Roteiros homiléticos

1º domingo da Quaresma – 1º de março

Por Luiz Alexandre Solano Rossi

A atualidade do evangelho
de Jesus Cristo

I. Introdução geral

Há dois projetos de vida que poderiam ser assim resumidos: um projeto que é proposto para ser feito com Jesus Cristo e outro sem ele. Seguir Jesus é preencher a vida com sentido e finalidade. É permitir que a vida dele seja o modelo fundamental para o bem viver. Nesse sentido, a presença de Jesus recupera a dignidade perdida do ser humano e o leva a percorrer o verdadeiro caminho. Um caminho em que se procura e pratica a justiça, e não a concentração de poder para o domínio do outro; procura-se e pratica-se o serviço que atenda às necessidades dos outros, e não a construção do desejo individualista e narcisista que impede de ser solidário.

II. Comentários aos textos bíblicos

1. I leitura: Gn 2,7-9; 3,1-7

Na primeira leitura, encontramos Deus e sua ação descritos por meio de dupla imagem: ele é, ao mesmo tempo, oleiro e agricultor. A imagem do oleiro é razoavelmente comum no Antigo Testamento, como podemos observar em Is 29,16, 45,9 e 64,7 e em Jr 18,1-9. O homem é modelado desde o pó e recebe, da parte de Deus, um sopro de vida. Somente a partir do momento em que Deus sopra sobre o “modelo de um homem” é que ele se torna um ser vivente. O inanimado se torna animado somente pela intervenção divina. Não existe vida fora de Deus, e toda vida que existe foi criada por ele. Deus agricultor também planta um jardim para ali colocar o homem recém-criado. Homem e jardim se relacionam. Talvez possamos pensar que um deva ser extensão do outro. No jardim, que produz vida também somente pela intervenção de Deus, brotam árvores agradáveis de ver, por causa de sua estética, e capazes de alimentar o homem. Tudo parece harmonioso, até o momento em que a crise surge e se instala. A crise, nessa narrativa de forte carga mitológica, recebe o nome de serpente. A serpente simboliza aquilo que pode dividir as relações de solidariedade até então existentes. Sabe-se que, em Canaã e em Israel, a serpente legitimava a concentração de poder nas mãos do rei e, no Egito, sua imagem estava presente na tiara do faraó, simbolizando o olho do deus Sol. A concentração de poder nas mãos de uns poucos significava, para todos os outros, opressão, violência e destruição de todos os laços de solidariedade. A serpente, portanto, representava outra lógica. Assim, no jardim é possível construir relações sociais marcadas tanto pela solidariedade como pelo interesse pessoal, que conduz ao acúmulo de poder para a dominação e subjugação do outro.

2. II leitura: Rm 5,12-19

O apóstolo Paulo propõe, na segunda leitura, dois modelos para pensarmos a respeito da vida: Adão e Jesus. Eles representam realidades muito contrastantes. Se Adão representa a morte, Jesus representa a vida. Se Adão representa o pecado, Jesus representa a graça. Se Adão representa a lei, Jesus representa a liberdade. Se, de um lado, encontramos a falência do ser humano, representado simbolicamente por Adão, do outro, encontramos a plena humanidade, representada por Jesus. Paulo é sábio ao escolher as palavras de seu texto. A falta ocasionada por Adão é comparada ao esvaziamento do ser humano. Esvazia-se de si mesmo, assim como se encontra esvaziado de Deus. Caminha sem sentido, sem conteúdo, sem “recheio”. Caminha como se não tivesse lugar para chegar. Todavia, para Paulo, o dom se manifesta como abundância – “com muito maior abundância a graça de Deus e o dom gratuito de um só homem, Jesus” (v. 15). O vazio é preenchido de sentido, o desespero é preenchido com esperança. Se a falta representa a condenação, a obra de justiça realizada por Jesus representa a plenitude da vida. O objetivo de tudo é que todos se tornem justos, assim como Jesus praticou a justiça.

3. Evangelho: Mt 4,1-11

Jesus também viveu seu deserto existencial. No entanto, a leitura do evangelho deixa bastante claro que o tentador se aproxima de Jesus depois que este jejua 40 dias e 40 noites. Não há como evitar os desertos da vida, assim como não se pode vivê-los sem preparação. O tentador não encontra Jesus despreparado, desfocado e pensando que fosse uma vítima da situação. E Jesus, após 40 dias, sente fome. Está fraco fisicamente, mas não espiritualmente. Ele não perde a real dimensão de quem é e de qual é a sua missão. Aproveitando-se da aparente fraqueza de Jesus, o tentador o provoca por três vezes. Tentações que abalariam qualquer pessoa, tanto ontem quanto hoje. As três tentações podem ser compreendidas como aquela de satisfazer uma necessidade básica – como a fome –, passando pela tentação de desejo de poder até chegar à tentação de produzir segurança religiosa. A fraqueza física de Jesus não é impedimento para que se lembre do projeto e da vontade de Deus. Por isso, a cada tentação, ele responde com a palavra de Deus – “está escrito” –, revelando, muito possivelmente, que vivia para realizar a vontade de Deus. As tentações mostram os limites próprios do ser humano. Limites que são muito fáceis de ser ultrapassados, porque levam à consequência final das tentações, ou seja, ao exercício do poder como violência. Jesus, sendo tentado no deserto, não reduz o “mundo” a si mesmo. Ele não age para assegurar seus presumidos privilégios. Dispensa a síndrome de Narciso. Nele não há espaço para cultivar o egoísmo, e, por conta disso, o tentador é sumariamente vencido.

A tentação no deserto é forte desafio para Jesus e sinaliza que sua vida e ministério serão marcados por conflitos que o levarão até a morte de cruz. Afinal, ele nem iniciou sua missão e já se vê confrontado com as forças do mal. Todavia, mesmo na tenebrosa noite escura da alma – manifestada pelo deserto e pelo confronto –, a presença de Deus se faz sentir: Deus está presente e cuida dele. O confronto com Satanás deve ser compreendido como um confronto com o adversário (que é o significado do termo no livro de Jó 1,6). Os 40 dias passados no deserto lembram, certamente, Israel no passado (cf. Ex 17,1-7) e as grandes experiências de provação na origem do povo de Deus, a saber: o dilúvio, a caminhada pelo deserto, a opressão pelos filisteus, os 40 dias que Moisés passou na montanha, os 40 dias que o profeta Elias passou caminhando pelo deserto. Jesus de maneira alguma foge dos conflitos. Estes precisam ser resolvidos, e Jesus está disposto a resolvê-los. E os conflitos aumentam.

III. Pistas para reflexão

1) A tentação no deserto é um grande desafio para Jesus, principalmente porque é uma situação associada a conflitos. Todavia, Jesus não foge ao conflito. Faz o caminho do deserto a fim de que os conflitos não se instalem em seu interior. Desertos pessoais são inevitáveis. A maneira como os enfrentamos e saímos deles, vitoriosos ou derrotados, depende de nossas posturas. Assim, em todo deserto há também uma saída que deve ser trilhada.

2) Como seria possível construir relações sociais marcadas pela solidariedade? Apresentemos exemplos.

Luiz Alexandre Solano Rossi

é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre.