Roteiros homiléticos

Publicado em julho-agosto de 2021 - ano 62 - número 340 - pág.: 53-56

19° DOMINGO DO TEMPO COMUM – 8 de agosto

Por Marcus Mareano

O pão da vida

I. INTRODUÇÃO GERAL

A imagem do deserto, recorrente nas Escrituras, recorda uma experiência importante para o povo da Bíblia: a libertação do Egito. Muitos de nós não conhecem esse bioma fisicamente, mas podem imaginá-lo pelas descrições e se apropriar dessas informações para pensar na existência humana e na fé.

Metaforicamente, o deserto pode representar um tempo árido na vida, um recolhimento reflexivo e um apelo à contemplação. É momento oportuno, tempo de graça, que favorece o amadurecimento humano, fecunda as ideias e projeta novas perspectivas. Assim, as leituras nos ajudam nessa jornada vital que todos empreendem. A liturgia pode ser um instante de refúgio para seguirmos melhor adiante.

O elenco dos textos apresenta Elias cansado, que se recolhe para nova experiência com Deus. Ele volta à fonte da fé de Israel para refazer o próprio caminho de vida. O alimento para seguir com ânimo seu percurso prefigura o “pão da vida” explicado por Jesus no Evangelho. Quem dele come possui a vida eterna. Saciamo-nos dessas iguarias dadas por Deus para vivermos o amor como ele viveu, oferecendo a própria vida.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (1Rs 19,4-8)

Os dois livros dos Reis relatam episódios relacionados com o período da monarquia de Israel. Não se preocupam em fazer descrições jornalísticas dos fatos, mas em apontar a ação de Deus na história e em gerar fé nas pessoas que leem o texto. Entre tantos eventos ligados aos reis, há um espaço para o profeta Elias.

A leitura se situa em um momento em que o profeta se encontrava desolado por conta da sua proclamação contra Acab e Jezabel e os falsos profetas de Baal (1Rs 18,1-19,2). Queriam tirar-lhe a vida, por isso ele partiu para o deserto, a fim de se proteger e continuar a missão (1Rs 19,3).

Elias se refugiava nesse lugar que recordava a Aliança de Deus com seu povo. Por um instante, para sob um arbusto e pede a Deus a morte, pois se afligia com as ameaças e com a responsabilidade da missão, como Jonas (Jn 4,3.8) e Jó (Jó 7,15). Ali, ele deitou e adormeceu (v. 5).

Deus responde à oração do profeta e envia seu mensageiro (anjo) para comunicar-lhe a continuidade do seu ofício. A ordem é para que ele se levante e coma (v. 5). Assim fez Elias, encontrou o pão e a água, mas voltou ao sono de antes. Ele tentava escapar do desafio de profetizar.

O anjo novamente o toca e manda que se levante e coma, por haver ainda longo caminho a percorrer. Então, o profeta se ergueu, comeu e bebeu. Sustentado pelo alimento celestial, caminhou 40 dias até o Horeb, o monte da manifestação de Deus (Ex 33,18-23; 34,10-28). O número 40 representa o tempo do povo no deserto (Nm 14,33) e de Moisés na montanha (Ex 24,18; 34,28; Dt 9,9).

Elias percorre o caminho do povo a quem ele serve como profeta e recorda a Aliança de Deus com seu povo. As imagens do deserto, do monte, do alimento e do anjo remetem à experiência do êxodo. Assim como Deus guiou seu povo no passado, guiará igualmente Elias para a continuidade da missão.

2. II leitura (Ef 4,30-5,2)

Continuamos a ler a carta aos Efésios nestes próximos domingos do Tempo Comum. As recomendações práticas para os membros da comunidade iluminam nosso momento presente.

O trecho segue com as indicações para uma vida renovada. Primeiramente, não contristar o Espírito Santo, com o qual Deus selou os efésios para a salvação definitiva (v. 30). Por conseguinte, devem desaparecer das relações entre os irmãos e irmãs as amarguras, irritações, cóleras e toda espécie de maldade, pois a ação do Espírito de Cristo deve levar a novos comportamentos.

A seguir, o autor apresenta as proposições afirmativas (Ef 4,32-5,2). Os fiéis devem ser bons uns com os outros, compassivos, perdoar a quem precisa, imitar a Deus, enfim, amar como Cristo, ofertando a própria vida como oblação. Ocorre nesse último versículo a linguagem cultual para apresentar a maneira de Cristo amar, como uma “oferenda de agradável odor” (v. 2; cf. Ex 29,18; Lv 1,17).

O pão que nos sustenta e alimenta pode nos inspirar posturas diferentes para a ação cotidiana. A palavra ouvida, saciada e celebrada deve nos ajudar a ter, uns para com os outros, atitudes e gestos mais condizentes com a escolha da fé.

3. Evangelho (Jo 6,41-51)

Acompanhamos nestes domingos o discurso sobre “o pão da vida” (Jo 6), uma catequese eucarística que se desenrola em Cafarnaum (Jo 6,24-25), por consequência da multiplicação dos pães (Jo 6,1-14).

O trecho do Evangelho deste dia se inicia com a “murmuração” dos judeus (v. 41), porque Jesus se proclama um pão descido do céu. O agir deles lembra as reclamações por alimento na saída do Egito (Ex 16,2). Tal atitude é considerada, na tradição judaica, como falta de fé. Portanto, temos uma oposição desses interlocutores contra Jesus, por causa da identidade dele. Eles pensam apenas na origem humana: “Este não é Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe?” (v. 42).

Jesus, então, adverte-os para que tenham outra postura, diferente da dos antepassados no deserto (Nm 14). Ensina que as pessoas que vão até ele são atraídas pelo Pai, a quem os judeus chamam de Deus. Jesus ressuscitará esses fiéis no último dia (v. 44). Portanto, quem não acolhe sua mensagem, como os judeus nesse trecho do Evangelho, não está em sintonia com o Pai, não conhece os desígnios divinos.

Quando acontece a alguém acreditar, revela-se o sentido pleno da palavra da Escritura: “Todos serão discípulos de Deus” (v. 45; cf. Is 54,13; Jr 31,33-34). Quem ouve a voz de Deus e dele aprende vai a Jesus, pois ele foi enviado pelo Pai. A propósito, os judeus queriam muito ver a Deus. Ninguém viu. Só Jesus, que vem junto do Pai, é quem o viu e o revelou aos que creem (Jo 1,18).

A passagem conclui com a afirmação de Jesus de que quem nele crê tem a vida eterna (Jo 3,15.16.36). Jesus é o pão da vida! Os antepassados dos interlocutores dele comeram o maná no deserto e morreram por lá. O maná saciava apenas a matéria, que se deteriora com o tempo. Jesus é um alimento que vem de Deus (desce do céu) para gerar vida eterna em quem dele se aproxima. Ele não apenas dá a vida, mas possui a vida em si mesmo (Jo 1,4; 5,26).

Por fim, Jesus especifica e sintetiza seu ensinamento, explicitando qual alimento oferece. O pão vivo que desceu do céu é sua carne para a vida do mundo (v. 51). A palavra “carne”, preciosa para João (1,14), designa a realidade humana com suas possibilidades e fraquezas (Jo 3,6; 8,15). A humanidade de Jesus, sua existência terrena e o mistério de sua vida são oferecidos para que quem nele crê possua a vida eterna.

A Eucaristia dada por Jesus e celebrada por nós é o memorial dessa entrega que culminou na cruz. Cada vez que comungamos do pão “eucaristizado”, estamos acolhendo o dom de sua vida, entregue por amor a cada um de nós. Esse alimento gera a vida eterna em nós e nos conduz à eternidade definitiva para a qual fomos criados.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Nossa existência é marcada por momentos bons e outros ruins. A dinâmica de viver exige de nós sabedoria para lidar com as variações e as surpresas que nos vêm. Apenas na virtualidade das mídias sociais a vida parece sem problemas.

O deserto é uma metáfora para representar a travessia deste tempo para a eternidade. Algumas vezes é preciso um refúgio, como Elias, para refazer o ânimo, experimentar a Deus, alimentar-se e conseguir forças para levantar-se e seguir. Esse refúgio pode ser um lugar ou um tempo dedicado a tal finalidade. A gruta do Horeb deve ser nosso interior, onde Deus se manifesta e nos encoraja para a missão.

Nossa fome e sede podem ser saciadas pelo “pão da vida”, a carne de Jesus a nós oferecida em cada Eucaristia. Encontramos no Senhor a força para não desistir diante dos desafios, sejam pessoais, profissionais, familiares etc. A comunhão com o corpo de Cristo nos faz viver seu amor e encontrar sentido para a existência.

Neste domingo ainda recordamos o dia dos pais e o início da Semana da Família. Que vivamos em nossos lares o que escutamos na Palavra de Deus. Celebrar bem a liturgia significa vivenciar o que aprendemos e praticar o que oramos.

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da Paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]