Roteiros homiléticos

Publicado em janeiro-fevereiro de 2023 - ano 64 - número 349 - Roteiro Especial

1º de janeiro – SANTA MARIA, MÃE DE DEUS

Por Ivonil Parraz*

A bênção de Deus

I. INTRODUÇÃO GERAL

As três leituras da solenidade da Santa Mãe de Deus tratam de bênção, filiação e salvação (expressa pelo nome de Jesus). A bênção de Deus sobre todos os seus filhos e filhas plenifica-se com a presença do “Deus que salva”. Jesus é a bênção de Deus por excelência! A face de Deus que resplandece no meio de nós!

1. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

2. Evangelho(Lc 2,16-21)

Os primeiros a receber a Boa Notícia do nascimento do Salvador foram os pastores. Essa referência envolve duplo aspecto: a) na sociedade judaica, os pastores eram pessoas que ocupavam um dos lugares mais baixos da pirâmide social. Eram analfabetos, por isso não conheciam a Sagrada Escritura, não tinham acesso à vontade de Deus expressa em suas leis. Além disso, seu ofício impedia-lhes a frequência assídua à sinagoga para ouvir a Palavra de Deus. Efetivamente, eram considerados pecadores! Eram desprezados por todos, pois era comum o rebanho provocar perturbação por onde passava; b) os pastores apresentados por Lucas também representam todos os profetas do Antigo Testamento que esperavam o Deus salvador! Por que os pastores foram os primeiros a receber a Boa Notícia do nascimento de Jesus?

Os pobres, privados das “boas notícias” do mundo – eles não despertam nenhum interesse nos portadores do poder –, estão sempre abertos a receber a Boa-nova da vinda de Deus. O Pai se interessa por eles! Como representantes dos profetas, eles se alegram: a esperança, nascida da fé nas promessas de Deus, nunca decepciona. Ela é sempre experimentada na alegria, pois em Deus há sempre o amanhã.

Os pastores vão “às pressas a Belém”. A alegria nascida da esperança sempre nos põe “às pressas”. Contudo, “às pressas” só devemos ir a Belém! Lá não há nada de extraordinário: um menino, deitado na manjedoura, com seu pai e sua mãe. O Deus dos profetas, aquele que se põe ao lado dos desvalidos, é um Deus misericordioso, cujo poder está no amor. Ora, o amor não faz espetáculo. Para Deus, basta uma manjedoura fria, aquecida pelo amor de Maria “Tendo-o visto, contaram o que fora dito sobre o menino” (v. 17). Aqueles que não conheciam a Palavra de Deus passam a ser anunciadores da Boa-nova. Os pecadores anunciam a chegada de Deus! Quem recebe uma boa notícia e se alegra com ela não se cansa de anunciá-la, para que todos participem da mesma alegria. E todos os que os ouviam ficavam maravilhados (v. 18).

Entre as maravilhas que Deus havia realizado estavam a criação, a libertação da escravidão do Egito e as tábuas da Lei, mas a maior de todas elas foi o envio do seu Filho único para nos salvar. Os pastores são os primeiros a recebê-la e os primeiros a anunciá-la. Maria já conhecia essa maravilha maior. Em seu Magnificat, já cantara que nela Deus havia realizado maravilhas. Todos os acontecimentos, ela guardava em seu coração (v. 19) e meditava sobre eles. Com sua postura orante, em todos os acontecimentos da vida, Maria via a presença de Deus. Rezar sobre o que nos acontece, ver nos acontecimentos a presença do divino, eis a mais bela oração que podemos fazer a Deus!

“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (v. 20). Eles voltam anunciando o Evangelho com alegria, numa verdadeira festa litúrgica. A visita a Belém provoca neles verdadeira transformação: voltam como missionários da Boa-nova, celebrando o encontro com o Deus menino, celebrando a vida.

Entre os israelitas, era costume que o pai desse seu nome ao filho. José não segue esse costume, para assinalar que tudo em Jesus vem do Pai. Por vir do Pai, Jesus é a bênção por excelência de Deus sobre todos os povos. Bênção que se traduz em filiação divina; ou seja, com Jesus, toda a humanidade torna-se herdeira do Pai.

2. I leitura (Nm 6,22-27)

No Primeiro Testamento, a relação entre Deus e o ser humano passava pela mediação. A bênção de Deus ao ser humano pecador só era concedida por meio de um mediador indicado pelo próprio Deus. Até Jesus Cristo, o único mediador, os sacerdotes eram os que exerciam a função de mediação. A bênção de Aarão, tal como nos apresenta o livro dos Números, satisfaz três desejos profundos do ser humano:

  1. a) A bênção protetora: “O Senhor te abençoe e te guarde!” (v. 24). Ao deixar de habitar o jardim (fomos criados para morar no jardim) por causa do pecado, o ser humano se expôs a toda sorte de perigo. A todo tempo corre o risco de sofrer as consequências do pecado. Ele necessita do cuidado de Deus! Com a bênção divina, sente-se protegido, cercado pelo carinho do Pai.
  2. b) A bênção do perdão: “O Senhor faça brilhar sobre ti sua face e se compadeça de ti!” (v. 25). A face resplandecente do Senhor simboliza comunhão, pois “Deus se compadece de ti!” O pecador, contrito e humilhado, ao receber a bênção do Senhor, recebe seu perdão. O coração compassivo do Pai deixa-se mover pelo coração contrito de seus filhos!
  3. c) A bênção da paz: “O Senhor volte para ti seu rosto e te dê a paz!” (v. 26). A paz, na concepção judaica, significa celeiros cheios, gado gordo no pasto, todas as dívidas pagas... Ora, o pecado traduz-se numa dívida impagável que temos para com Deus. Apesar disso, Deus não recusa seu perdão, sua paz!

“Há um só mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus” (1Tm 2,5). Jesus é a bênção encarnada do Pai! O rosto de Deus que brilha no meio de nós! A face do Pai que se volta para todos os seus filhos e filhas! Nossa verdadeira paz: nele todas as nossas dívidas foram pagas! Nele, o coração misericordioso do Pai palpita entre nós. Em Jesus – o Deus que salva –, somos todos herdeiros do Pai.

3. II leitura (Gl 4,4-7)

Na plenitude dos tempos, Deus enviou ao mundo seu único Filho (v. 4). Homem no meio dos homens, Jesus trouxe-nos a filiação divina. Nascido de mulher – portanto, sujeito à Lei –, ele liberta-nos da sua sujeição, pois nele toda Lei se cumpriu: ele é a plenitude da Lei. Ora, o espírito da Lei ou seu fundamento consiste no amor! Jesus, cuja vida foi entrega total por amor, expressa o espírito da Lei. Por isso, ele é sua plenitude. Nós, submissos à letra da Lei, passamos a vivenciar seu espírito. Doravante, a presença de Deus no meio de nós já não se dá pela submissão à Lei, mas pela relação amorosa: Pai e filhos! Amando incondicionalmente a Deus e obedecendo somente a ele e, ao mesmo tempo, amando a cada um de nós, Jesus nos ensinou em que consiste, de fato, ser filhos e filhas de Deus Pai. No amor, recebemos o Espírito do Filho, que clama Abbá (v. 6). É por isso que em Jesus somos herdeiros, e já não escravos. Com Jesus, o amor é nossa lei!

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

“Nascido de mulher”, Deus se faz um de nós! Maria apresenta-se como a porta aberta pela qual Deus fez sua entrada no meio da humanidade. Maria acolhe e dá à luz a luz! O cristão é chamado por Deus a ser como Maria; aquele que acolhe a Deus lhe permite realizar maravilhas em sua vida e dá ao mundo seu Filho amado. Vivendo movido pelo Espírito, vive como luz e, por isso, oferece ao mundo a verdadeira luz: Cristo Jesus!

Deus comunica-se conosco até mesmo em nossas trevas, em nossas noites escuras, como fez com os pastores. Não nos cabe procurar Deus alhures, mas em nosso cotidiano, em nossa vida!

O Menino na manjedoura nos revela o modo de agir de Deus: em vez de dar espetáculo, ele se abaixa para nos pôr de pé. Aprendamos a lição da manjedoura: nossa tarefa é nos revestirmos de humanidade (humildade) para acolher a divindade!

Nossas trevas transformam-se em luz quando recebemos a Boa-nova de Deus. Nele, o sol sempre brilha, pois temos sempre o amanhã. Que nenhuma boa notícia do mundo ofusque a alegria verdadeira que poderá vir somente do Pai.

Entretanto, a Boa-nova do Pai, se de fato nos alegra, também nos transforma: passamos a ser missionários do amor de Deus e celebrantes da vida. Nossa celebração litúrgica, quando não celebra a vida, celebra os funerais de Deus! E quando vamos à celebração com as mãos vazias, ou seja, sem ser missionários, tal como os pastores, vamos para o velório de Deus! Nesse caso, onde teremos perdido a alegria que contagiou os pastores?

Conseguimos encontrar na fragilidade da criança, envolta em trapos, nossa proteção? Como esse Deus que salva se choca com a pretensa salvação que o mundo oferece!

Ivonil Parraz*

*presbítero da diocese de Botucatu, pároco da igreja Santo Antônio de Pádua, Botucatu-SP. Diretor de estudo do Seminário Arquidiocesano São José de Botucatu-SP. Coordenador de pastoral da Região Pastoral 1 da arquidiocese de Botucatu. Mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP); graduação em Teologia pela Faje, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]