Roteiros homiléticos

Publicado em setembro-outubro de 2021 - ano 62 - número 341 - pág.: 38-40

23° DOMINGO DO TEMPO COMUM – 5 de setembro

Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues*

O Deus que liberta e faz opção pelos pobres

I. INTRODUÇÃO GERAL

 

Neste primeiro domingo do Mês da Bíblia, a liturgia evidencia o cuidado de Deus com a vida e a força libertadora da sua Palavra, cuja expressão máxima é Jesus de Nazaré e sua práxis. Isso mostra que Deus tem um projeto de libertação e vida plena para a humanidade e, também, que cada pessoa é chamada a participar desse projeto, abrindo-se à escuta da Palavra e fazendo das opções de Deus as suas, especialmente no compromisso com os pobres e marginalizados, como fez Jesus.

Todas as leituras deste domingo recordam esse projeto libertador de Deus. Na primeira, o profeta injeta coragem e esperança no povo exilado na Babilônia, anunciando o fim do cativeiro e o retorno à terra, com imagens que descrevem a restauração da vida, tanto do ser humano quanto da natureza. O Evangelho mostra o cumprimento do anúncio profético por Jesus – com a cura de um homem surdo que falava com dificuldade –, atestando a qualidade da sua messianidade. A segunda leitura recorda que não há contradição entre a imparcialidade de Deus e a opção preferencial pelos pobres, e esse deve ser o parâmetro do agir cristão. O salmo é uma síntese poética de cada leitura.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

 
1. I leitura (Is 35,4-7a)
 

A primeira parte do grande livro de Isaías, chamada convencionalmente pelos estudiosos de “Primeiro Isaías” (Is 1-39), é obra do Isaías clássico, um profeta que exerceu seu ministério em Jerusalém, antes do exílio, provavelmente entre os anos 740 e 700 a.C. Contudo, essa obra possui duas seções de estilo apocalíptico (Is 24-27; 34-35), chamadas respectivamente de grande e pequeno apocalipse, que remontam ao final do exílio, pertencendo originalmente à segunda parte do livro, denominada de “Segundo Isaías” (Is 40-55). Tirada do pequeno apocalipse, a primeira leitura é um hino de restauração que anuncia a intervenção de Deus em favor do seu povo exilado na Babilônia.

O anúncio profético contempla, inicialmente, um convite à coragem e à esperança (v. 4). Isso porque, embora esteja próxima, a libertação não é imediata. Por isso, é importante que o povo mantenha viva a fé e o espírito de resistência. A opressão torna as pessoas deprimidas, mas é certo que Deus vem em seu socorro, para salvar. A salvação, aqui, consiste no fim do exílio. A vingança anunciada nada tem que ver com violência ou ira: significa a reivindicação do direito dos pobres e oprimidos. E é Deus quem faz isso, restabelecendo a justiça, que, neste caso, é a libertação do seu povo. Obviamente, isso passa pelo desmonte dos instrumentos de opressão – no caso, o Império Babilônico.

Na sequência, são descritos os efeitos da intervenção libertadora de Deus com imagens que representam a restauração total da vida, começando pelo ser humano. A cura de doenças e a superação de deficiências são sinais de vida nova (v. 5-6a), interpretados mais tarde como a chegada dos tempos messiânicos. A intervenção de Deus comporta também a renovação da natureza, com a transformação do deserto em jardim (v. 6b-7a). A mensagem de esperança do profeta encontra seu cumprimento na vida e obra de Jesus de Nazaré, como mostra o Evangelho. Isso confirma que ele é o verdadeiro Messias e realizador do projeto libertador de Deus, seu Pai.

2. II leitura (Tg 2,1-5)
 

Continua a leitura da carta de Tiago, que foi iniciada no domingo passado e continuará nos próximos três domingos. Trata-se de um escrito do final do primeiro século, dirigido a comunidades cristãs de fora da Palestina, chamadas simbolicamente de “as doze tribos da diáspora” (Tg 1,1). A autodenominação do autor como Tiago é pseudônima. As características da carta não apontam para nenhum dos quatro personagens neotestamentários com esse nome, a saber: o filho de Zebedeu (Mc 1,19), o filho de Alfeu (Mc 3,18), o irmão do Senhor (Gl 1,19) e o pai de Judas Tadeu (Lc 6,16). O local da redação também é desconhecido, sendo mais prováveis as cidades de Alexandria ou Antioquia.

O trecho lido nesta liturgia – como, aliás, toda a carta – chama a atenção para a relação entre fé e vida, recordando a imparcialidade de Deus e a opção preferencial pelos pobres. De praxe, as sociedades costumam privilegiar as pessoas ricas, favorecendo-as das mais diversas maneiras. O autor recorda que essa prática é inaceitável na comunidade cristã, uma vez que a fé em Jesus Cristo não admite acepção de pessoas (v. 1). Aqui, fazer acepção de pessoas significa privilegiar os ricos, favorecê-los por causa das aparências e da condição social, como o autor ilustra com um exemplo bem concreto (2-4). Fazer isso é ignorar a opção preferencial que Deus já fez pelos pobres (v. 5). Embora pareça contraditório, é assim que funciona a imparcialidade de Deus: ele ama a todos indistintamente, mas seus cuidados se voltam especialmente para os pobres e marginalizados, muitas vezes vítimas das injustiças e da ganância dos ricos. E assim deve ser o agir cristão, como foi o agir de Jesus de Nazaré.

3. Evangelho (Mc 7,31-37)
 

Ao ensinar que nenhum elemento externo pode tornar o ser humano impuro, mas somente o que é gerado no coração (Mc 7,1-23), Jesus declarou o fim das barreiras que impediam o encontro e a convivência fraterna com as pessoas de etnias, religiões e culturas diferentes. Por isso, fez uma campanha missionária em terras pagãs (Mc 7,24-8,10), cumprindo, também ali, sinais semelhantes aos já cumpridos na Galileia, com destaque para a cura de um surdo-mudo, episódio correspondente ao Evangelho deste domingo. Exclusivo de Marcos, o episódio é paradigmático: revela o cuidado e o zelo de Jesus para com o ser humano, obra-prima da criação, com seu amor inclusivo.

O primeiro elemento relevante do texto é o indicativo geográfico: a passagem de Jesus por Tiro e Sidônia e pela Decápole, terras pagãs, não sujeitas à Lei judaica (v. 31). A Decápole era uma espécie de confederação de dez cidades de cultura grega localizadas a leste do mar da Galileia. A atuação de Jesus nessa região indica o universalismo da sua mensagem. Na sequência, vem apresentado o destinatário imediato dessa mensagem: um homem surdo, que falava com dificuldade (v. 32). A surdez era sinônimo de maldição, conforme a mentalidade da época, pois impedia a pessoa de ouvir a proclamação e a explicação da Palavra de Deus. Ora, sem ouvir a Palavra, o ser humano estava perdido, sem rumo.

A acolhida de Jesus revela verdadeira pedagogia do cuidado: ele olha para cada um em particular e age de acordo com as reais necessidades (v. 33). Os gestos descritos pelo evangelista são muito significativos: Jesus toca nos ouvidos, cospe e, com a saliva, toca a língua do homem. Ao tocar, deixa sua marca no outro, transmite sua essência. Tocando nos ouvidos, doou o dom da escuta do Evangelho; tocando a língua, capacitou o homem também para o anúncio. Para a mentalidade semita, a saliva continha o espírito da pessoa; fazendo isso, Jesus transmitiu seu espírito vivificador àquele homem, restituindo-lhe a dignidade e tornando-o apto para anunciar seu Evangelho.

Toda a obra restauradora de Jesus é realizada em profunda comunhão com o Pai; é esse o significado do gesto de olhar para o céu (v. 34a). Em seguida, ele dá o comando: “Abre-te!” – efatá, em aramaico (v. 34b). Essa ordem é dirigida à pessoa em sua inteireza, e não apenas aos sentidos com deficiência. Significa um abrir completo, como deve ser toda pessoa diante do Evangelho. É fruto da força libertadora da palavra de Jesus, como mostra a sequência do texto (v. 35). O encontro pessoal com ele transforma; quem se deixa tocar por ele e se abre à escuta da sua palavra, muda radicalmente. É preciso ter ouvidos abertos e atentos para ouvir e a língua livre para anunciar. Apesar de nunca ser atendido, Jesus costumava pedir segredo quando cumpria um gesto prodigioso (v. 36), principalmente em Marcos, que tem o segredo messiânico como um dos temas mais relevantes.

A conclusão do texto atesta a qualidade da obra de Jesus, associando-a diretamente à criação (v. 37). Com efeito, fazer bem todas as coisas é a característica do Deus criador, que, ao final de cada obra criada, contemplava que aquilo era muito bom (Gn 1). Fazer bem as coisas é, portanto, agir como Deus. Fazer os surdos ouvir e os mudos falar é a realização das expectativas messiânicas, conforme a mensagem da primeira leitura. Assim, Jesus renova a criação do seu Pai, comunicando vida em abundância à humanidade e tendo as pessoas mais necessitadas e excluídas como primeiras destinatárias.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

 

Mostrar a relação entre as três leituras, destacando o cuidado de Deus com a criação inteira e a plenitude desse cuidado na obra de Jesus. Recordar que o amor universal de Deus não contradiz a opção preferencial pelas pessoas mais necessitadas. Enfatizar a importância e a atualidade do imperativo “abre-te” e, como um convite à vivência do Mês da Bíblia, ressaltar que é preciso abrir-se à leitura e ao estudo da Palavra de Deus e deixar-se transformar por ela.

Francisco Cornélio Freire Rodrigues*

*é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). E-mail: [email protected]