Roteiros homiléticos

Publicado em setembro/outubro de 2024 - ano 65 - número 359 - pp. 62-64

27 de outubro – 30º Domingo do Tempo Comum

Por Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*

“Jesus, Filho de Davi, tem compaixão de mim”

I. INTRODUÇÃO GERAL

Hoje a liturgia nos convida a recuperar a alegria e a esperança messiânicas para seguir Jesus. É preciso, para tanto, romper a cegueira da fé e ver em Jesus o Servo do Senhor que nos ensina também a servir. Na primeira leitura, o profeta Jeremias convida os exilados da Babilônia a não perder a fé em Deus, o libertador. Deus já libertou seu povo inúmeras vezes; tardará, mas não faltará. No Evangelho, a cura da cegueira de Bartimeu corresponde à progressão da fé em Jesus e do seu seguimento. Somos convidados por Bartimeu a deixar nosso manto de proteção, saltar para a fé em Cristo e segui-lo. Na segunda leitura, Hebreus nos convida a ver em Jesus o sumo sacerdote que se compadece de nós e nos salva, convidando-nos a viver uma comunidade sacerdotal, capaz de se compadecer das misérias das pessoas.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Jr 31,7-9)

O profeta Jeremias, cujo nome hebraico significa “Deus estabelece” ou “Deus exalta”, nos capítulos 30 e 31, conhecidos como “livro da consolação” de Israel, dirige-se provavelmente aos deportados do Reino do Norte – com a queda da Samaria em 722-721 a.C. –, sob o reinado de Josias, que submeteu parte do antigo Reino do Norte. Jeremias reacende no coração do povo a esperança da volta para a terra, após a deportação infligida pelos assírios. As palavras do profeta acendem também o ânimo e a coragem dos exilados em 597 e 587 a.C. Ele não foi deportado para a Babilônia, mas permaneceu em Judá, morrendo em 585 a.C., anos após o exílio ter-se iniciado. Deus o poupara da morte pelas mãos dos babilônios (Jr 39,17-18).

O profeta convida a todos a exultar por Jacó, pois o Senhor fez voltar os exilados, o resto de Israel juntou de novo. “Salva, Senhor, o teu povo, o resto de Israel” (v. 7) é prece de confiança do profeta. Jeremias ainda traduz a voz de Deus, que fará voltar para a terra seu povo – pobres, cegos, aleijados, mulheres grávidas e parturientes. O v. 8 afirma ser grande a multidão que volta.

Os exílios igualam o povo: já não há puros e impuros, bons e maus, todos sofrem e são considerados pecadores pelo que está acontecendo. Desse modo, como palavra de esperança e conforto, o profeta Jeremias levanta sua voz e diz: “Eles voltarão entre lágrimas e eu os receberei entre preces, eu os conduzirei por torrentes d’água”. Deus ama seu povo, que sofreu com os exílios. Não obstante, o povo não foi poupado, pois conhecia os preceitos divinos, mas ainda assim pecou. Dessa maneira, o exílio servirá de purificação, como fonte de renovação espiritual. Deus se considera pai de seu povo, por isso o congrega novamente, lembrando-se de sua infinita misericórdia (v. 9). Portanto, o profeta Jeremias é a expressão de um Deus que se comove de amor por seu povo, que não o abandona, mas virá para salvá-lo.

2. II leitura (Hb 5,1-6)

O autor de Hebreus, em continuidade com a cristologia desenvolvida em sua homilia, diz que todo sumo sacerdote é tirado do meio de seu povo e é colocado à frente dele em favor das pessoas nas coisas referentes a Deus (v. 1). O sumo sacerdote está em íntima relação com Deus, cuja característica fundamental é Rahamim (em hebraico, também traduzido por “misericórdia”). Então, o sacerdote sabe ter compaixão, pois ele mesmo está repleto de fraquezas (v. 2). Ele oferece sacrifícios em expiação dos pecados do povo e dos seus (v. 3). Não há como se autoatribuir essa honra se não se é chamado por Deus, como Aarão, irmão de Moisés (v. 4). No v. 5, na construção da cristologia de Hebreus, seu autor relaciona o sacerdócio a Cristo por meio das palavras do Sl 2,7: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei”. No v. 6, o autor conclui: “Como diz em outra passagem: tu és sacerdote para sempre, na ordem de Melquisedec” (Sl 109/110,3). Melquisedec, rei de Salém, cuja procedência é desconhecida, abençoou Abraão em Gn 14,18-20, recebendo dele o dízimo.

3. Evangelho (Mc 10,46-52)

Na sequência do Evangelho de domingo passado, no qual Jesus afirma, no v. 45, que não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate de muitos, o texto deste domingo mostra Jesus saindo de Jericó, com seus discípulos e grande multidão que o seguia. Jericó é uma cidade antiga, que fica entre a Galileia e Jerusalém. Jesus estava a caminho de Jerusalém (Judeia), como Mc 10,1 nos pode indicar. Ao sair dessa cidade (v. 46), ele se encontrou com o filho de Timeu, Bartimeu, cego, mendigo, sentado à beira do caminho. Lembramos que Bartimeu não era o nome desse homem: em hebraico, Bar ou ainda Ben indicam filiação. Ele era filho de Timeu. Era um mendigo cego, que vivia na parte periférica da cidade, excluído, deixado de lado. Tinha, porém, ouvido dizer que Jesus, o Nazareno, estava passando e o procurou ativamente.

Em Mc 8,22-26, levaram o cego até Jesus. Agora, Bartimeu é quem toma a iniciativa, após terem lhe dito que Jesus estava passando por Jericó. Trata-se, na teologia marcana, de um processo progressivo de fé, o crescendum teológico, de uma fé que necessita de um salto para o encontro com Jesus, mesmo em meio à cegueira – a mesma que toma a consciência e o coração dos discípulos que o seguem pelo caminho, a ponto de, no domingo passado, terem pedido a Jesus para se sentarem com ele em sua glória, desconhecendo o verdadeiro sentido de sua vida messiânica, que é serviço. Outra característica contrastante com a dos discípulos é a disposição de Bartimeu de seguir Jesus, pois a narrativa assim conclui: “No mesmo momento, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho”.

Jericó fica a 24 quilômetros a nordeste de Jerusalém e a 8 quilômetros a oeste do rio Jordão. Assim, a viagem que havia começado em Cesareia de Filipe, ocasião da profissão de fé realizada por Pedro, passa por Jericó antes de chegar a Jerusalém, onde Jesus vai finalizar sua missão e viver sua paixão e morte. No v. 47, o cego grita: “Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim” (piedade ou compaixão, segundo algumas traduções). Essa é a primeira aplicação pública do título messiânico “Filho de Davi” a Jesus. É o primeiro reconhecimento público, após o de Pedro, da verdadeira identidade messiânica de Jesus por um ser humano, e não por um demônio, como é comum em Marcos (cf. 5,7). O v. 48 afirma que todos à sua volta o repreenderam para que não gritasse. Além de não enxergar, desejavam que o homem emudecesse, cessando sua iniciativa de demandar compaixão e piedade junto a Jesus. A repetição do grito, entretanto, garante o sentido da fé, que se dirige confiante àquele que tudo pode: Deus mesmo. No v. 49, Jesus é quem toma a iniciativa: parou, mandou chamá-lo. Eles dizem a Bartimeu: “Coragem, levanta-te, ele te chama”. Os que o rodeiam são um tanto insensíveis, pois poderiam tê-lo ajudado a levantar-se. A intenção de Marcos, na verdade, é irônica, pois denuncia mais a fé do cego Bartimeu que a compreensão dos discípulos do que eles fazem no seguimento de Jesus.

A atitude do cego é daquele que está gradativamente adquirindo a autonomia da fé. Ele, por si mesmo, caminha ao encontro de Jesus. Nesse ponto, o v. 50 traz uma sucessão de verbos de ação: ele joga o manto, pois este já não é necessário nem lhe traz segurança; dá um pulo, uma espécie de salto na fé, pois já não pode ficar parado; e caminha até Jesus, como alguém que por si mesmo procura seu Senhor, pois a verdadeira forma de seguir Jesus é no caminho.

“O que queres que eu te faça?” (v. 51) é a contrapartida de Jesus. Essa pergunta proporciona a ocasião para uma profissão de fé sobre seu poder de cura: “Mestre, que eu veja”. O v. 52, “tua fé te salvou”, traz o verbo grego sesóken, também traduzido por “curou”. Jesus é o único que pode transmitir o poder de Deus; ele é o taumaturgo do Pai, que veio para curar o que estava doente. Ele veio restaurar não apenas a visão física, mas da fé; não apenas daquele homem, mas de todos os que o seguiam desde o dia em que foram convidados no mar da Galileia: “Segui-me, eu vos farei pescadores de homens” (Mc 1,17). Romper a cegueira da falta de fé é condição sine qua non para seguir verdadeiramente Jesus. É necessário romper a incompreensão para reconhecer em Jesus o Servo de Deus que veio resgatar o mundo dos malefícios do pecado e da morte.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Ajudar a comunidade cristã a compreender que o discipulado é um convite para seguir aquele que veio servir a humanidade e resgatá-la do pecado. Discernir que o sacerdócio batismal e o convite às vocações específicas nos levam a servir os irmãos e irmãs na comunidade cristã. Compreender que vivemos hoje muitas cegueiras que nos impedem de seguir Jesus Cristo como discípulos e discípulas.

Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*

*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seus estudos de doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. E-mail: [email protected].