Roteiros homiléticos

Publicado em janeiro-fevereiro de 2021 - ano 62 - número 337 - pág.: 60-62

1º DOMINGO DA QUARESMA – 21 de fevereiro

Por Izabel Patuzzo

Tentações da humanidade

I. INTRODUÇÃO GERAL

As leituras deste 1º domingo da Quaresma nos convidam a renovar nossa aliança com Deus. A primeira leitura relata a aliança incondicional entre Deus e Noé, representante da humanidade inteira. É aliança fundamentada na purificação, na recriação e na restauração. Tal aliança é selada sob o arco-íris, que simboliza a fidelidade de Deus.

Na segunda leitura, Pedro nos recorda a Nova Aliança que Deus estabeleceu conosco por meio de Jesus Cristo. Jesus pagou um alto preço para nos redimir. Renovou e fortaleceu a Aliança com seu próprio sangue. No dilúvio, o pecado da desobediência foi eliminado pelas águas; em Cristo, pela água do batismo e pelo dom do Espírito Santo. Já o Evangelho nos ensina que Jesus foi testado por satanás, mas venceu as forças do mal, mostrando-nos o caminho para a fidelidade ao projeto de Deus.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Gn 9,8-15)

O episódio narrado na primeira leitura faz parte de antigas tradições, que surgiram como ensinamentos catequéticos, transmitidos oralmente por muito tempo, antes de serem escritos. Essa narrativa não tem como objetivo nos dar informações históricas de fatos concretos do passado, mas traz lições de sabedoria para a vida. Como outros contos do livro do Gênesis, eram narrativas compostas para transmitir e explicar verdades de fé. O texto faz alusão a grandes inundações que aconteciam naquela região. O autor bíblico toma esses acontecimentos para estabelecer uma comparação com a pedagogia usada por Deus para purificar as infidelidades e a desobediência de seu povo. A história do dilúvio foi composta para ensinar que Deus não aceita passivamente o pecado e o desvio da humanidade. Ele sempre encontra caminhos para purificar a humanidade de seus erros.

Deus se serve de pessoas íntegras, que agem com retidão, que se dispõem a colaborar com o Senhor – como Noé –, na tarefa de resgatar aqueles que se desviam. O texto dá a entender que a aliança entre Deus e o povo só pode ser estabelecida depois da purificação, pois supõe fidelidade e obediência por parte da grande família de Noé, símbolo do povo escolhido. A mensagem central do texto é o amor incondicional de Deus, que deseja fazer aliança com a humanidade, mesmo que esta se desvie. Nunca mais no futuro haverá dilúvio, porque Deus não quer que o pecador morra, e sim que se arrependa, se converta e siga os preceitos da lei divina.

2. II leitura (1Pd 3,18-22)

A carta, atribuída ao apóstolo Pedro, é dirigida às comunidades cristãs espalhadas em cinco províncias romanas da Ásia Menor. Em sua maior parte de tradições greco-helenistas, provavelmente foram catequizadas no final do século I d.C., talvez depois da morte do apóstolo. O autor da carta certamente foi um cristão anônimo de tradição apostólica. Ele conhece os sofrimentos das comunidades cristãs, por isso exorta os cristãos a permanecerem fiéis na fé, dirigindo um olhar ao próprio Cristo, que passou pela paixão e morte de cruz para chegar à glória da ressurreição. O texto da liturgia constitui uma exortação às comunidades para manterem a esperança, o amor e a solidariedade, mesmo diante das adversidades.

A mensagem central da leitura é de encorajamento aos discípulos, confrontados com provocações, injustiças e hostilidades por testemunharem a fé em Jesus Cristo. A carta faz um apelo para que os irmãos não se cansem de fazer o bem, mesmo em meio aos sofrimentos. O agir do cristão deve sempre estar em conformidade com o agir do Cristo e Senhor. Estabelecendo um paralelo com o dilúvio, o autor aponta para o fato de que, pela sua morte e ressurreição, Jesus purificou a todos. Sua morte redentora atingiu toda a humanidade, mesmo os pecadores que conheceram o dilúvio no tempo de Noé. Dessa forma, o autor da carta sugere que, assim como Cristo propiciou a salvação mesmo aos injustos, os batizados, que nasceram do Espírito, devem dar testemunho diante daqueles que os perseguem, em conformidade com Jesus Cristo.

3. Evangelho (Mc 1,12-15)

A experiência de Jesus ser conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, lá ficar por 40 dias e, nesse lugar de escassez, ser tentado por satanás foi relatada por Mateus, Marcos e Lucas. Cada evangelista apresenta um relato distinto desse episódio. Nas Escrituras, o deserto é apresentado como lugar de prova, de tentação e de escolha de vida. Foi no deserto que Israel foi confrontado a escolher o caminho indicado por Deus, depois da tentação de voltar à escravidão e adorar o bezerro de ouro. Os 40 dias de Jesus no deserto recordam os 40 anos necessários para Israel deixar o sistema de escravidão a fim de entrar na terra da liberdade.

No tempo de Jesus, satanás era concebido como um espírito mau, inimigo da criatura humana, que procurava desviar as pessoas dos caminhos de Deus. Marcos o apresenta como aquele que tenta desviar Jesus de sua missão de enviado do Pai para que faça escolhas pessoais, segundo suas necessidades do momento, mesmo que tais escolhas estejam em contradição com os planos do Pai para ele. Provavelmente o evangelista estava pensando na real situação das lideranças religiosas e políticas de seu tempo. O tentador procura induzir Jesus a entrar no jogo dos poderosos, enveredando pelos caminhos da busca do prestígio, do poder, dos privilégios e renunciando à sua missão profética de serviço e doação da vida. Como Israel no deserto, Jesus tem diante de si dois caminhos: ser fiel aos planos do Pai, o que implica passar pela paixão e morte de cruz para construir o Reino de Deus neste mundo, ou se desviar do projeto de Deus, comungando com os líderes de seu tempo.

O relato de Marcos não deixa dúvidas sobre qual foi a opção de Jesus: ele escolheu ser fiel aos planos do Pai, iniciando sua missão pública nas periferias da Galileia, distante das propostas dos poderes religiosos e políticos de Jerusalém. É a partir das periferias existenciais e geográficas que Jesus começa a anunciar a Boa-nova e proclamar que o tempo de Deus reinar chegou. O tempo de construir um mundo novo, uma comunidade de discípulos que caminham com ele, já chegou. O texto afirma que Jesus foi servido por anjos, símbolo de todos aqueles que atenderam ao seu chamado de se pôr a serviço do Reino de Deus.

III. Pistas para reflexão

O relato da tentação de Jesus no deserto nos mostra que ele foi confrontado a fazer opções e teve de discernir suas escolhas à luz dos planos do Pai. Teve de buscar o que realmente correspondia à missão de Filho enviado. Foi desafiado e tentado a enveredar pelo caminho mais fácil, sem sofrimento, do egoísmo, do poder e da autossuficiência, prescindindo do Pai. Contudo, na obediência, ele reúne ao seu redor discípulos, que se dispõem a segui-lo, nesse caminho difícil, para gerar nova realidade. Jesus teve de fazer muitas renúncias para levar à plenitude sua missão redentora.

Escutar os apelos que a Palavra divina nos faz também implica discernir quais tentações nos afastam do caminho de Deus. As escolhas mais fáceis nem sempre nos conduzem à fonte do bem e à vida de comunhão com Deus. Da mesma forma que as tentações de Jesus não se resumiram aos 40 dias no deserto, as observâncias quaresmais são apenas o começo, uma preparação para nos fortalecer em nossa luta contínua de resistir às tentações em nosso cotidiano e nos pôr a serviço do Reino de Deus. É tempo de conversão verdadeira do coração. Onde estou buscando a felicidade? Quais satisfações me realizam? Quais dificuldades me fazem perder o foco de minha vida? Quais tentações me desviam do caminho do bem? Pela graça do batismo, também nós somos conduzidos pelo Espírito Santo a rejeitar o mal e seguir o caminho do discipulado, continuando a missão de Jesus neste mundo.

Izabel Patuzzo

pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. É assessora nacional da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. E-mail: [email protected]