Roteiros homiléticos

Publicado em setembro-outubro de 2023 - ano 64 - número 353 - pp.: 58-62

22 de outubro – 29° DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Junior Vasconcelos do Amaral*

Dai a Deus o que é de Deus: tudo é dele

I. INTRODUÇÃO GERAL
  Somos todos filhos e filhas de Deus, criados à sua imagem e semelhança, como nos atesta Gn 1,26. Portanto, somos chamados à comunhão com ele: tudo é dele, e nós também somos seus. Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus constitui tarefa muito importante: discernir o que é de Deus e o que é do mundo, criado por Deus e governado pelos seres humanos. O Evangelho deste domingo nos comunica a necessidade de discernir a complexa forma de viver neste mundo, com mansidão, fé e coragem, a fim de realizar a vontade divina, não a nossa. Na primeira leitura, o profeta Isaías anima seu povo a não perder a paciência diante dos conflitos vividos no exílio, mas confiar que Deus suscitará um líder para salvá-los. Esse líder é Ciro, o rei da Pérsia, que convocará o povo a voltar da Babilônia para a terra de Judá com a missão de ressignificar sua cultura e sua história, sua memória e sua fé. A segunda leitura, início da primeira carta aos Tessalonicenses, o primeiro livro neotestamentário escrito, suscita o desejo comunitário de viver a fidelidade inicial, aquela semeada por Paulo no coração das pessoas por ocasião da fundação da comunidade eclesial. Os tessalonicenses são chamados por Paulo a aguardar, com serenidade, a vinda do Senhor, sua parúsia, vivendo a cada dia o bem comum e o amor.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Is 45,1.4-6)
  O texto de Isaías proclamado neste domingo está inserido na segunda parte da obra desse grande profeta, o conhecido “livro da consolação”. Sua essência é animar os exilados de Judá nas terras da Babilônia. A passagem evoca uma comunicação de Deus a Ciro, rei da Pérsia, que tomou o poder em 537 a.C., pondo fim aos horrores do Império Babilônico. Desse modo, o povo de Israel foi libertado do cativeiro e todos foram convidados a retornar para Judá e Jerusalém (Esd 1,1-11). Ciro é comparado a um verdadeiro messias do povo. Deus mesmo o proclama ungido (v. 1). Esse texto faz-nos recordar tanto o Sl 2 quanto o Sl 110, que retratam a investidura do rei. “Ungido”, em hebraico, é Masshiah, Messias. O profeta diz, como porta-voz de Deus, que o Senhor tomou Ciro com sua mão direita a fim de lhe submeter as nações. Desse modo, os reis dessas nações devem se pôr em fuga para abrir, diante de Ciro, as portas; portão algum ficará fechado. Deus afirma que chamou Ciro por causa de Israel, cativo na Babilônia, mesmo que o rei não o conhecesse como seu Deus. Diz ser o Senhor, Adonai, não existindo outro. No v. 5, Deus mesmo proclama sua unicidade: “não existe Deus além de mim!” Além disso, faz de Ciro seu ungido, um instrumento bom em suas mãos, a fim de libertar seu povo (Jacó/Israel) das mãos de Nabucodonosor e seus sucessores.
2. II leitura (1Ts 1,1-5b)
  O apóstolo Paulo com Silvano e Timóteo saúdam a Igreja de Tessalônica, comunidade fundada por Paulo durante sua segunda viagem missionária, por volta do ano 50 d.C. Ele anuncia a Palavra de Deus aos que estão fora do judaísmo. O teor dessa carta é a expectativa da parúsia, a volta do Senhor (1Ts 4,13-5,10). Os fiéis cristãos, esperando a vinda de Cristo, devem viver com serenidade. Esse encontro deve ser esperado com alegria. O apóstolo se recorda dos tessalonicenses com gratidão em suas orações (v. 2). Recorda a esperança e a concórdia com que essa comunidade tem vivido, não obstante as dificuldades do tempo, sempre à luz da fé. Paulo aborda o tema fundamental da teologia dos antigos, os patriarcas e a eleição à qual essa Igreja foi chamada (v. 4). Para ela, o anúncio de Cristo foi realizado não só como um discurso, um elenco de verdades doutrinais, mas também como a consumação de uma experiência com o Ressuscitado, Jesus Cristo, em sua Palavra viva e na Eucaristia, celebrada como memória do Senhor no meio deles. O v. 5 ainda destaca a pneumatologia paulina, pois é o Espírito Santo que os faz permanecer firmes para o bem.
3. Evangelho (Mt 22,15-21)
  A parábola do domingo passado, sobre o banquete de casamento e o traje de festa (Mt 22,1-14), antecede a passagem deste domingo. Os fariseus, ao ouvirem Jesus, tramaram entre si como surpreender o Senhor em alguma palavra (v. 15). Assim, o Evangelho deste domingo apresenta as consequências da escuta atenta de Jesus e o discernimento que as pessoas devem fazer sobre ser seu discípulo. As palavras de Jesus incomodam as autoridades judaicas, pois sua exousia (poder/autoridade) não vem deste mundo, mas do Pai. A sabedoria com que ensina não é corriqueira, mas excepcional, pois provém de Deus mesmo. Dessa forma, seus ensinamentos provocam uma estupefação tal, que aqueles que se sentem incomodados com ele não farão outra coisa senão persegui-lo. Uma nova série de oponentes hierosolimitanos tenta armar uma cilada para Jesus. Agora são os fariseus (palavra que, em hebraico, significa “separados”) e os herodianos (partidários a serviço da restauração monárquica de Herodes). A questão que os fariseus e os herodianos trazem a Jesus é antecedida pelo elogio que lhe fazem, expresso no v. 16: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus segundo a verdade. Não te deixas influenciar por ninguém, pois não fazes acepção de pessoas”. Esse elogio mouco e sem significação para Jesus, entendido mais como bajulação, não o deixa à vontade. No v. 17, apresentam a Jesus uma questão típica: “É lícito ou não pagar tributo a César?” O termo “é lícito” corresponde a uma das prescrições da Torá, de sua compreensão como Lei. Tal era a preocupação dos sábios de Israel: saber o que era lícito ou ilícito – uma espécie de juízo de discernimento entre o certo e o errado. Jesus percebe a maldade de seus opositores: “Por que quereis me pôr à prova?” Pedindo-lhes uma moeda do tributo, um denário, Jesus lhes pergunta: “De quem é esta figura e inscrição?” Eles respondem: “De César!” Então, Jesus lhes diz: “O que é de César, devolvei a César; o que é de Deus, a Deus”. Eles ficam admirados com o que ouviram de Jesus e o deixam; vão embora, conforme Mateus afirma no v. 22. Na inscrição da moeda, usada para pagar tributos ao império, liam-se as seguintes palavras: “Tibério César, Augusto, filho do divino Augusto”. Uma moeda romana em território judaico deixava claro aos herodianos quem detinha o poder. Jesus expõe, com isso, os rasgos no tecido social judaico, dividido pela querela sobre se era ou não lícito pagar impostos a César e ao império. Jesus não diz que sim, mas também não diz que não; somente afirma que, se a moeda pertence a César, então deviam pagar a César o que era dele. E a Deus o que era de Deus. A pergunta subliminar que Jesus impõe aos fariseus e herodianos é se eles pertenciam mais ao império e a César do que a Deus. A questão apresentada por Jesus leva-nos a perguntar se os fariseus e herodianos estavam a favor de Deus ou do império. Certamente, os fariseus deveriam servir a Lei de Deus, e não o Império Romano; os herodianos, por sua vez, deveriam servir a Herodes e seus propósitos, e não a César. Evidenciando a ruptura política, ideológica e social, Jesus escancara as contradições de uma sociedade a serviço de esquemas políticos e religiosos, e não de Deus. Servir a Deus é fundamental para a concretização de uma sociedade mais justa, fraterna e pacífica, pois ele é amor (1Jo 4,8).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
  Nesta liturgia, somos convidados a destacar que Deus é sempre o Senhor de nossa vida e seu amor é sem fim para conosco; que, mesmo em meio ao caos do tempo presente, Deus suscita personagens que orientam, espiritual e psicologicamente, a vida do povo, acalentando os corações duvidosos e frágeis. Busque-se evidenciar que nem todo elogio significa verdadeiro sentimento por parte de quem o faz, assim como podemos ver no Evangelho (Mt 22,16), e suscitar na comunidade cristã o compromisso de servir a Deus de todo o coração, não fazendo do dinheiro ou do poder uma forma de desmonte da fé. Devolver a Deus o que é dele corresponde a nos comprometermos com seu Reinado, já presente no meio de nós, mas aguardado em sua consumação definitiva: “Venha o teu Reino” (Mt 6,10).

Junior Vasconcelos do Amaral*

*Pe. Junior Vasconcelos do Amaral é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG. Doutor em Teologia
Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – Belo Horizonte), realizou parte de seu doutorado
na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Bélgica). É
professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e publicou vários artigos sobre o Evangelho de Marcos
e a paixão de Jesus em perspectiva narratológica. E-mail: [email protected]