Roteiros homiléticos

Publicado em janeiro-fevereiro de 2023 - ano 64 - número 349 - pág.: 61-64

19 de fevereiro – 7º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Ivonil Parraz*

A radicalidade do amor

I. INTRODUÇÃO GERAL

As três leituras do 7º domingo do Tempo Comum nos convidam à santidade. Ser santo significa ser bom e amar gratuitamente, como o Pai!

A primeira leitura nos exorta a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. O amor a Deus e o amor ao próximo estão interligados. A prática desses dois tipos de amor leva-nos a imitar Deus: ser santos como Deus é santo!

Na segunda leitura, Paulo sustenta que a comunidade cristã é templo de Deus. E, como templo de Deus, todos os seus membros devem abraçar a sabedoria da cruz. A cruz revela quão gratuito é o amor de Deus! Revela também a força de Deus: a desmedida do seu amor! Sua sabedoria consiste numa vida doada, inteiramente gratuita. A cruz indica qual deve ser a vida do cristão. Quem se deixa conduzir por sua sabedoria possui já, aqui e agora, a vida eterna!

No Evangelho, Jesus reinterpreta o mandamento do amor ao próximo. Sua reinterpretação é revolucionária: amar até mesmo o inimigo. Essa é a única maneira de amar gratuitamente, como o Pai.

Toda a reinterpretação que Jesus faz no capítulo 5 do Evangelho de Mateus, bem como o programa de vida do discípulo, exposto nas bem-aventuranças, culminam no último versículo desse capítulo: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”. Ser santos (Lv 19,2), ser misericordiosos como ele (Lc 6,36) e ser perfeitos como o Pai (Mt 5,48) se equivalem! Ser santo, misericordioso e perfeito consiste em amar gratuitamente!

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Mt 5,38-48)

“Amai vossos inimigos” (v. 44). Eis o que há de mais revolucionário em Jesus! Amar os inimigos nada mais é do que a prática do amor gratuito. O Pai nos ama gratuitamente. Assim, amando gratuitamente, imitamos o modo de amar do Pai. Só o amor nos conduz à perfeição!

Somos humanos quando nossa atuação é alicerçada no amor. Somente assim criamos relação, comunhão com o outro. Ao falar de amor, Jesus tem em mente uma relação humana de interesse pelo bem da pessoa. Em outras palavras, amar, na Escritura, significa fazer sempre o bem ao outro. Não se trata, portanto, de um sentimento, o qual, muitas vezes, se perde no abstrato. Amar é sempre concreto. Amar é ato, e não abstração!

  1. a) Rejeição à violência

“Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo...” (v. 38). Jesus se opõe à lei do “talião”. Opõe-se a toda forma de violência. Seu discípulo deve ser aquele que, com a prática do amor, estanca todo tipo de agir violento. A posição de Jesus apresenta-se bastante clara: pagando o mal com a mesma moeda, nunca sairemos dele! Jesus, porém, não quer somente isso. Ele nos pede que não nos limitemos somente ao que nos é pedido e, ainda mais, que amemos até nossos inimigos!

  1. b) Doação sem medida

“Não ofereçais resistência ao malvado! Pelo contrário, se alguém te bater na face direita, oferece também a esquerda” (v. 39). Na dinâmica de refrear a maldade, Jesus nos convida à atitude da não resistência diante daqueles que nos fazem mal. Como seguidores de Jesus, o amor deve mover nosso coração! Ora, o amor só visa ao bem. Portanto, não deve haver espaço para a maldade nos cristãos.

Jesus nos dá o exemplo: no alto da cruz, ele pede ao Pai perdão para todos os seus inimigos. Se, ao chegarmos ao céu, lá encontrarmos Pôncio Pilatos, Herodes, os sumos sacerdotes que condenaram o Filho de Deus e também os soldados romanos, não estranhemos! Insondável é a misericórdia divina! Inacessível à compreensão humana é o Deus misericordioso!

Os primeiros cristãos também são modelo para nós. Eles não ofereceram resistência quando foram perseguidos e mortos por seguir Jesus. Ao contrário, também perdoaram aos seus perseguidores.

“Se alguém quiser abrir um processo para tomar tua túnica, dá-lhe também o manto” (v. 40). No tempo de Jesus, quando alguém se sentia ofendido, era costume recorrer à justiça para exigir certa paga. Por exemplo, a túnica do ofensor. A postura de Jesus diante desses costumes apresenta-se clara: nada substitui a pessoa humana! Cumpre-nos sempre visar ao bem da pessoa, mesmo que, para isso, devamos abrir mão de nossos pertences. A transparência da postura de Jesus suscita em nós profunda admiração: somente quando a pessoa se sentir amada, somente quando se sentir importante aos olhos do outro, ela abandonará a maldade!

A maldade não é própria do ser humano. É impossível nascermos maus, uma vez que Deus, o bem por excelência, nos criou, fazendo-nos à sua imagem. Não obstante, a maldade pode desenvolver raízes no coração humano.

Não somos inocentes! O mal não é inerente a nós, mas podemos dar-lhe hospedagem! Podemos criar condições para que ele se alastre entre nós. Nossos inimigos o são por natureza ou nós os produzimos? O terrorismo é o desabrochar de uma maldade inerente ao coração humano ou é sintoma?

“Dá a quem te pedir, e não vires as costas a quem te pede emprestado” (v. 42). Doação e doar-se, eis os frutos de um coração que quer seguir as pegadas de Jesus, que quer fazer a experiência de um Pai misericordioso! Para ser verdadeiramente filhos do Pai de Jesus, não há outra via: ser bom como ele é bom!

  1. c) Amor aos inimigos

“Amai vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem” (v. 44). A lei do Levítico (Lv 19,18) entendia o amor ao próximo como algo aplicável somente aos compatriotas e correligionários: “Não procures vingança nem guardes rancor aos teus compatriotas”. Jesus a aplica universalmente e de modo ilimitado. Para isso, recorre ao modo de agir do Pai misericordioso: “faz nascer seu sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (v. 45). Assim como o Pai, devem ser seus filhos e filhas. Como o Pai ama gratuitamente bons e maus, seus filhos e filhas devem amar até mesmo os inimigos!

A vocação do ser humano consiste em amar. Criados por um Deus amor à sua imagem e semelhança, nós nos realizamos como humanos quando amamos a todos com o amor gratuito de Deus, sem procurar retribuição. Somente aquele que ama gratuitamente, tal como Deus, poderá amar seus inimigos. Quem ama somente aqueles que o amam não ama o outro, mas a si mesmo. Seu amor move-se pelo interesse. O que mais lhe interessa é o próprio eu.

No “amar nossos inimigos”, Jesus nos convida a ir além. Ir além redunda em pôr nosso amor em movimento. Não basta amar quem nos ama. Para imitar o Pai misericordioso, compete-nos amar gratuitamente. O amor ao inimigo é a expressão maior da gratuidade do amor. O amor gratuito nos descentraliza, pois nos move a buscar o bem do outro! E nos centraliza em Deus, pois visamos ao bem do outro! Amando gratuitamente, imitaremos o Pai bom.

  1. d) Perfeitos como o Pai

“Sede, portanto, perfeitos, como vosso Pai celeste é perfeito” (v. 48). Imitar o Pai em seu jeito de amar gratuito deve ser a meta de todo cristão. O Sermão da montanha, que abre o capítulo 5 do Evangelho de Mateus, culmina nesse v. 48. O programa do cristão que Jesus apresenta ao longo desse capítulo tem uma meta precisa: seus seguidores devem ser perfeitos como o Pai.

Ser perfeitos como o Pai corresponde ao “sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Os judeus seguiam piamente o pedido de Deus presente no livro do Levítico: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo”. Acreditavam eles que a observância estrita da Lei conferia-lhes a santidade querida por Deus. Por focarem na Lei, imaginavam que qualquer deslize se tornava suficiente para atrair a cólera divina. Esqueciam que o Pai santo é misericordioso. A maioria deles praticava a Lei, mas não a misericórdia!

Jesus nos alerta sobre a santidade: ao ser misericordiosos, seremos perfeitos como o Pai! Não há outra via! Os misericordiosos praticam a Palavra normativa do Pai. Os “perfeitos como o Pai”, ou seja, os “misericordiadores”, são bem-aventurados. Os verdadeiros discípulos de Jesus Cristo!

2. I leitura (Lv 19,1-2.17-18)

“Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (v. 2). A palavra-chave do livro do Levítico (o terceiro livro de Moisés) é a santidade. Porque Deus é santo, Israel deve ser santo também.

A santidade de Deus era vista em sua transcendência. Deus, aos olhos de Israel, apresentava-se como o separado por excelência: o absoluto! Assim, a santidade que o povo deveria praticar consistia na pureza do culto e na ordem moral.

Diante da perfeição de Deus, Israel procura prestar-lhe culto do modo mais perfeito possível e servi-lo com a máxima pureza moral, amando seu próximo. O Levítico ensina, portanto, a amar a Deus sobre todas as coisas. Essa prática consiste no verdadeiro culto que se pode prestar a ele. Ensina também que nos cabe expressar, na vida moral, o amor ao próximo como a nós mesmos.

3. II leitura (1Cor 3,16-23)

“Sois templo de Deus e o Espírito de Deus habita em vós” (v. 16). Essa afirmação de Paulo refere-se à comunidade de Corinto, e não a pessoas individuais. Como templo de Deus, a Igreja de Corinto apresenta-se como espaço vivo no qual Deus se faz presente. O Espírito de Deus habita em cada membro da comunidade. Os cristãos, movidos pelo Espírito que faz chamar Deus de Pai, já não pertencem a si mesmos, mas a Deus.

“Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá, pois o templo de Deus é santo, e esse templo sois vós” (v. 17). A comunidade dos irmãos é santa. Destruí-la implica a própria destruição. Ora, a comunidade é santa exatamente porque atualiza o amor. Não há comunidade cristã se não há o amor fraterno. Porque vive o amor, a comunidade pertence a Deus. Dela o Pai cuida com carinho!

A reflexão do apóstolo Paulo tem um endereço preciso: os líderes da comunidade de Corinto. Estes se orgulhavam de suas experiências religiosas, da mesma forma que os outros membros da comunidade exaltavam a si mesmos por pertencerem a este ou aquele líder. Paulo inverte a relação: não são os cristãos de Corinto que pertencem a um ou outro líder, mas são os líderes que pertencem aos membros da comunidade! Os líderes devem estar a serviço dos fiéis. O Espírito Santo realiza na comunidade o plano salvífico de Deus. Seus líderes são apenas instrumentos do projeto do Pai.

“Quem se julga sábio diante do mundo, faça-se louco, para tornar-se sábio” (v. 18). À pretensão dos líderes da comunidade de Corinto de serem sábios aos moldes do mundo, Paulo opõe a sabedoria da cruz. A cruz, considerada loucura para o mundo, aparece em Paulo como a sabedoria mais elevada. Por ela, o cristão ilumina-se e, moldando-se a Cristo, vive o que a cruz revela: o amor gratuito de Deus!

A loucura da cruz leva o cristão a assumir outra lógica de relação com o mundo, com a vida e com Deus, diferente da lógica mundana. Aquele que vive o que a cruz revela pertence a Cristo, “e Cristo é de Deus” (v. 23). De todas as coisas podemos nos servir, desde que sirvamos a Cristo!

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Meu amor por meu irmão reflete o único modo de amar do Pai? Minha comunidade é templo vivo de Deus? Ela se deixa conduzir pelo Espírito do Pai? Meu amor é seletivo ou é inclusivo, como o amor do Pai? Se eu não amar como o Pai, não o amo acima de todas as coisas!

Se a Igreja (povo de Deus) se fecha, se não se põe em saída como o Pai, se não é espaço de misericórdia, ela se autodestrói. A comunidade viva (templo vivo de Deus) só se mantém viva se praticar o amor gratuito.

Ivonil Parraz*

*presbítero da diocese de Botucatu, pároco da igreja Santo Antônio de Pádua, Botucatu-SP. Diretor de estudo do Seminário Arquidiocesano São José de Botucatu-SP. Coordenador de pastoral da Região Pastoral 1 da arquidiocese de Botucatu. Mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP); graduado em Teologia pela Faje, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]