Roteiros homiléticos

19º Domingo do Tempo Comum – 11 de agosto

Por Zuleica Aparecida Silvano

Não tenhais medo! Deus é fiel

I. Introdução geral

No segundo domingo do mês vocacional, recordamos a vocação à vida em família. A liturgia sintetiza importantes eventos da história da salvação: as grandes fases do itinerário de Abraão e sua confiança incondicional em Deus (II leitura); a ação salvífica de Deus no êxodo (I leitura); a liberdade proveniente da nossa adesão a Cristo e a confiança na realização do Reino de Deus e na parusia. Somos exortados também à prontidão e à responsabilidade em construir o Reino de Deus, que é de partilha e de serviço, características daqueles que seguem o Messias Jesus, o Filho de Deus (evangelho).

II. Comentários dos textos bíblicos 1. I leitura: Sb 18,6-9

O livro da Sabedoria foi escrito no final do século I, por volta dos anos 50 a 30 a.C. O contexto era bastante conflituoso para a cultura judaica, que tentava manter-se fiel às suas tradições culturais e religiosas estando em Alexandria, no Egito, fora da sua terra. Esse contexto marca os versículos escolhidos para esta liturgia, os quais fazem parte da sessão formada pelos capítulos 10-19, que enfatizam a ação da sabedoria divina na história do povo de Deus.

O texto de Sb 18,6-9 constitui um conjunto no qual se descreve a grande noite da primeira festa da Páscoa no Egito. É um evento importante, porque recorda a libertação do povo escravizado com o objetivo de mantê-lo perseverante diante das inúmeras perseguições no decorrer da história. Por outro lado, é uma noite trágica para os egípcios, uma noite de condenação para os opressores. A ênfase na expressão “naquela noite” justifica-se por ser o marco do início da experiência de Israel como um povo livre, consagrado ao Senhor. Os atos salvíficos realizados nessa noite, para o autor, seriam o cumprimento da promessa dada aos patriarcas (cf. Gn 15,13-14). Menciona-se também a preparação realizada por Moisés para que o povo estivesse consciente de tudo que iria acontecer e permanecesse firme e animado (cf. Ex 12,21-23). Para Israel, sua escolha, sua libertação e sua constituição como povo de Deus fazem parte de um único acontecimento salvífico (cf. v. 7). Por isso a insistência em não esquecer esse evento libertador. Essa ação salvífica também comprova que Deus é fiel às suas promessas e que é possível confiar na vitória, não obstante o peso da opressão, a realidade de escravidão e de perseguição (cf. v. 8).

A primeira ceia do cordeiro, recordada no v. 9, torna-se o modelo da Páscoa judaica, sendo considerado um sacrifício em honra ao Senhor Deus (cf. Ex 12,21.27). É nessa ceia que se firma um pacto com Deus e se consolida a comunhão entre os participantes, a qual será necessária durante a travessia pelo deserto. Essa solidariedade entre os membros da comunidade, ao compartilhar os bens, as alegrias, a dor e o sofrimento, expressa também a solidariedade de Deus para com seu povo.

O autor faz memória desse evento significativo para o povo de Israel com a finalidade de manter o povo fiel às suas tradições, preservar a sua identidade como povo escolhido por Deus, diante das ameaças da opressão cultural do império greco-romano.

2. Evangelho: Lc 12,32-48

As exortações presentes nesses versículos estão ligadas ao tema da riqueza, aprofundado no domingo anterior, e fazem parte de longa exortação de Jesus aos discípulos, dizendo-lhes que não precisam se preocupar com aquilo que serve à vida, porque esta vale mais do que as coisas que a sustentam, e o importante é “buscar o Reino de Deus”, pois tudo mais será acrescentado (v. 31). A confiança do discípulo e a exigência de ser livre nascem de sua adesão a Jesus Cristo e de seu compromisso com o Reino. Esse Reino é um dom gratuito, ofertado à comunidade escolhida por Deus, apesar de ser pequena, ameaçada e indefesa (cf. v. 32). A qualificação “pequenino” demonstra que Jesus não está falando do povo de Israel, mas dos discípulos.

A imagem do “rebanho”, comum no AT para qualificar o povo eleito, aponta para a visão de Deus como pastor e para a consciência de estar sob a sua proteção. Por isso não deve haver temor, pois os destinatários do Reino do Pai são os seguidores de Jesus. Estes são os beneficiários da bondade e da salvação (cf. Dn 7,27), são os destinatários da promessa messiânica e escatológica realizada por Deus e anunciada pelos profetas. Esse Reino se manifesta na partilha dos bens (cf. v. 33), na atitude de ter Deus como centro da comunidade, e não os interesses mesquinhos dos membros.

Repartir os bens e dar aos pobres deve ser a real preocupação dos discípulos, pois o tesouro no qual devem pôr o coração é o próprio Reino de Deus. Dessa forma, Jesus mostra que os bens são efêmeros, pois somente a fé em Deus responde plenamente à vocação profunda do ser humano.

Como vimos na reflexão do domingo anterior, não é possível apoiar-nos na riqueza para nos sentirmos seguros, mas somente em Deus. O “vender os bens e dar aos pobres” é exortação que parte da sensibilidade do discípulo ao sofrimento do irmão necessitado. Os bens são necessários, sem dúvida, mas não devem ser o centro da vida de um cristão, não devem ser aquilo que ocupa seu coração e suas preocupações.

Lc 12,35-48 pode ser subdividido em dois temas: a vigilância e prontidão diante da imprevisibilidade da vinda do Filho do homem (cf. vv. 35-40) e a necessária fidelidade e responsabilidade dos líderes da comunidade (cf. vv. 41-48).

A chegada improvisa do senhor e sua demora, mencionadas nas parábolas nos vv. 35-48, estão relacionadas à parusia, ou seja, à vinda do Senhor no fim dos tempos. Inicialmente se pensava numa parusia iminente, o que não aconteceu. Isso acabou desanimando as comunidades, e então surgiu a tentação de abandonar o seguimento. Outra causa de desânimo poderiam ser as dificuldades internas, como é possível perceber no texto, e as perseguições externas. Por isso o evangelista exorta a comunidade a ser fiel, constantemente vigilante, a ficar de prontidão, permanecendo confiante nos ensinamentos de Jesus. A prontidão é uma atitude do cristão, e a vigilância não deve ser penosa, não é obrigação, mas expressão do amor por aquele que se espera. Isso se explicita quando, na parábola, o senhor chega não para ser servido, mas para servir. Essas são atitudes próprias do Reino anunciado por Jesus (cf. Lc 22,27.29-30).

O autor termina a parábola recomendando que a comunidade permaneça vigilante, pois a vinda do Filho do homem pode ser improvisa. A comunidade não sabe quando será essa vinda, porém uma coisa é certa: ele virá. Esse senhor é Jesus, que veio para revelar o projeto salvífico do Pai e entregou a sua vida por fidelidade à vontade de Deus. Desse modo, é necessária uma espera ativa da parusia, pois os cristãos já foram salvos por Cristo e têm a responsabilidade de construir esse Reino. É o que será confirmado na segunda parábola, após a pergunta de Pedro.

A segunda parte apresenta como deve ser a atitude do responsável pela comunidade (cf. vv. 41-48): caracterizar-se pelo serviço, pela fidelidade à vontade do seu Senhor, e não abusar do poder que lhe foi confiado, pois a atitude opressora não faz parte do Reino pregado por Jesus. Àqueles que assumem uma postura opressora, identificados com o chamado servo irresponsável, é prometida uma ruína definitiva. Portanto, os/as discípulos/as e os/as batizados/as são os/as servos/as aos/às quais muito foi confiado; ou seja, Deus dá o seu Reino, mas cabe a cada um e a cada uma ser fiéis ao muito que lhes foi confiado.

3. II leitura: Hb 11,1-2.8-19

Nesse texto, que pertence a uma unidade maior (cf. 11,1-12,13), o autor faz uma releitura da história da salvação para demonstrar a eficácia da fé e a perseverança de grandes personagens da história de Israel. A perseverança que orientou esses grandes homens e mulheres do passado estava baseada na esperança da manifestação do Reino de Deus e na promessa do Deus fiel (cf. 11,11).

Hb 1,1 apresenta um conceito de fé resultante dos vários exemplos dados de pessoas fiéis à vontade de Deus: “fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se veem”. Percebe-se que é uma fé entrelaçada com a esperança. Os vv. 8-19 traçam todo o itinerário de fé percorrido por Abraão e por Sara. Na tradição judaica, Abraão é o “justo” e, para a tradição cristã, é o pai da fé. São identificadas três fases no seu caminho espiritual e no caminho de Sara: a partida de Ur para uma terra que o Senhor iria indicar (cf. 11,8-10); a espera pelo cumprimento da promessa da descendência, apesar de ser de idade avançada e a esposa estéril (cf. 11,11-12); a prova à qual Deus o submete e sua aceitação do sacrifício de seu filho único (cf. 11,17-19). Nos vv. 13-16, Abraão é apresentado como o paradigma daquele que acredita mesmo sem ter nenhuma garantia. Em Hb 11,8, aparece a única indicação da sua vocação: “pela fé, Abraão, ao ser chamado, obedeceu e partiu para uma terra que havia de receber por herança, e partiu sem saber para onde ia”.

O chamado de Deus a Abraão inicia-se com um “partir”, aos 75 anos e com a mulher estéril, sem conhecer o itinerário nem o Deus que o envia. Pôr-se a caminho não é mero deslocar-se nem seguir uma ideia, mas – por envolver obediência a uma ordem divina – é um envio. Não é um partir para sobreviver e assegurar a continuidade do clã, mas sim para realizar o que Deus quer. Neste seu “partir” transparece o “deixar”: são necessários sucessivos desprendimentos. Abraão deve deixar uma realidade geográfica (terra), uma cultura (pátria), um lugar específico (a casa) e os deuses de seus pais (religião). Ele é chamado para algo extremamente genérico: formar um grande povo e ter uma terra. Mas qual terra? Qual povo? Como, sem filhos? Ou seja, deve deixar suas seguranças sem ter nada preestabelecido, definido, calculado. Partir sem conhecer o itinerário. Ao ser convidado a deixar o que tem, é chamado a mudar desde a maneira de viver até a própria imagem que faz de Deus e confiar. Assim sendo, a Palavra de Deus manifesta-se, desde o início, como totalizante na vida de Abraão. Dessa forma, este se torna o paradigma de toda vocação.

Abraão não é chamado para algo específico. Não temos a indicação clara daquilo que Deus lhe pede; deve simplesmente caminhar e esperar. Por isso, ele é o pai da fé. Não precisa fazer nada, somente confiar. Deus lhe pede uma ruptura com o passado, tendo uma única certeza para o futuro: “a promessa”. Abraão assume o risco para submeter-se àquilo que Deus quer. É um grande risco, mas confia, desamarrando-se dos seus medos, de sua condição limitada, de sua condição cômoda, e partindo para o desconhecido, o incerto. Na segunda fase, o texto enfatiza sua idade avançada e a esterilidade de Sara; contudo, mesmo nessas condições desfavoráveis, há a confiança em que, desses corpos marcados pela morte (de Abraão e Sara), nascerá uma multidão (cf. v. 12). Por fim, o ápice da fé: obedecer ao pedido de Deus para que sacrifique Isaac, pedido que contradiz a promessa e sua visão de Deus. Abraão, porém, não hesita e continua confiando. A conclusão, no v. 19, é uma releitura cristã desse terceiro momento de Abraão, visto como antecipação profética daquilo que acontecerá com Jesus, ao entregar a sua vida e ressuscitar. Por isso a fé não é um conjunto teórico de doutrinas a ser assimilado ou compreendido intelectualmente, mas é acreditar no imenso amor de Deus revelado em Jesus Cristo, que nos permite viver numa relação profunda com Deus, tendo a certeza da vitória sobre a morte e a garantia da ressurreição e confiando na promessa de sua vinda, quando o mundo será plenificado por sua presença, porque o Pai é fiel.

III. Pistas para reflexão

As leituras desta celebração põem em foco a eficácia da fé e a necessidade de manter-se perseverante, não obstante os conflitos e as condições desfavoráveis. O povo no Egito, diante da força e da opressão do faraó, acreditou na libertação e na eleição. Abraão e Sara deixaram sua vida segura e partiram, como estrangeiros, rumo a uma terra que seria indicada no decorrer da caminhada, confiando na promessa de descendência, embora ambos fossem de idade avançada e estéreis. Igualmente, essa confiança é exigida do discípulo, que é exortado a não temer, a perseverar no seguimento de Jesus, mas também a se despojar das suas certezas, dos seus bens, para trilhar o caminho incerto do seguimento. Para refletir sobre essas leituras, podemos nos perguntar: o que significa acreditar em Jesus Cristo e na promessa da sua vinda, no fim dos tempos? Quais são os nossos limites para “partir” e “deixar”? Quais medos nossos causam resistência à fé? Que tipo de “administrador” ou “administradora” somos: aqueles que esperam o Senhor chegar com responsabilidade, prontidão, vigilância, aqueles que servem, ou aqueles voltados para os próprios interesses? Do que é necessário despojar-nos, a que precisamos renunciar para ser mais livres no seguimento de Jesus Cristo? Quais são os exemplos de fé e perseverança que temos em nossa família, na comunidade? Quais conflitos e crises enfrentamos em nossa família, e como as leituras desta liturgia podem nos ajudar?

Zuleica Aparecida Silvano

Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFRGS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte. E-mail: [email protected]