintos egoístas”. Sem perceber, podemos nos tornar escravos de coisas, de convenções, de aspirações que caracterizam o mundo pós-moderno. Corremos atrás do que a moda exige, mudamos constantemente de pensamento e de rumo, sob pretexto de realização pessoal. Há, porém, outro jeito de viver: sob a condução e a força do Espírito Santo. Ele nos torna livres para vivermos na simplicidade, na alegria de servir, na capacidade de amar como Jesus nos ensinou.

Podem-se lembrar as diversas vocações existentes na comunidade (e no mundo), seus serviços específicos e os frutos decorrentes da doação de tantas pessoas que respondem com generosidade ao chamado de Deus.

Celso Loraschi*

*Mestre em Teologia Dogmática com concentração em Estudos Bíblicos, professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos na Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc). E-mail: [email protected]